Cultura

“O Mediterrâneo tanto une como transporta conflitos enormes”. Entrevista a Silvia Di Marco

01 de novembro 2024 - 20:07

O festival de cinema Olhares do Mediterrâneo faz uma década e traz a Lisboa perspetivas femininas de todo o Mediterrâneo. Em entrevista, uma das organizadoras fala ao Esquerda sobre a importância dessas perspetivas e os conflitos que naturalmente exprimem, desde o genocídio da Palestina até ao colonialismo.

porDaniel Moura Borges

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Silvia di Marco
Silvia di Marco. Fotografia de Esquerda.net

O festival Olhares do Mediterrâneo teve a sua primeira edição em 2014. Cumpre uma década este ano, sendo o primeiro festival internacional de cinema em Portugal dedicado exclusivamente à cinematografia feminina. Mas, ao recolher perspetivas de todo o Mediterrâneo, centra-se muitas vezes sobre migrações, conflitos militares ou desigualdades profundas ligadas ao colonialismo.

Este ano a Palestina é questão central, bem as encruzilhadas entre colonialismo pelo Mediterrâneo. Com a escalada dos conflitos armados tanto na Europa como no Médio Oriente, o futuro do festival parece debruçar-se mais sobre banalização do mal e a miséria da guerra.

Silvia Di Marco é italiana e vive em Portugal há quase 20 anos. Foi jornalista na área da ciência e fez doutoramento em Filosofia da Ciência, trabalhando a relação entre a ciência e a arte. Agora, faz parte da pequena equipa que organiza o festival. Em entrevista ao Esquerda, falou sobre as perspetivas contrastantes das realizadoras de todo o Mediterrâneo mas também do que as une, sem se esquecer de falar sobre a Palestina e a política migratória da União Europeia.


O festival já é organizado há mais de uma década, mas este ano acontece num contexto particularmente difícil, com o genocídio na faixa de Gaza. Como é que organizaram o festival tendo em conta esta questão?

Tudo começa pela programação. Quando se pensa a programação, o contexto é sempre importante. Temos atenção ao que acontece no mundo, e no caso da Palestina foi imediato. Na edição do ano passado, depois de 7 de Outubro e depois de começar a guerra contra Gaza, nós já tínhamos a programação feita, mas ainda assim conseguimos dar destaque especial à Palestina. Para este ano o enfoque foi também a Palestina, porque para nós o festival promove o trabalho das realizadoras do Mediterrâneo, mas isso é uma forma de fazer política e, portanto, não podemos ser cegas a isso. Portanto, começa pela programação, pelas escolhas dos filmes e pelos contactos que se fazem na organização dos debates e dos workshops, e passa por essa sensibilidade em querer que este festival de cinema seja um momento de promover o cinema enquanto forma de criar sentido. E isso pode ser feito de muitíssimas formas. Nós escolhemos fazê-lo num sentido mais político, lidar com situações correntes, e o festival sempre se colocou claramente na questão palestiniana. A nossa posição foi sempre muito clara.

O festival é organizado em torno do Mediterrâneo, que ao mesmo tempo une e afasta, e isso apresenta várias perspetivas completamente diferentes. Esse é o grande centro da discussão política?

Sim. Isso vê-se também a partir da programação. Nós abrimos uma chamada para filmes e vê-se logo que há um lado do Mediterrâneo, onde se produzem muito mais filmes e com melhor qualidade técnica, e há outros lados do Mediterrâneo, de onde nos chegam muito menos filmes. E vê-se logo a diferença nos temas tratados. Nós recebemos filmes sobre os mais variados temas, e essa variedade também reflete a variedade de preocupação das mulheres. Em cada festival há sempre temas que são mais visíveis, vemos que o que preocupa mais as cineastas do norte do Mediterrâneo é muitas vezes diferente do que preocupa mais as do sul. Por exemplo, os filmes que vêm do Líbano muitíssimas vezes têm ainda a ver com a guerra civil e com a revolução de 2019, portanto são sempre muito políticos. Na Palestina também se produziam filmes, agora é muito mais difícil. Normalmente têm a ver com a ocupação, com a memória e com a resistência. Muitos dos filmes que recebemos do Egito, de Marrocos e da Tunísia, têm muito a ver com as condições das mulheres - mas não só.

Sobre a experiência concreta de mulheres realizadoras, há temas que unam as mulheres de todas as áreas do Mediterrâneo?

Sim. Eu atrevo-me a dizer que é difícil encontrar um ponto de ligação que abranja todas, mas há uma certa visão do “comum”. Do que são as relações, de pensar a expressão cinematográfica para contar histórias de relações de qualquer tipo: relações familiares, relações de comunidade, relações de poder, relações políticas. As relações são muitas vezes o ponto de partida dos filmes. Em termos de expressão cinematográfica, há muita diferença. Sendo que se vê muito no norte da África, especialmente Marrocos, Argélia e Tunísia, a influência da França. Mas são estilos muito diferentes, e o nosso trabalho é valorizar esta diversidade.

Silvia di Marco

Falavas de uma relação entre dois lados, um norte e um sul, e isso tem também a ver com o colonialismo, que também é um tema que o festival aborda. O que é que aprendeste ao longo do tempo sobre essa relação, e como é que isso se expressa no cinema?

