Denys Pilash está cansado. Viajou mais de 500 quilómetros desde a capital ucraniana para Lviv para ser o anfitrião da Rede Europeia de Solidariedade com a Ucrânia e depois de ter dormido no chão assegurou as traduções entre inglês e ucraniano numa conferência que durou várias horas. Sem intervalos, passou de entrevista em entrevista com os visitantes que queriam ouvi-lo sobre a invasão, a situação da esquerda ucraniana e o futuro do seu país. Ainda assim, sentou-se connosco durante uma hora para explicar o trabalho do Sotsіalniy Rukh (Movimento Social) e o que estão a fazer para construir uma esquerda socialista democrática na Ucrânia:
“Eu fazia parte de um sindicato estudantil pequeno mas militante, determinante para impedir que os sucessivos governos comercializassem ainda mais a educação e aumentassem as propinas. Alguns de nós juntaram-se a uma nova organização, a Oposição de Esquerda. Esta foi a base para a Assembleia para a Revolução Social que depois se tornou no Movimento Social.
Participámos em muitas mobilizações e lutas. Temos vindo a lutar contra as propostas do novo código laboral neoliberal, implementadas durante os últimos 15 anos e, ainda assim, a classe capitalista ainda não conseguiu alcançar os seus objetivos.
Tentámos também direcionar o descontentamento popular, que esteve na base dos protestos do Euromaidan e de outras mobilizações, para que se perceba que todos estes problemas, desde a brutalidade policial, à falta de representação política e ao sentimento geral de insegurança económica e de falta de perspetivas de futuro, são resultado do sistema de capitalismo oligárquico e que é por isso que precisamos de falar numa alternativa económica e política.
O Movimento Social é uma organização completamente anti-capitalista. Defendemos uma rutura com o capitalismo neoliberal e oligárquico que domina a Ucrânia. Quando falamos em socialismo democrático, referimo-nos a uma sociedade organizada na base da propriedade coletiva dos meios de produção com auto-governo democrático, algo semelhante a algumas das ideias do socialismo a partir de baixo.
Se houver um auto-denominado socialismo sem democracia, isso implicará todas as deformações a que assistimos no passado soviético, no pior caso uma ditadura estalinista. Se houver uma auto-denominada democracia que não se estenda à democracia económica no local de trabalho, isso significa apenas reproduzir a dominação da classe capitalista na sociedade. A nossa visão inclui ainda as lutas pelos direitos das mulheres e direitos para todas as pessoas que são excluídas ou oprimidas pelo sistema de dominação existente.
"Podemos ser extintos pela guerra ou pelo desastre climático e ambas as ameaças estão muito interligadas"
Também ligamos a luta contra o sistema capitalista e pela emancipação dos trabalhadores com os temas ecológicos e ambientais. Precisamos compreender todos os estragos que são feitos ao ambiente tanto pelo modelo capitalista quanto pelo modelo burocrático soviético.
Vemos agora como está tudo interligado. Temos impérios dos combustíveis fósseis como a Rússia e a Arábia Saudita ou as empresas ocidentais a promover uma agenda agressiva e são ambos movidos pelas mesmas coisas que estão a destruir o planeta e a vida. Podemos ser extintos pela guerra ou pelo desastre climático e ambas as ameaças estão muito interligadas.
Ao Movimento Social aderiram muitos ativistas que vieram de organizações trotskistas e marxistas anti-estalinistas. Mas também pessoas com menos experiência política, sindicalistas recentemente politizados e pessoas que vinham dos meios anarquistas, que faziam parte do sindicalismo estudantil radical ou vinham de abordagens mais social-democratas. Desde o início, quisemos ter diferentes plataformas políticas e ideológicas para dar voz a estas diferentes filosofias políticas. Geralmente temos alguns desacordos mas nada que não possa ser ultrapassado. Nas questões estratégicas mais importantes, quando precisamos ajustar as nossas posições políticas, tentamos ter discussões longas.”
