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Os caminhos da Catalunha: uma história e dez reflexões

Ao contrário de Portugal, que constitui um Estado-nação bastante precoce, com um território definido desde muito cedo, sem minorias étnicas, linguísticas e religiosas significativas, o Estado Espanhol, que resultou da absorção, por parte de um reino centralizador (Castela), de um conjunto de reinos e povos periféricos, é claramente plurinacional.
Contudo, o poder central castelhano sempre procurou abafar essa realidade, o que gerou, frequentemente, mal-estar entre as nações periféricas, com destaque para a Catalunha, o País Basco e, em menor grau, a Galiza.
A Constituição de 1978, resultante de um compromisso entre os setores mais abertos da elite franquista (a quem assustava a possível eclosão de um processo revolucionário semelhante ao ocorrido em Portugal, na sequência do 25 de Abril) e os mais moderados da oposição (que temiam que a oposição das poderosas Forças Armadas espanholas atrasasse a democratização do país), legitimou a restauração monárquica e criou o chamado Estado das Autonomias. Este, se, por um lado, significou a descentralização do Estado para as 17 regiões (denominadas Comunidades Autónomas), entretanto criadas, por outro, procurou diluir as autonomias basca, catalã e galega no processo global de criação de um nível regional de poder. Isto mesmo se a Catalunha, o País Basco, a Galiza e, também, a Andaluzia puderam adquirir um estatuto especial, tal como Navarra, que viu reconhecidos os seus foros medievais.
Durante anos, foi a luta dos setores independentistas bascos mais radicais, expressa nas ações armadas da ETA e na resposta musculada do Estado espanhol, que marcou muita da atualidade política no país vizinho. Ironicamente, agora que a ETA abandonou a luta armada e a situação em Euskadi parece, para já, calma, é a Catalunha que reivindica a independência.
Quais as razões históricas que justificam a reivindicação independentista catalã?
Na Idade Média, a Catalunha era um condado, que, a partir do sec. XI, foi integrado no reino de Aragão, embora conservando uma grande autonomia. Os seus comerciantes tiveram um papel fundamental na expansão marítima aragonesa no Mediterrâneo.
No sec. XV, o casamento entre Fernando de Aragão e Isabel de Castela (mais tarde conhecidos por Reis Católicos) levou à união dos dois reinos, naquilo que seria o início da unificação ibérica, traduzida na construção do futuro Estado espanhol. Apesar de integrada na nova realidade política, a Catalunha manteve grande parte das suas instituições, língua e cultura.
Em 1640, eclodiram as revoltas de Portugal e da Catalunha contra o centralismo castelhano. Após anos de guerra, a primeira foi coroada de êxito e o nosso país viu reconhecida a restauração da sua independência, mas a segunda falhou, sendo a maioria do território catalão recuperado por Espanha e a sua parte norte cedida à França.
Mas o pior estava para vir. Na sequência da Guerra da Sucessão de Espanha, que opôs os Áustria (Habsburgos) aos Bourbons, a Catalunha apoiou os primeiros, que viriam a sair derrotados. A rendição de Barcelona deu-se em 11 de setembro de 1714, data que, a partir daí, passou a ser comemorada como a Diada, dia nacional catalão. Vencedores, os Bourbons encetaram uma política centralizadora, que afetou especialmente a Catalunha: as suas instituições foram abolidas e o catalão foi substituído pelo castelhano como língua oficial.
No sec. XIX, a região conheceu um importante surto de industrialização, apoiada numa burguesia dinâmica. É esta que leva ao renascimento cultural da região, que se traduz na expansão da língua, da literatura e da cultura catalãs. Este movimento, associado ao romantismo, está na base do movimento nacionalista, que dá, então, os primeiros passos. Nessa fase, estamos, porém, em presença de um nacionalismo ideologicamente conservador, justificado pela convicção de algumas elites catalãs de que o desenvolvimento industrial da região era travado pelo atraso do resto do país, acentuadamente rural, e pelo poder central de Madrid, visto como reflexo daquele.
A dinâmica industrialista mantém-se no sec. XX. Com ela, Barcelona e a sua cintura industrial começam a atrair pessoas, já não apenas do interior da Catalunha, mas também de outras regiões de Espanha. Serão elas que constituirão a mão de obra das novas indústrias. Essa grande concentração operária leva a que a região se torne um bastião das esquerdas.
