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O que esperam os estudantes de medicina

O ano comum é essencial para os estudantes de medicina obterem experiência na prática médica, trabalharem em algumas especialidades e porem em prática algumas técnicas que não constam nos manuais o que contribui para um melhor ensino. Então porque é que querem acabar com o ano comum? Por Tomás Nunes.
Foto de Paulete Matos

Sou aluno de medicina, frequento o 2º ano de licenciatura na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). A principal razão que levou a ingressar no curso de medicina resume-se na minha vontade de ajudar as pessoas e prestar ao público.

Quando entrei na FMUL disseram-me que estava numa faculdade onde a procura pelo ensino de excelência era prioritária. Desconfiei, pois não sabia de que género de excelência se tratava. A excelência é uma palavra muito perigosa, pois poucas coisas são tão subjetivas. A minha “excelência” baseia-se no acesso público à educação, no passar de informação dos professores aos alunos e o acesso a estabelecimentos com todas as condições necessárias para um ensino atualizado (nada de exuberante). Podia perder tempo a dizer que o curso não tem sido aquilo que esperava, frequento aulas de anatomia onde não se vê nem um dedo (literalmente), salas de autópsia dos anos 50 e algumas matérias são dadas à pressa. Pergunto-me se isto será normal, será que não se podiam melhorar um pouco as coisas?

Mas como se não bastasse estar preocupado com o rumo atual do curso, surge agora uma nova ameaça. Já é conhecido no meio académico o Decreto-lei publicado para discussão no Boletim do Trabalho e Emprego, no dia 30 de Janeiro deste ano (2015), que propõe a extinção do ano comum e a alteração da Prova Nacional de Seriação (PNS).

Vamos por partes, o ano comum é um ano essencial para os estudantes obterem experiência na prática médica, trabalharem concretamente em algumas especialidades e porem em prática algumas técnicas que não constam nos manuais o que contribui para um melhor ensino. Então porque é que querem acabar com o ano comum? Querem acabar com o ano comum usando o argumento económico, como é muito caro formar um médico, propõem encurtar o curso, passando o 6º ano a ser um ano profissionalizante.

Mas há vários problemas, nem todas as escolas médicas têm capacidade para profissionalizar o 6º ano, o outro problema é o facto de isto ser uma machadada na nossa formação, isto é um ataque acérrimo à formação médica. Nenhum estudante de medicina concorda com esta decisão ridícula que ironicamente advém de médicos (ACSS), não queremos perder um dos anos mais formativos e pedagógicos. Será esta a tal “excelência” venerada pela direita que governa este país? Podia dizer que formar médicos não é um custo mas um investimento, porém para este Governo a educação pública é uma ”gordura” orçamental e até lá sou formado à pressa, apressam-me a ser um médico capaz de ajudar as pessoas, isto no fundo é entregar a saúde dos utentes a pessoas menos preparadas do que aquilo que é suposto.

Neste pacote de reformas destrutivas está também planeada a alteração da bibliografia para o exame, querem seguir o modelo praticado nos Estados Unidos da América. Aqui já não há cortes nas gorduras, pergunto-me quando custará ao Estado importar estes exames visto que cada exame custa centenas de euros? A alteração da PNS deve ser feita de acordo com a realidade dos problemas que serão enfrentados pelos futuros médicos e não de qualquer forma. A PNS terá como alteração mais nociva o objetivo de reprovar os alunos que tenham uma nota inferior a 50%, ora a PNS só tem como objetivo distribuir os internos por especialidade de acordo com a respetiva média, esta reforma vai criar uma geração de médicos indiferenciados cujo futuro profissional é altamente incerto.

Já perdi um ano de curso e agora vou ter uma PNS completamente alterada, será que beneficio com alguma destas reformas? Não, nem eu como estudante, nem os utentes. Esta reforma é pura e exclusivamente ideológica, cortar na despesa pública e destruir o ensino público, para dar lugar a quê? Vão elitizar ainda mais o acesso ao ensino superior, vão construir as primeiras faculdades privadas de medicina, vão gastar mais milhões com tarefeiros?

Como aluno de medicina e utente do SNS não posso deixar de me sentir traído e desrespeitado por este governo PSD/CDS cuja ideologia destrói o Estado Social a cada dia que passa. Pago as propinas, suporto todos os custos de deslocação, os livros, o aluguer do quarto a cantina e vejo o meu curso a ser destruído. Não quero ser médico num país que não dá condições aos profissionais de saúde, ninguém quer trabalhar num ambiente caótico, onde os utentes morrem em salas superlotadas, quero ajudar as pessoas, usando a formação que mereço, num sistema público que sirva o povo de forma digna, tal como está escrito na Constituição de Portugal: acesso a educação pública e aos serviços de saúde públicos.

Passemos à ação. Foi criado, em 2011, o Grupo de Trabalho de Revisão do Regime do Internato Médico, pelo Ministério da Saúde com o propósito de avaliar a possibilidade de eliminar o 7º ano e criar um novo sistema para a PNS. A ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) fará parte deste GT, ao menos haverá um organismo estudantil envolvido. A ANEM mostrou-se contra todas as alterações que fazem parte deste Decreto-lei, foram organizadas algumas RGA’s para debater o assunto, mas até agora não tem havido nenhuma mobilização nacional por parte dos estudantes de medicina de Portugal. A Ordem dos Médicos mostrou-se contra a extinção do ano comum e alguns sindicatos médicos também se mostraram contra.

Os estudantes de medicina têm de se unir à volta deste assunto, não podemos ficar impávidos enquanto o SNS é destruído, enquanto o nosso ensino é desmantelado. É essencial criar núcleos estudantis para mobilizar e manter os estudantes informados, a ANEM deveria organizar reuniões para envolver todos os estudantes neste processo, democratizar este assunto e acabar com a política das reuniões de porta fechada. Temos de lutar contra este DL, lutar para que o ano comum seja um ano de aprendizagem acompanhada e para que a PNS seja finalmente coerente com aquilo que se espera de um médico.

Contributo de Tomás Nunes, estudante de medicina

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