Denys recorda o seu percurso político com humildade e humor. Ri-se enquanto o conta:
“Comecei num grupo chamado Organização dos Marxistas, uma tentativa condenada desde o início de juntar as pessoas que se considerassem marxistas revolucionários. Estalinistas e anti-estalinistas. Mas era impossível reconciliar estas culturas políticas. Os nossos caminhos divergiram dramaticamente.”
Depois de lembrar uma lista impressionante de campanhas militantes, brinca:
“Participava num tipo de atividades sindicais, movimentos sociais, sessões de cinema de esquerda, alguns grupos de leitura, essas coisas que os sectários de esquerda costumam fazer.
Construir uma nova organização de esquerda à sombra do estalinismo não foi fácil.
Se olharmos para o terreno político dos países a que se chamava o bloco socialista, poucos têm partidos da nova esquerda viáveis, como o Razem na Polónia ou o Levica na Eslovénia. Há pouco espaço para a esquerda democrática. A palavra “socialismo” está desacreditada. Não digo que para sempre. Mas para falarmos com as pessoas reais na Ucrânia teremos de começar não pelos termos mas pela explicação do seu significado.
Entre os fatores que desacreditaram o socialismo está o impacto das políticas de capitalismo selvagem dos anos 1990 e a herança sombria do estalinismo com todas as suas atrocidades e crimes. Para além das políticas dos partidos que têm comunista ou socialista no seu nome.
"Até mesmo os oligarcas dirão que são contra os oligarcas"
Ansioso por cooperar com os governos burgueses pró-russos, o Partido Comunista da Ucrânia era um partido conservador socialmente, não tanto pró-trabalhador quanto era pró-pena de morte, Igreja ortodoxa e defensor de “valores tradicionais” como a homofobia. Posições políticas que pareceriam muito más até a um campista ocidental. Mas no espaço pós-soviético é isso que é o Partido Comunista. E depois há diferentes tipos de chamados partidos socialistas que são essencialmente veículos para aventureiros políticos corruptos. O original Partido Socialista da Ucrânia foi em tempos visto como um farol de esperança para a esquerda democrática e uma oposição combativa ao Presidente Kuchma que foi o arquiteto deste sistema capitalista oligárquico na Ucrânia. Depois começou também a vender-se.
Estas circunstâncias estimularam uma alergia generalizada a qualquer coisa que estivesse ligada à União Soviética. Mas as pessoas têm um ódio igual, se não maior, contra os oligarcas. Poucas na Ucrânia estão satisfeitas com o sistema existente e estão particularmente desapontadas com a forma como um punhado de pessoas ainda controla efetivamente não apenas a economia mas também o sistema político. E até o atual presidente prometia uma guerra aos oligarcas. Mas o problema é que todos os partidos oligárquicos e até mesmo todos os oligarcas dirão que são contra os oligarcas.
É preciso explicar que o problema não é exclusivo do nosso país, apesar de aqui na Ucrânia e na Europa de Leste em geral termos como oligarcas algumas pessoas particularmente vis, criminosos que nos anos 1990 enriqueceram com o processo de acumulação primitiva de capital. A raiz do problema é o sistema de exploração. O sistema que te deixa sem meios de subsistência. E, ao mesmo tempo, dá lucros aos que são mais incompetentes e gananciosos.
Participando nas lutas nos locais de trabalho e solidarizando-se com outras pessoas que enfrentam despedimentos, baixos salários, discriminação, podemos apoiá-las e falar-lhes sobre os problemas comuns e desafios que enfrentamos.
No momento em que o Partido Comunista foi banido devido à lei de descomunização, já estava efetivamente morto. Tinha perdido a sua base, a sua militância, apenas existia no papel.”