Em 1914, a conservadora Lliga Regionalista cria a Mancomunidade da Catalunha, unindo as quatro províncias catalãs. Em 1919, esta apresenta um projeto de estatuto autonómico, que é rejeitado pelas Cortes espanholas.
A ditadura de Primo de Rivera, que vigora entre 1923 e 1930, dissolve a referida instituição e promove uma política ferozmente anti catalanista. Com isso, apenas dá mais força ao sentimento autonomista e independentista.
Em 1931, é criada a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), em resultado da fusão de três grupos da esquerda independentista. Apoia-se na pequena burguesia, no campesinato e em alguns setores do operariado catalão. Nesse mesmo ano, na sequência da vitória republicana nas eleições municipais, é proclamada a 2ª República espanhola. Com esta, é, finalmente, aprovado um estatuto de autonomia para a região, que consagra a restauração da Generalitat (governo autónomo catalão), em 1932.
Nas eleições autónomas do ano seguinte, a ERC vence e Francesc Macià torna-se o presidente do executivo regional. Após a sua morte, é substituído por Liuís Companys, que, em 1934, após a entrada da direita no governo de Madrid e a feroz repressão da greve mineira nas Astúrias, proclama o Estado Catalão dentro da República Federal Espanhola. Em resposta, Madrid prende os dirigentes catalães e suspende a autonomia da região. Com o triunfo da Frente Popular, em fevereiro de 1936, aqueles são libertados e o estatuto autonómico restaurado.
O golpe de estado militar de julho desse ano e a resistência popular que se seguiu originaram a longa e feroz guerra civil (1936-1939). A Catalunha foi uma das regiões que mais encarniçadamente se opôs aos golpistas, mas as rivalidades no seio da esquerda, entre socialistas, comunistas, anarquistas e trotskistas, minaram a resistência antifascista e facilitaram a vitória das forças reacionárias.
Durante a longa ditadura franquista, o castelhano, tornado sinónimo de espanhol, passou a ser, não apenas a única língua oficial, mas também a única autorizada, pelo que quem se exprimisse em público nas línguas catalã, basca ou galega era punindo com pena de prisão
A longa ditadura franquista constituiu um tempo de má memória para a Catalunha e a maioria dos catalães. Para além da feroz repressão que se abateu, em todo o Estado espanhol, sobre os seus opositores, em especial os militantes e simpatizantes da esquerda, o regime de Franco foi um lídimo representante do nacionalismo espanholista de raiz castelhana. Apostado em abafar o carácter plurinacional do país, instituiu um grande centralismo político-administrativo e reprimiu brutalmente as culturas e línguas das nacionalidades periféricas. Assim, o castelhano, tornado sinónimo de espanhol, passou a ser, não apenas a única língua oficial, mas também a única autorizada, pelo que quem se exprimisse em público nas línguas catalã, basca ou galega era punindo com pena de prisão.
Apesar disso, desde os anos 50, a industrialização progride. A Catalunha é um dos grandes destinos do êxodo rural e a ela afluem milhares de migrantes pobres provenientes de outras regiões de Espanha. Dentre estes, destacam-se os andaluzes, mas também bastantes extremenhos, aragoneses, castelhanos e, em menor grau, galegos e asturianos.
O ditador morreu em 1975 e, no ano seguinte, inicia-se a chamada transição democrática. Em 1976, é restaurado o estatuto autonómico de 1932 e, no ano seguinte, Josep Taradellas, recém-regressado do exílio, torna-se o presidente provisório da Generalitat. A aprovação da Constituição de 1978 abre o caminho para a aprovação do novo Estatuto de Autonomia, um ano depois.
Nas primeiras eleições autonómicas realizadas sob o novo regime constitucional, em 1980, triunfou a coligação nacionalista de centro-direita CiU, (Convergência e União), constituída pela Convergência Democrática da Catalunha (CDC), liberal, representante dos interesses da burguesia nacional catalã, e a União Democrática da Catalunha (UDC), democrata-cristã, muito ligada à Igreja Católica local. Jordi Pujol, líder da primeira, foi eleito presidente da Generalitat, cargo que ocupou até 2003.
