Desde o final da semana passada, as notícias relacionadas com a guerra genocida em curso na Faixa de Gaza têm sido ofuscadas pelo projeto de trégua que o Presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou na sexta-feira, atribuindo-o a “Israel” sem especificar qual o órgão governamental israelita que o aprovou. Os comentadores dos meios de comunicação social acharam estranho que uma proposta israelita seja anunciada pelo Presidente dos EUA em vez de ser anunciada por fontes oficiais israelitas. A confusão aumentou quando o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, pareceu querer distanciar-se do projeto, afirmando condições que aparentemente o contradiziam ou complicavam, sendo a mais importante a sua insistência em continuar a ofensiva até que as capacidades militares e políticas do Hamas sejam completamente eliminadas e o controlo de segurança israelita sobre toda a Faixa de Gaza seja assegurado.
A verdade é que esta aparente confusão reflete um estado real de confusão que gira principalmente em torno do próprio Netanyahu. Isto porque o líder sionista está preso entre dois fogos: a pressão americana apoiada pela oposição israelita e por um grupo do seu próprio partido, o Likud, liderado pelo ministro da “Defesa” Gallant, e a contra-pressão exercida pelos aliados de Netanyahu na extrema-direita sionista. Qual é a natureza destas duas pressões opostas?
Comecemos pela pressão dos dois blocos “neo-nazis” a que Netanyahu se aliou há um ano e meio para obter a maioria no Knesset que lhe permitiu regressar ao poder. É sabido que estes dois blocos consideram que não vale a pena fechar qualquer acordo com o Hamas, mesmo que temporário, e que o objetivo da guerra em curso deve ser o de o Estado sionista se apoderar de toda a Faixa de Gaza e anexá-la ao seu território como parte de “Eretz Israel” (a Terra de Israel) entre o rio e o mar. (Este tornou-se o objetivo comum da extrema-direita sionista, depois de ter sido forçada a reduzir o projeto do “Grande Israel”, parando-o nas fronteiras do Sinai, a sul, e do rio Jordão, a leste, enquanto se expandia para norte, para os Montes Golã, e cobiçava parte do sul do Líbano). Os líderes da extrema-direita sionista aspiram a deportar os habitantes da Faixa de Gaza - ou incitá-los a abandoná-la “voluntariamente”, como afirmam com descarada hipocrisia - e a substituí-los por colonos judeus. Também consideram este objetivo mais importante do que as vidas dos restantes prisioneiros detidos pelo Hamas e outras fações palestinianas em Gaza.
Por outro lado, as duas principais alas partidárias do imperialismo norte-americano consideram que os interesses do seu Estado são alcançados através da formação de uma aliança militar regional que inclui o Estado sionista e os aliados árabes de Washington, nomeadamente, do Oceano ao Golfo: o Reino de Marrocos, o Egito, o Reino da Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e outras monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo, bem como o Reino Hachemita da Jordânia. É um projeto para o qual Donald Trump se esforçou muito enquanto esteve na Casa Branca, e cujos esforços foram continuados pelo seu sucessor, Biden, que tem sido quase indistinguível dele no que diz respeito ao “Grande Médio Oriente”. A concretização deste projeto exige, no entanto, uma “solução” para a questão palestiniana baseada na criação de um “Estado palestiniano” que lhe desse o seu apoio e, assim, enganasse a opinião pública árabe (na opinião dos governos em causa).
Palestina
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Quanto ao destino de Gaza, de acordo com esta visão, seria um regresso ao que resultou dos Acordos de Oslo, ou seja, uma Autoridade Palestiniana a quem foi confiada a tarefa de gerir as zonas palestinianas densamente povoadas, enquanto o exército sionista cercava essas zonas e as supervisionava em termos de segurança, para além da referida autoridade. Mas a experiência provou que uma Autoridade Palestiniana que coopera com a ocupação não consegue controlar sozinha a resistência popular. Os responsáveis norte-americanos e os seus aliados árabes também concordam que a atual Autoridade baseada em Ramallah é incapaz de impedir que o Hamas recupere o controlo de Gaza se o exército sionista se retirar das zonas povoadas da Faixa. Por isso, consideram que a solução ideal seria o envio de uma “força de paz” árabe para essas zonas povoadas, uma força em que a Autoridade Palestiniana, colaborando com a ocupação, pudesse confiar para controlar a população. Citando fontes ocidentais, o Financial Times revelou que três países árabes manifestaram a sua vontade de enviar forças para Gaza: Egito, Marrocos e Emirados Árabes Unidos.