"A exigência da independência ucraniana foi primeiro levantada pelos marxistas"
Apesar do Partido Comunista não ser um verdadeiro partido de esquerda, a legislação de descomunização é uma ameaça à verdadeira esquerda. Denys explica:
“Claro que a legislação de “descomunização” tornou muito mais difícil de defender qualquer tipo de política de esquerda. Escrevi vários artigos contra essa lei. Diminui o espaço para qualquer tipo de política progressista.
Nega uma parte enorme da própria história ucraniana porque o movimento de libertação nacional ucraniano foi de esquerda desde o início e as pessoas que são veneradas como os maiores escritores ucranianos, entre os quais Ivan Franco e Lesya Ukrainka, eram socialistas. A exigência da independência ucraniana foi primeiro levantada pelos marxistas.
A lei justificava, então a extrema-direita aproveitou e podia espancar alguém na rua e dizer: “era um comuna”. Legitimava-os.”
A extrema-direita na Ucrânia tem recebido muita atenção da esquerda ocidental. Ao som das sirenes de aviso dos ataques russos, Denys explica o terreno da política racista e nacionalista:
“A extrema-direita aqui é minúscula em termos de dimensão mas era e é uma força nas ruas. Apenas numa altura, uma força de extrema-direita, o Svoboda, entrou no parlamento enquanto lista partidária. Na maioria das eleições, alcançam perto de 2%, isto é uma indicação do seu verdadeiro apoio social.
Temos diferentes tendências de extrema-direita. O Svoboda é um velho partido populista de direita. Começou por ser o Partido Nacionalista Social da Ucrânia mas, com a ajuda de alguns conselheiros estrangeiros, foi rebatizado para ganhar uma imagem mais moderada. Por esta altura eram amigos do partido da Le Pen e agora são seus inimigos mortais porque a maior parte da extrema-direita europeia é pró-Putin e Putin é pró-extrema-direita. Agora é um partido etno-nacionalista confinado à Ucrânia ocidental.
E há o Movimento Azov, o Partido Corpo Nacional construído a partir da unidade militar. O Azov já não é um batalhão separado, desde há sete anos que é um regimento enquadrado pelo Ministério do Interior da Ucrânia. Mas perderam o apoio do seu patrono, o poderoso ministro do Interior do qual finalmente nos livrámos.
Nos anos mais próximos, as perspetivas para a extrema-direita eram bastante pessimistas porque têm estado a perder terreno e legitimidade política. Mas agora a invasão reforça alguma da sua legitimidade enquanto defensores da Ucrânia. Contudo, ao contrário do que aconteceu há oito anos, com o início da guerra no Donbass, há agora uma resistência generalizada da sociedade. Assim, a percentagem da extrema-direita na resistência é muito, muito baixa.
Na resistência há pessoas de todas as origens étnicas, de todas as regiões, falando línguas diferentes, homens e mulheres com diferentes pontos de vista mas a maior parte são pessoas que se consideram apolíticas. Todas se juntam na resistência e contra a agressão. A extrema-direita não consegue reivindicar que esta seja a sua luta. É a luta de uma nação multi-étnica.
Temos dois pontos de vista que co-existem durante a guerra mas que se excluem mutuamente.
O primeiro é uma visão hiper-nacionalista de uma Ucrânia mais etnicamente homogénea. Dizem que nos temos de juntar à volta da bandeira e tornar-nos o oposto de alguma coisa que seja percebida como russa. E é verdade que muitas pessoas que costumavam ser bilingues ou russófonas se sentiram tão perturbadas pela invasão russa que decidiram não voltar a falar russo.
Por outro lado, temos pessoas russófonas, pessoas que falam ucraniano, pessoas das comunidades e minorias mais carenciadas e discriminadas como os ciganos que se juntaram ao esforço militar, à defesa territorial, às redes de voluntariado humanitário e assim por diante. Isto sublinha o quão diversos somos e como precisamos de promover esta variedade de comunidades e regiões dentro da Ucrânia.