Durante o seu longo consulado, a Catalunha continuou a registar um grande crescimento económico e Barcelona, com uma cada vez mais pujante vida cultural, passa a ser vista como uma das mais cosmopolitas cidades europeias. Essa imagem consolida-se após o êxito que constituiu a organização dos Jogos Olímpicos de 1992. Do ponto de vista político, Pujol joga habilmente com o poder central, colocando-se, sempre que possível na posição de “king maker”. Assim, sempre que não havia maioria absoluta em Madrid, a CiU garantia o apoio parlamentar, tanto ao PSOE como ao PP, em troca de vantagens para a Catalunha. Mais tarde, ele e sua família acabam por ver denunciados vários esquemas de corrupção e evasão fiscal em que estiveram envolvidos.
Em 2003, o socialista Pasqual Maragall, ex-alcalde de Barcelona e grande impulsionador dos Jogos Olímpicos, torna-se presidente da Generalitat, à frente de uma coligação de esquerda, constituída pelos ramos catalães do PSOE e da IU e pela ERC. Ao contrário da CiU, esta última sempre defendeu abertamente a independência, advogando mesmo alguns setores do partido o pancatalanismo, isto é, a constituição de um Estado independente, designado por Països Catalans, que englobe todos os territórios de língua catalã (Catalunha, Comunidade Valenciana, Ilhas Baleares, a faixa oriental de Aragão, Andorra e o Roussillon francês ou Catalunha do Norte).
A revisão do Estatuto de Autonomia marcou a nova legislatura. Dois anos depois, foi aprovado pelo Parlamento catalão. Contudo, a sua aprovação pelas Cortes espanholas só foi possível depois de serem eliminadas ou alteradas algumas disposições que concediam mais poderes à Comunidade Autónoma. Essa circunstância levou a ERC, que tinha sido peça essencial na sua elaboração, a considerá-lo insuficiente e a apelar à sua rejeição no referendo, a realizar em 2006, o que originou uma crise governativa. O documento acabou por ser aprovado, com o voto favorável de cerca de 74% dos votantes, embora a participação tenha ficado ligeiramente abaixo dos 50%.
Após a consulta popular, Maragall demitiu-se e foram convocadas novas eleições. Os seus resultados levaram à renovação da coligação tripartida, agora sob a liderança de José Montilla.
Na sequência de um recurso apresentado pelo Partido Popular, de Mariano Rajoy, logo após o referendo, o Tribunal Constitucional espanhol, em 2010, decidiu-se, por escassa maioria, pela constitucionalidade do novo Estatuto na generalidade. Porém, na especialidade, declarou inconstitucionais ou sujeitas a interpretação restritiva as disposições que reforçavam a identidade nacional catalã ou que atribuíam novos poderes às instituições autonómicas. Na prática, o Estatut aprovado nas urnas foi esvaziado de conteúdo.
Com a crise económica mundial, que afetou de sobremaneira a economia espanhola e, por arrasto, as suas regiões, o “tripartido” sofreu uma pesada derrota nas eleições de 2010. Dirigida por Artur Más, a CiU voltou ao poder, após uma campanha baseada na ideia de um pacto fiscal com o governo de Madrid, no qual a Catalunha ficaria com a totalidade dos impostos aí cobrados, a exemplo do que sucede com o País Basco e Navarra, ao abrigo das suas tradições forais. Sem apoio da direita espanholista (PP e o novo partido anti independentista Ciutadans) nas questões de soberania e sem apoio da esquerda na imposição de políticas austeritárias, teve de formar um governo minoritário.
O esvaziamento do Estatut e a recusa, por parte do governo central, do pacto fiscal proposto por Más, acentuaram o mal-estar catalão. A reação da sociedade civil regional traduz-se na convocação de várias manifestações por parte da Òmnium Cultural, associação de defesa da língua e da cultura catalãs, criada na clandestinidade, durante os anos 60, e, mais tarde, pela constituição de nova associação cívica, a Assembleia Nacional Catalã (ANC), cujo objetivo explícito é a independência da Catalunha. Funda-se, igualmente, a Associação de Municípios pela Independência (AMpI), que agrupa mais de 80% dos órgãos autárquicos da região. Aquelas organizações são responsáveis pela grande mobilização que levou mais de um milhão de pessoas à rua na manifestação comemorativa da Diada, em 11 de setembro de 2012. Poucos dias depois, o Parlamento autonómico vota a realização de uma consulta popular sobre a independência.
