Entrevista

O novo livro de Alexandra Lucas Coelho é "a linha do tempo" do genocídio em Gaza

17 de junho 2025 - 10:15

A escritora Alexandra Lucas Coelho fala ao Esquerda.net sobre o seu mais recente livro, objeto do seu trabalho de denúncia do genocídio em curso na Faixa de Gaza.

porDaniel Moura Borges

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Alexandra Lucas Coelho, Gaza está em toda a parte
Fotografias no interior de "Gaza está em toda a parte".

Gaza está em toda a parte é o título do mais recente livro de Alexandra Lucas Coelho, que reúne reportagens, crónicas, e textos nunca publicados. Em entrevista ao Esquerda.net, a autora fala sobre "a linha do tempo" do genocídio em Gaza que este livro em formato de 'arquivo' compreende.


Este é um livro que reúne vários formatos literários, fotográficos e até cartográficos. Acaba ele próprio por ser um mapa da Palestina pós-7 de outubro. Porque é que surge agora e com que lógica é que articulas estes diferentes formatos num sentido literário?

A 7 de Outubro de 2023 voltei a casa de uma caminhada, peguei no telefone e ao ver as notícias tive a sensação nítida de que o tempo se abria ali. Nada seria igual. Ao fim do dia consegui comprar um voo para Telavive, entre tantos cancelados. Já não trabalhava como repórter havia anos, não tinha qualquer plano, simplesmente precisava de ir, queria estar lá. Palestina/Israel, era parte da minha vida desde 2002: mais de duas décadas a ver o avanço da ocupação na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental; e em Gaza dois milhões de humanos enclausurados, de facto abandonados por todos os governos, algo sem paralelo na Terra.

Esse voo acabou por ser cancelado na escala, fui forçada a voltar. Dois ou três dias depois, Israel começou a deslocar em massa as pessoas em Gaza. Decidi escrever um texto, perguntei ao Público se o publicavam. Tinha de fazer o que eu podia fazer: pensar o que estava em curso ligando pontos, partilhando tantos anos no terreno, tantas idas a Gaza. E isso seria também combater o que já se anunciava desde aqueles primeiras semanas de Outubro, com a colaboração ou o silêncio de Portugal e da Europa: um horror inédito no nosso tempo. Era muito difícil dormir, fazer ou sequer pensar outras coisas. Então, continuei a escrever textos não-solicitados, que o jornal foi acolhendo. Em Dezembro foi possível combinar com o Público uma série de reportagens lá durante um mês (uma ida viabilizada também por uma série de diretos que propus à CNN). Após esse mês, voltei a enviar textos de opinião avulsos para o jornal, até que sugeri uma coluna quinzenal, que se concretizou em Julho de 2024 (durou até Março seguinte). Pelo fim de 2024 comecei a pensar num livro. Inicialmente, seria só para reunir esses textos pós-7 de Outubro. Mas quando fui reler a minha última ida a Gaza seis anos antes, e depois achei as fotografias dessa estadia, tudo aquilo parecia ser a véspera do ataque do Hamas. O sufoco à beira de explodir. Então, o livro começou a ter várias camadas, com Gaza a abrir, como introdução: o único texto do livro que é pré-7 de Outubro, situando os leitores num território onde a imprensa internacional não mais pôde entrar, dando o contexto para o que se segue: a crónica de um genocídio em direto, nos nossos telefones.

"Gaza Está em Toda a Parte" é assim a linha do tempo deste genocídio, avançando data a data por cima de cada texto. As datas são a matança & o silêncio em movimento. Como, na parte de baixo, as notas de rodapé são outra camada, actualizando, contextualizando ou dando as referências do que está no texto.

E há as duas sequências de imagens a seguir aos dois núcleos de reportagem: um total de 148 fotografias quase todas inéditas, escolhidas a partir de milhares, montadas sempre em dupla página. Pensei nessa montagem como a parte mais livre e misteriosa do livro. Por isso as imagens não estão junto do texto, não têm margens brancas nem legendas perto. Estão ali em silêncio, ocupando toda a mancha da página, umas em relação com as outras, para que cada leitor imagine, duvide, pense o que quiser. O conjunto detalhado de legendas aparece só no fim do livro. Ainda uma outra camada, depois do texto e das imagens.

Tudo isto foi sendo construído ao longo de muitas semanas, enquanto o horror continuava, e ia alterando, e acrescentando, o livro. Algo só possível com a generosa cumplicidade da paginadora, Fátima Buco, que me permitiu todas as experiências e atualizações, e a confiança preciosa do meu editor Zeferino Coelho, que me deu liberdade total. Nunca tinha feito um livro assim, espécie de arquivo, assemblagem e reflexão em tempo real.

Escolheste adicionar um texto anterior ao 7 de outubro. Isso significa que dás ao livro duas temporalidades distintas. Mas, como fazes questão de salientar, esta história não começa a 7 de outubro. Esse texto é uma forma de fazer a ligação entre a história longa de opressão do povo palestiniano e o genocídio em curso?

Eu já escrevera sobre os palestinianos em três livros anteriores, Oriente Próximo (que tem um longo fresco histórico no primeiro capítulo), E a Noite Roda e Líbano, Labirinto (onde estão os refugiados palestinianos fora da Palestina, que as democracias ocidentais descartaram há décadas, delegando na UNRWA/ONU mantê-los apenas vivos).

A guerra contra os palestinianos tem mais de cem anos, remonta aos finais do século 19, com o nascimento do sionismo moderno, que foi também uma resposta ao monstruoso e antiquíssimo anti-semitismo europeu — e uma resposta conveniente para as elites europeias anti-semitas, que em muitos casos se tornaram aliadas do sionismo. Pois se os judeus fossem para a Palestina essas elites ficavam livres deles. Anti-semitismo e sionismo foram bons compinchas. Havia o detalhe de naquela terra haver já um povo, mas isso não atrapalhou demasiado os europeus. E continua a não atrapalhar demasiado.

Uma das coisas que o 7 de Outubro fez foi mostrar como está vivo e implacável o racismo da velha Europa colonial. À custa do sacrifício sem precedentes dos palestinianos.

Neste momento, parece haver uma viragem (mesmo que tímida) no discurso dos media sobre o massacre que Israel está a perpetrar em Gaza. Enquanto escritora e jornalista, que avaliação fazes dessa mudança?

A palavra genocídio já aparece nos mais respeitáveis relatórios ou oradores, é mais difícil os líderes europeus ignorarem. Mas a evolução foi muito tardia e é altamente insuficiente. Cortem todas as relações com Israel. Sancionem, boicotem, isolem. Expulsem Israel das Nações Unidas. Tratem-no como o Estado pária que é, doente e destruidor. Então, falaremos de viragem. 

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.
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