Biden precisa de uma trégua que possa atribuir aos esforços da sua administração junto da opinião pública norte-americana, especialmente entre os eleitores tradicionais do Partido Democrata, a fim de limitar a perda eleitoral que provavelmente vai sofrer em alguns círculos. A sua administração envidou grandes esforços para persuadir o gabinete de guerra israelita, criado na sequência da operação “Dilúvio de Al-Aqsa ”, a chegar a acordo sobre um segundo projeto de tréguas, cuja primeira fase consiste num cessar-fogo de seis semanas, durante o qual seriam libertados, como habitualmente, um certo número de prisioneiros israelitas e um maior número de detidos palestinianos, bem como a retirada do exército sionista das zonas densamente povoadas de Gaza (tal como estipulado nos Acordos de Oslo). Na realidade, estas áreas foram significativamente reduzidas, uma vez que a maioria dos habitantes de Gaza foi deslocada e confinada a áreas de refúgio restritas.
Embora o projeto estipule uma segunda fase durante a qual os restantes prisioneiros israelitas e um lote adicional de detidos palestinianos seriam libertados, Netanyahu discordou publicamente da promessa do projeto de uma retirada israelita completa de Gaza durante esta mesma fase, sublinhando que nunca o tinha aceite e que o exército sionista não terminaria a guerra antes de assegurar a eliminação completa do potencial do Hamas na Faixa. No entanto, o que Biden e os membros do gabinete de guerra sionista realmente querem não é mais do que uma trégua temporária que leve à libertação de todos os prisioneiros israelitas, exceto os soldados do sexo masculino, para poderem afirmar perante a opinião pública que fizeram tudo o que podiam para salvar aqueles que podiam ser salvos. O resto será considerado como parte do custo normal da guerra que os soldados estão dispostos a pagar quando se alistam nas forças armadas. Os membros do gabinete de guerra sabem que completar a sua ocupação da zona de Rafah resultará provavelmente na morte dos prisioneiros que constituem a última carta nas mãos da liderança do Hamas dentro da Faixa de Gaza. Querem, por isso, reduzir o número destes prisioneiros a um nível que a opinião pública israelita possa suportar.
Quanto a esta segunda fase do projeto e à terceira (reconstrução da Faixa de Gaza), elas não serão alcançadas porque a trégua não irá além da sua primeira fase, que foi o que convenceu Netanyahu a aceitar o projeto em primeiro lugar - mesmo que com relutância, porque ele sabia que os seus aliados de extrema-direita não o aceitariam. Esta é a razão da confusão que surgiu nos últimos dias, uma vez que Netanyahu está a tentar persuadir os seus aliados a não romperem a sua aliança com ele e a retirarem o apoio dos seus blocos ao seu primeiro-ministro, forçando-o assim a confiar na oposição, quer seja o partido de Gantz, que se juntou ao gabinete de guerra, ou o partido de Lapid, que se recusou a juntar-se a ele. Os dois partidos manifestaram a sua vontade de apoiar a permanência de Netanyahu no seu cargo até às próximas eleições legislativas, se ele aceitar a trégua e, por detrás dela, o projeto de colonização baseado no envolvimento das forças árabes com as forças sionistas no controlo da segurança da Faixa de Gaza.
É uma escolha difícil que Netanyahu enfrenta atualmente, o resultado inevitável da sua dependência de dois grupos extremistas, em comparação com os quais o próprio Partido Likud, apesar das suas raízes fascistas, parece “moderado”. É uma escolha igualmente difícil, se não mesmo mais difícil, a que os dirigentes do Hamas no interior da Faixa de Gaza estão a enfrentar no lado oposto, pois é-lhes pedido que abdiquem da sua última carta que lhes garante a sobrevivência, em troca de algumas semanas de tréguas acompanhadas de uma entrada maciça de ajuda necessária para evitar a morte de mais um grande número de habitantes de Gaza, em especial crianças.
Artigo publicado no site do autor, a partir do original publicado no Al-Quds al-Arabi a 4 de junho de 2024. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net