Em março desse ano, já a CDC tinha assumido a sua deriva na direção do independentismo. Segundo algumas “más línguas”, essa opção teria sido uma forma de desviar as atenções dos escândalos de corrupção em que a família Pujol e outros membros do partido se viram envolvidos. Nas eleições antecipadas, realizadas no final desse ano, a CiU volta a sair vencedora, mas perde votos para a ERC. As duas forças políticas aceitam formar uma coligação, conhecida por Pacto da Liberdade, cujo programa se baseava na concretização do processo independentista.
Convocado para 9 de novembro de 2014, o referendo teve, de imediato, a oposição do governo central e a declaração de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional espanhol, mesmo quando a Generalitat o transformou numa simples consulta popular não referendária. Acabou por realizar-se como mera iniciativa de participação cidadã, organizada por várias associações cívicas. O “sim” venceu, com mais de 80% dos votos, mas a participação foi inferior a 40%.
O falhanço da consulta popular levou à convocação de novas eleições autonómicas em 2015, que acabam por assumir, indiretamente, um carácter plebiscitário sobre a independência. Entretanto, a UDC, descontente com a deriva da CDC a favor da independência, rompe com esta, pondo fim à CiU. Forma-se, então, uma frente eleitoral independentista, com a participação da CDC (que, no ano seguinte, se transformará no Partido Democrático Europeu da Catalunha - PDeCAT), ERC, Democratas da Catalunha (cisão na UDC) e Movimento das Esquerdas (MES, cisão no PS da Catalunha), da ANC, da Òmnium Cultural e da Associação de Municípios pela Independência, consubstanciada na candidatura Juntos pelo Sim (JxSi). Essa coligação e a mais radical Candidatura de Unidade Popular (CUP), constituída por grupos da extrema-esquerda e assumida defensora do pancatalanismo, obtiveram, no total, cerca de 48% dos votos. Contudo, graças ao sistema eleitoral, lograram obter uma maioria parlamentar, elegendo 72 dos 135 deputados (62 do JxSi e 10 da CUP). Já o conjunto dos partidos espanholistas quedou-se pelos 39% e pelos 52 lugares (25 dos C´s, 16.do PSOE e 11 do PP). Por fim, a coligação de esquerda Em Comum Podemos, que defende a autodeterminação, mas não a independência, conseguiu 9%, o que lhe garantiu 11 mandatos.
Contudo, a CUP recusou a investidura de Más, exigindo a sua substituição para apoiar um executivo formado pelo JxSi. Então, aquele foi substituído por Carles Puigmont, igualmente da CDC/PDeCAT, que se torna, assim, presidente da Generalitat.
No passado dia 6 de setembro, o Parlamento catalão aprovou, com os votos favoráveis do bloco independentista, a abstenção do Em Comum Podemos e a recusa dos partidos anti-independentistas em votar a proposta, a realização de um referendo sobre a independência, a efetuar no dia 1 de outubro. Este foi prontamente declarado ilegal e inconstitucional pelo governo de Madrid, posição que foi também rapidamente adotada pelo Tribunal Constitucional.
A atuação repressiva do governo de Madrid mereceu ampla condenação da Amnistia Internacional e de outras ONG defensoras dos Direitos Humanos
Respaldado na legalidade jurídico-constitucional espanhola e ignorando deliberadamente a natureza política da questão catalã, o executivo de Mariano Rajoy adota uma série de medidas retaliatórias e repressivas sobre a Catalunha, de que destacamos: o confisco de urnas, a invasão de jornais e tipografias, a intimação judicial aos alcaides que apoiam a realização da consulta popular, o envio de forças policiais e militares e a prisão de dirigentes políticos independentistas. No dia do referendo, a repressão das forças centralistas provocou mais de mil feridos entre os catalães que pretendiam exercer o seu direito de voto. A atuação repressiva do governo de Madrid mereceu ampla condenação da Amnistia Internacional e de outras ONG defensoras dos Direitos Humanos. De acordo com os dados oficiais, mais de 90% votaram a favor da independência e apenas 7% contra, mas a participação ficou-se pelos 43%.
