Já desde 1988, que novembro é, em Coimbra, sinónimo de Festival Caminhos do Cinema Português. Mesmo sendo o único festival dedicado ao cinema nacional, continua a estar sujeito aos amplamente criticados regulamentos do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). Regulamentos que perpetuam um sistema de financiamento público escasso e continuamente matam a produção cultural em Portugal.
O cinema é uma arma cultural em todos os sentidos. É entretenimento materializado na comédia ou no romance. É um reflexo do ativismo de quem os produz. E é especialmente uma forma de protesto contra todas as forças opressoras, sejam sociais e políticas, ou venham de dentro da própria arte. Não há dúvidas de que a produção artística de protesto em Portugal tenha contribuído para o clima social que levou ao 25 de Abril.
Este sentimento de revolta que desde sempre motivou movimentos no cinema, e em toda a arte, não desapareceu, continua bem vivo, aliás. E, se em tempos estas forças que a arte tentava derrubar eram o Estado Novo e as diversas formas de censura, hoje é o racismo sistémico, homofobia, todas as formas de discriminação e, especialmente, o capitalismo e as instituições artísticas.
Onde podemos ver estas obras de cinema de protesto? Raramente nos cinemas comerciais e certamente não nos grandes festivais de cinema internacionais. As únicas salas dispostas a exibir autocríticas tão ferozes são as que recusam a influência desmedida destas mesmas forças opressoras. Contra um capitalismo selvagem que censura todas as obras que o criticam, respondemos com salas de cinema e financiamento público, capazes de denunciar este sistema sem medo de sofrer represálias. Contra a opressão artística que retira voz a todos os filmes que desafiam o status quo da arte e ultrapassam os limites daquilo que é considerado “moral” ou socialmente aceitável, respondemos com um grande festival de cinema nacional, onde os limites do aceitável são os limites da criatividade.
Este palco do cinema português é, sem dúvida o Festival Caminhos do Cinema Português. Um festival que, ao longo de uma semana, nos convida a desafiar estes limites. Um festival que nos obriga a refletir sobre colonialismo, saúde mental, violência de género, a natureza da arte, o papel da música e os efeitos do capitalismo. Enfim, sobre tudo aquilo que o cinema comercial é incapaz de criticar.
Destaco filmes como “Rosinha e Outros Bichos do Mato”, da realizadora Marta Pessoa – um documentário que dá uma nova voz às pessoas que sofreram com o colonialismo português e certamente estará entre os filmes mais importantes quando se fala de Estado Novo. “The Great Yarmouth - Provisional Figures”, de Marco Martins – com a sua crítica violenta aos efeitos do capitalismo, incluindo as inevitáveis redes de trabalho, que pouco se distinguem de tráfico de seres humanos. Ou “Baan”, da Leonor Teles – com a sua direção artística singular e a capacidade de introduzir diálogos sobre habitação, democracia e outras lutas sociais urgentes. Entre muitos outros que não tive oportunidade de ver.
Com este nível de produção cinematográfica nacional é difícil compreender como é possível que esta tenha tão pouca atenção nas nossas salas de cinema e festivais em território nacional. Mas há uma explicação simples que se resume nos problemas do ICA e como um festival também se faz de ativismo, foram amplamente discutidos ao longo do Caminhos. Falo principalmente nos apoios à produção cinematográfica e nos apoios à realização de festivais de cinema.
Por um lado, é difícil criar festivais de cinema, já que a disponibilização de fundos públicos requer a realização de, no mínimo, duas edições anteriores consecutivas. Por outro, é difícil manter vivos festivais com décadas de história, pois o acesso a estes mesmos fundos requer uma assistência mínima de 5000 espetadores na edição anterior, isto numa sociedade desabituada a ir à sala de cinema, com a agravante pandemia, que encerrou as salas de cinema durante meses.
Nos apoios à produção a história repete-se. As condições de elegibilidade de um filme independente de ficção incluem um número mínimo de 5000 espetadores (ou 20000 a partir de 2024) e a obrigatoriedade de uma estreia comercial no ano anterior. Isto dificulta não só o acesso ao apoio, excluindo, desde já, filmes que não conseguiram chegar às salas de cinema comerciais, como dificulta a promoção, excluindo filmes que estrearam em festivais de cinema e fazendo com que os espetadores de festivais não entrem na contagem de box office para filmes específicos.
Estas e muitas outras injustiças no financiamento público de produções culturais em Portugal relembram-nos do quão importante é lutar por uma cultura mais viva e apoiada no presente, para construir uma sociedade mais informada e humana no futuro. Algo que passa por mais verba orçamental, mas também por novos regulamentos, capazes de apoiar mais artistas e apoiar novos tipos de arte. Em novembro de 2024, o Festival Caminhos do Cinema Português continuará a resistir na sua trigésima edição como único festival de cinema português, enquanto isso, a luta continua!