O que eu tenho aprendido imenso é a desmontar os meus estereótipos das mulheres do Sul Global e, em especial, das mulheres dos países islâmicos. E acho que é algo de extremamente precioso. Acho que nos abriu imenso os olhos sobre o facto de o modo de vida das mulheres nos países islâmicos ser tão diverso como o nosso. Sendo que há diferenças políticas enormes e que o quadro formal dos direitos é claramente melhor na Europa do que em muitos países islâmicos. Mas dentro deste quadro formal, a liberdade real das pessoas, a forma das mulheres verem as suas vidas e criarem formas de resistência é muito forte. Por exemplo, a questão do véu a mim mudou-me completamente a perspetiva. Pode ter a ver com opressão, mas pode também não ter nada a ver com a opressão, pode ser uma escolha. E em em vários países, como o Egito, estas mulheres, que têm formas diferentes de se relacionar com a cultura do país, também conseguem trabalhar juntas. Acho que temos imenso a aprender com isso.

Partindo disso, o que é que a perspetiva das mulheres realizadoras contribui a esta discussão sobre a questão colonial?

Traz uma perspetiva que é menos visível. E também mostra formas de colonialismo cruzadas e de injustiças cruzadas, por exemplo. Descobrem-se pormenores e histórias mais escondidas que não encontramos na grande história do colonialismo e da descolonização. Há dois anos passámos um documentário sobre o trabalho doméstico no Líbano, onde há uma estratificação social muito grande. Há muitas emigrantes do Bangladeche, mas também de alguns países africanos, que vão trabalhar como empregadas domésticas. É uma das histórias cruzadas do colonialismo e de direitos de mulheres. Para algumas mulheres terem o direito a trabalhar e o direito a ter uma vida plena, outras têm de ser exploradas. São estes os temas que aparecem.

O Mediterrâneo tem essa ligação a uma cadeia de trabalho global, onde parece que há uma espécie de explorações cruzadas, não é?

Sim, podemos dizer que são cruzamentos de poderes e de exploração, mas também cruzamentos de esperanças, de mudanças, de desafios e desejos de mobilidade. Nós estamos habituados a ver a migração como algo mais masculino e aqui emerge também a migração feminina. É interessante pensar o Mediterrâneo como um lugar de fragmentação e de conflito. É verdade que o Mediterrâneo tanto une como transporta conflitos enormes. É um mar que não é muito grande, mas que tem à sua volta uma diversidade cultural muito grande.

O que é esta identidade mediterrânica? Porquê pensar a partir daí?

O festival surgiu por inspiração de um outro festival, em Marselha. E inicialmente tinha mais a ideia de celebrar a cultura mediterrânica. Portugal tem esta condição um bocadinho estranha de, não sendo geograficamente um país do Mediterrâneo, ter uma cultura parecida por ser um país do Sul da Europa. A ideia era trazer mais conhecimento das outras culturas do Mediterrâneo a Lisboa, e ao fazer o festival fomos pensando cada vez mais no que quer dizer o Mediterrâneo. Se calhar inicialmente havia esta ideia, atrevo-me a dizer entre o folclórico e o antropológico, relativamente à diversidade do Mediterrâneo. Com o passar das edições, começámos muito rapidamente a pensar muito mais nas profundezas desta diversidade a nível político, a nível artístico, a nível de vivências quotidianas.

Há uma geografia real e há uma geografia simbólica e política. Onde é que Portugal se encaixa?

Encaixa-se muitíssimo na linguagem cinematográfica que é usada, na forma como são representadas as relações dentro da família e também nas condições materiais em que o cinema é feito. Deixando França de fora, que é um caso um bocadinho à parte, porque tem uma indústria cinematográfica muito forte. As portuguesas partilham muitas das dificuldades das suas colegas, na Grécia ou na Croácia. A ausência de mulheres vê-se muito também nas equipas técnicas. Nós, como festival, criámos em 2020 uma rede de festivais de cinema de mulheres do Mediterrâneo, que é ainda pequena, mas queremos torná-la mais abrangente.

Há uma tensão muito forte em fazer um festival de cinema com foco nas migrações em Portugal, que reside no facto de a União Europeia ser um dos maiores financiadores de cinema na Europa, e ao mesmo tempo estar a aplicar uma política de migrações que choca com as perspetivas que vocês apresentam. Concordas?

Nós vemo-nos como um pequeno lugar de de resistência, mas para conseguirmos ter este lugar de resistência precisamos do apoio financeiro das instituições contra as quais queremos resistir. Temos uma abordagem pragmática. Acho que temos de continuar a levantar bem alto a voz dentro das instituições. Temos de utilizar os instrumentos que, por enquanto, a própria União Europeia nos dá para fazer esta esta resistência. Uma coisa que acho que caracteriza também as instituições europeias é que são tão grandes que tens as políticas oficiais, mas depois tens sempre formas de oposição dentro destas políticas. E temos de fazer tudo o possível para contrastar estas políticas oficiais que vão em direções cada vez mais autoritárias e cada vez mais injustas.

A região do Mediterrâneo, especialmente nos últimos anos, tem visto um agravar de conflitos militares. As tensões estão a aumentar, podem vir a desdobrar-se mais nos próximos anos. Como é que isso influenciará o trabalho que vocês fazem no festival?

Vamos ver isso já para o ano nos filmes que vamos receber. Em particular o que virá do Líbano, que está a ser atacado. Durante a chamada crise dos refugiados, nós começámos a receber imensos filmes, em especial documentários, sobre o tema. Filmar uma guerra é diferente. Em Gaza é impossível, ninguém entra e quem entra é morto. Fazer filmes sobre situações de guerra é muito difícil. Acho que vamos ver uma influência no que recebemos do Sul e do Leste do Mediterrâneo em termos de temas tratados. Do lado norte do Mediterrâneo não sei qual é a sensibilidade, vamos recebendo coisas, mas poucas. Mas as coisas que recebemos nesta situação são sempre muito interessantes, sendo que a maioria tendencialmente quando tem a ver com situações de conflito, de guerra, de resistência, são documentários que têm um cariz mais de reportagem do que propriamente cinematográfico. 

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.