No dia 27 de outubro, o Parlamento catalão proclamou unilateralmente a independência da República da Catalunha, após uma votação secreta, em que esta recolheu o voto favorável de 70 deputados, 10 contra e duas abstenções. Os deputados das formações anti independentistas abandonaram a sala antes da votação. Em resposta, Madrid, invocando o artº 155 da Constituição espanhola, suspendeu a autonomia da região, demitiu o seu governo e convocou eleições autonómicas para o dia 21 de dezembro. Para já, os dois maiores partidos independentistas (PDeCAT e ERC), anunciaram a sua participação no referido ato eleitoral, embora contestem a sua legitimidade, afirmando não temer o veredicto das urnas. Já a CUP ainda não tomou uma decisão.
Simultaneamente, a justiça espanhola, de forma claramente desproporcionada, acusa os principais dirigentes catalães de rebelião, sedição e desvio de fundos (para a realização do referendo). Puigdemont e outros cinco membros da Generalitat refugiaram-se, temporariamente, em Bruxelas, alegando falta de segurança e de garantias de um julgamento justo em Espanha.
Dez Reflexões
Historiado o essencial do processo, deixo aqui dez reflexões que revelam a minha posição pessoal sobre a questão:
1) A Espanha é um estado plurinacional e a Catalunha é uma das suas nações constituintes. Os catalães possuem uma língua e uma cultura próprias, distintas de outros povos ibéricos. Logo, é inalienável o seu direito à autodeterminação, isto é, a decidir o seu futuro político, seja a manutenção no seio do Estado espanhol, seja a independência.
2) Há quem considere o nacionalismo catalão egoísta, ou seja, característico de uma região rica que não quer financiar as mais pobres. É um facto que essa dimensão existe e está presente, essencialmente, no sentir de grande parte da burguesia regional e das forças políticas que o representam, como o PDeCat. Mas, para além de ser redutor reduzi-lo a essa questão (o nacionalismo de esquerda – representado, em especial, na ERC e na CUP - tem claras preocupações de justiça social e de autonomia cultural), ela não o deslegitima. Até porque existe um precedente no próprio Estado espanhol: se o País Basco e Navarra podem reter a totalidade dos impostos que cobram nas suas regiões, a coberto dos respetivos foros medievais, porque não a Catalunha?
3) Se a opção independentista triunfar, é essencial não esquecer que uma parte significativa dos residentes na Catalunha não são originários da região. Muitos deles vieram de outras partes do Estado espanhol e contribuíram, com o seu trabalho, para a riqueza de que aquela se orgulha e, na sua maioria, opõem-se à independência. Se a opção por esta vingar, devem ser respeitados, não só na teoria, mas também na prática, pelo que deverão ter direito à dupla nacionalidade (espanhola e catalã). Por outro lado, embora o catalão assuma, naturalmente, a primazia como língua oficial do novo Estado, o castelhano deve ser considerado língua cooficial e continuar a ser ensinado nas escolas.
4) A forma como foi conduzido o processo independentista não foi a mais feliz. Na verdade, uma declaração de independência decidida por uma maioria parlamentar assente em apenas 48% dos votos carece de legitimidade política. O próprio referendo de 1 de outubro também não serve para essa legitimação. Mesmo que a forma caótica com que decorreu tenha sido culpa do governo de Madrid e alguns tenham sido impedidos de votar, a verdade é que apenas 40% dos potenciais eleitores votaram pela separação. Dos seus resultados, pouco se pode inferir sobre a vontade da sociedade catalã.
5) Puigdemont, num primeiro momento, foi hábil ao suspender a proclamação da independência por 60 dias, abrindo uma porta ao diálogo com Madrid. Mas, face à intransigência do governo central, expresso na ameaça de aplicação do artº 155, cometeu um erro estratégico, ao não ter convocado eleições autonómicas por sua iniciativa. Se o tivesse feito, desarmaria o executivo de Rajoy, que deixaria de ter um pretexto legal para suspender a autonomia catalã. Contudo, o presidente da Generalitat acabou por ceder às pressões dos setores independentistas mais radicais e optou pela “fuga para a frente”, expressa numa declaração unilateral de independência “sem pés para andar”.
6) Desproporcionada e antidemocrática foi a reação dos poderes estatais espanhóis, violadora dos mais elementares Direitos Humanos, que só pode merecer a nossa condenação. Faz algum sentido, do ponto de vista democrático, reprimir um povo que quer votar? E, mesmo do ponto de vista da legalidade constitucional espanhola, a forma de aplicação do artº 155 é contestável. O governo central podia ter esvaziado a questão, não tentando impedir a realização do referendo, mas negando-lhe valor jurídico. Com as formações espanholistas a boicotar a consulta, teríamos, muito provavelmente, o desfecho de 2014 e o fracionamento do campo independentista.