Tivemos um processo de descentralização mas, em muitos casos, foi verdadeiramente uma política de austeridade que baixava os orçamentos do nível estatal para o local. Precisamos de uma devolução que faça com que haja uma democracia direta nas comunidades locais e com que estas possam ter influência nas suas cidades, vilas, aldeias, mas também algum tipo de identidade regional, que decidam que tipo de políticas culturais preferem.
"Precisamos de verdadeiras lutas por objetivos alcançáveis que sejam compreensíveis e sustentáveis"
Voltámos a ter um processo de renomear ruas para abandonar nomes russos e desse tipo. Mas poderemos ter um discussão calma e honesta que inclua realmente o interesse de todas as comunidades que estão representadas de modo a não excluir qualquer parte da sociedade? Por exemplo as pessoas da Transcarpácia, de Lviv, do Donbass, de Bessarabia à volta de Odessa são muito diferentes mas ao mesmo tempo muito semelhantes. É preciso abraçar isso.”
O Movimento Social está a criar um programa que resiste às tentativas patronais de transferir todo o fardo da guerra para a classe trabalhadora e quer construir a Ucrânia em novas bases:
“Olhemos para o programa de transição e para as reivindicações designadas por Trotsky como medidas de transição. É o contrário da ideia de que temos de ter apenas partidos reformistas e estalinistas com programas máximos, que dizem que de alguma forma no futuro se vai alcançar algum tipo de sociedade justa, de comunismo, etc., mas por enquanto teremos apenas lutas minimalistas sem ligação entre elas. Em vez disso, precisamos de verdadeiras lutas por objetivos alcançáveis que sejam compreensíveis e sustentáveis mas que revelem uma perspetiva revolucionária mais alargada. É preciso mostrar porque é que é preciso ir além da lógica do sistema capitalista atualmente existente.
Por exemplo, quando exigimos sanções contra as elites russas, podemos apontar que existem muitos alçapões, exceções, que são fornecidas pelo sistema dos paraísos fiscais. E estes são usados não apenas pelos oligarcas russos como também pelos ucranianos e pelo bilionários de todo o mundo. As classes dominantes que geralmente votam a sua população ao abandono para proteger a sua riqueza. Precisamos de desmantelar o sistema capitalista dos offshores, mas as mesmas pessoas que aí escondem a sua riqueza gerem o sistema e escrevem as leis.
Se falarmos sobre o cancelamento da dívida da Ucrânia, este problema também é global. Os países e os seus povos estão presos no círculo vicioso da dívida, obrigados a contrair mais empréstimos para pagar empréstimos anteriores. E isto anda a par com a austeridade implementada pelo FMI. É algo que a Ucrânia partilha com os povos das periferias europeias e com o Sul Global.
Até nos países mais prósperos as classes trabalhadores sofrem com as políticas de austeridade. Os problemas dos nossos enfermeiros, dos nossos trabalhadores da construção civil e dos nossos ferroviários, só para citar alguns dos sindicatos com os quais colaboramos de forma próxima, são muito semelhantes aos dos seus colegas europeus. A magnitude é diferente entre os países mais pobres e os mais ricos mas as disparidades, as desigualdades e injustiças, são muito visíveis em todo o lado.
Em todos estes casos, tal como no nosso clamor contra a agressão imperialista e os combustíveis fósseis, apresentamos exigências para a Ucrânia e vemos como estas a transcendem no sentido de algo que é necessário em todo o mundo. Precisamos realmente de romper com o sistema. Mas, a partir de algo relativamente pequeno, podemos mostrar o panorama geral ao povo, tanto aqui como no ressto do mundo.
Denis Pilash é cientista político, editor do "Сommons" e ativista do Sotsialniy Rukh (Movimento Social).
Ruth Cashman é sindicalista na Lambeth Unison e ativista do Momentum.
Publicado originalmente no Workers' Liberty a 17 de maio. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.