7) A crise interessa Rajoy e ao PP. A braços com vários escândalos de corrupção, nada melhor que encontrar um inimigo para desviar as atenções. Não por acaso, a acusação arrasadora ao ex-tesoureiro do partido, Luís Bárcenas, e outros altos dirigentes “peperos” não mereceu grande destaque na comunicação social do país vizinho. Por outro lado, o primeiro-ministro, que não reconhece a plurinacionalidade do país (para ele, “há apenas um povo espanhol”, escreveu num artigo, quando o seu partido impugnou o novo Estatuto de autonomia), pretende vergar o independentismo catalão. E, ao aparecer como paladino da unidade de Espanha, ganha a opinião pública das restantes comunidades (com exceção dos bascos), obriga o PSOE a segui-lo sem conseguir imprimir qualquer marca distintiva e “entala” o Podemos, que fica “a meio da ponte”, defendendo a autodeterminação, mas não a independência.
8) A agressividade do nacionalismo centralista castelhano, travestido de espanholismo, acaba por se tornar, paradoxalmente, na grande ameaça à unidade do Estado espanhol. Ao optar pela intransigência e pela repressão pura e dura, culminada com a prisão de dirigentes de associações cívicas, a demissão das instituições autonómicas democraticamente eleitas e a perseguição judicial aos seus titulares, o governo de Rajoy apenas reforçou o capital de queixa e a estratégia de vitimização dos independentistas. Consequentemente, aumentou o apoio dos catalães à independência.
9) A questão catalã não é jurídico-constitucional, mas política. Invocar a Constituição espanhola, como faz o governo de Madrid, pode ser legítimo no plano teórico, mas não responde ao essencial. É claro que nenhum texto constitucional de um Estado reconhece o direito de secessão a uma parte do seu território. Mas, quando uma delas pretende a independência, a legalidade constitucional é, manifestamente, ineficaz. Restam, então, duas soluções para resolver o problema: o diálogo, que pode terminar num compromisso que envolva o aumento da autonomia regional ou a realização de um referendo sobre o estatuto do território, ou a repressão, que originará a escalada do conflito e, mais tarde ou mais cedo, a luta armada, seja uma guerra aberta (como na ex-Jugoslávia), seja através de uma guerrilha (como em Timor-Leste).
10) A única solução para o conflito passa pelo diálogo entre Madrid e Barcelona, que conduza à realização de um referendo pactuado entre as duas partes. Foi o que sucedeu no Québec (Canadá), por duas vezes, na Escócia (Reino Unido) e no Montenegro (Sérvia), com a rejeição da independência nos dois primeiros casos e a sua consagração no terceiro. Nesse caso, deverá ficar claro para os eleitores quais as condições de permanência no seio do Estado espanhol (a manutenção do “status quo”, um novo Estatuto que alargue a autonomia da região ou o federalismo) ou da independência (onde assumem particular relevo a permanência ou não na UE, a questão da dupla nacionalidade ou o estatuto da língua castelhana e o acerto de contas entre a Catalunha e a Espanha). Caberá, então, aos catalães decidir o que entenderem melhor para o território e respeitar a sua opção, seja ela qual for.
Artigo de Jorge Martins para esquerda.net
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Este texto foi escrito antes
Este texto foi escrito antes da prisão preventiva de oito elementos da "Generalitat", entre os quais o seu vice-presidente e líder da ERC, Oriel Junqueras. Tal medida é absolutamente desproporcionada, tanto do ponto de vista político como jurídico e só pode merecer o repúdio de todos os democratas. Mostra, claramente, que a direita espanholista, com a cumplicidade do PSOE, está disposta a tudo para abafar o independentismo catalão, inclusive o recurso a medidas próprias dos regimes autoritários. Não estaria na altura de os governos europeus (português incluído)deixarem de fazer coro com Madrid e mostrarem a Rajoy e seus pares que a prisão de dirigentes políticos eleitos é incompatível com as regras europeias? O problema é que, para eles, estas só valem para os défices!... Aqui deixo o testemunho da minha indignação e o apoio à libertação imediata dos dirigentes catalães presos.
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