O legado ecologista de Manuel Sacristán

13 de fevereiro 2022 - 13:28

O filósofo marxista espanhol foi um precursor do pensamento ecologista. Em 2021 foi publicada uma recolha dos seus textos dedicados ao tema. Por Miguel Manzanera Salavert.

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Manuel Sacristán.
Manuel Sacristán.

A personalidade intelectual de Manuel Sacristán Luzón (1925-1985) é bem conhecida nos meios de esquerda e anticapitalistas dos nossos países ibéricos. Agiu como membro dirigente de dois partidos comunistas – o PSUC (Partit Socialista Unificat de Catalunya) e o PCE – em plena clandestinidade sob a ditadura fascista de Franco, entre 1956 e 1969. Deixou estes cargos quando previu a crise do marxismo e de perda de credibilidade destes partidos comunistas, após os acontecimentos de 1968 – aquilo a que chamou "a dupla chamada de atenção": o fracasso da revolução proletária em França em Maio de 68 e a Primavera de Praga. Isto levou-o a refletir sobre os fundamentos da teoria marxista e a investigar os novos desenvolvimentos históricos que chegaram com o neoliberalismo e a cultura pós-moderna a partir de 1980.

Nos últimos anos, foram publicados muitos dos textos do autor que permaneciam inéditos. No livro que agora apresentamos, escolhemos os textos que se referem especificamente a problemas ecológicos, que se estão a tornar cada vez mais graves no século XXI. Graças ao seu vasto conhecimento da filosofia e da ciência, Sacristán teve uma extraordinária capacidade de antecipação para prever as dificuldades que a humanidade enfrenta hoje e oferece-nos uma reflexão política que procura perceber as causas profundas do desastre ecológico na estrutura social capitalista, com o objetivo de conceber uma solução na transformação das relações sociais.

A civilização atual tem de levar a cabo uma profunda transformação da vida quotidiana e da estrutura produtiva a fim de sobreviver ao anunciado colapso dos ecossistemas vivos e, ao mesmo tempo, da própria humanidade: estamos a viver uma crise civilizacional, nas palavras de Sacristán. É por isso que estes textos, que estão agora a ser publicados, são tão atuais. Esta quebra dos ideais racionais também afeta o marxismo, na medida em que se constitui como uma ideologia progressista; mas não o núcleo das suas afirmações teóricas, interpretado como uma crítica do capitalismo e uma proposta para uma nova sociedade socialista sem classes.

Um segundo aspeto do seu trabalho filosófico consistiu principalmente no exame crítico dos conteúdos da cultura popular na vida quotidiana, a fim de clarificar os fundamentos sobre os quais a consciência pessoal é construída como uma função da vida coletiva. No meio da opressão social criada pela ditadura fascista em Espanha, Sacristán apelou à liberdade como condição para um desenvolvimento social verdadeiramente humano. Uma liberdade que é mais do que um reconhecimento formal dos direitos humanos, pois implica uma libertação da prática humana da alienação criada pela exploração capitalista do trabalho humano e da riqueza do planeta. Esta crítica tornou-se autocrítica numa análise marxista da própria tradição comunista enraizada na ideia do progresso e que nunca se distanciou suficientemente do desenvolvimento capitalista.

O pensamento sacristaniano moveu-se entre estes dois planos: o conhecimento científico (definindo a ciência como experiência social organizada sistematicamente pelo método de investigação) e a sabedoria prática que torna possível a vida quotidiana na sociedade. Da perspetiva materialista, a atividade humana no mundo natural constitui um processo de desenvolvimento das suas capacidades, onde a cooperação social no trabalho desempenha um papel axial. A apropriação bem sucedida do mundo natural pela humanidade baseia-se no conhecimento da realidade: a ciência, como forma moderna de conhecimento, carateriza a racionalidade da ação humana: é necessário conhecer a verdade para alcançar o bem na vida prática. No entanto, este esquema decompõe-se na atual conjuntura histórica, quando descobrimos o enorme perigo da ciência contemporânea que não conduz a uma prática social emancipatória.

A revolução tecnológica capitalista de meados do século XX (a automatização da produção e informatização do conhecimento, estudadas pelo economista Ernest Mandel) foi a chave para a vitória e perpetuação do capitalismo no último terço do século XX. As condições de enorme complexidade teórica e prática, difíceis de resolver, foram consideradas pelo movimento comunista internacional do século passado de uma forma simplista, procurando uma solução baseada na propriedade coletiva dos meios de produção. A conclusão de Sacristán é que esse marxismo se tornou uma ideologia da nomenklatura soviética que serviu para justificar o seu domínio burocrático de classe.

Por seu turno, a sociologia capitalista, ao serviço da exploração pela classe burguesa, demonstrou a sua incapacidade de orientar a história num sentido racional, apesar da sua eficácia no controlo da cidadania para preservar a ordem estabelecida. Crises económicas violentas produzem uma destruição irracional da cultura que hoje em dia é reforçada pela destruição da natureza. A própria expansão capitalista produziu vários genocídios em África e na América nos séculos passados, que anunciaram as guerras mundiais na Europa e, nas últimas décadas, virou-se contra a Ásia.

No final da sua vida, já nos anos 70, Sacristán descobriu – recorrendo à crítica ecológica e ao marxista Wolfgang Harich da RDA – a destruição da biosfera pela ação humana dentro do modo de produção industrial. A ciência impulsionada pelo capitalismo está a tornar-se cada vez mais perigosa, pondo em perigo a própria existência da espécie humana, bem como de milhões de espécies vivas. A crítica marxista mostrou que a raiz desta alienação histórica reside na irracionalidade estrutural das sociedades de classe, que resulta da alienação do trabalho e falta de liberdade dos trabalhadores e das camadas populares para usarem a sua razão e agirem em conformidade, limitados como estão pelas imposições normativas da ordem social. A natureza racional do ser humano coincide com a sua sociabilidade e o seu trabalho no mundo natural, razão pela qual a racionalidade humana está enraizada nos ideais que formam a consciência das classes subalternas, cooperativas e trabalhadoras.

Portanto, a história, que também é marcada por profundas alienações, também não parece ser um processo racional, uma vez que os seres humanos não têm controlo suficiente sobre a sua prática histórica; em particular, a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e os limites da natureza pôs em causa as ilusões ilustradas do Progresso. Esta situação criou dificuldades ao próprio materialismo dialético. Uma resposta possível a este problema, apresentada nas páginas de Ecologia e Ciência Social, é que o maior problema ecológico é causado pelo desenvolvimento da indústria bélica e pela produção de armas de destruição maciça – o que é mais uma vez muito atual com a nova guerra fria entre o bloco asiático e a NATO. Daí o apoio sem reservas de Sacristán ao movimento pacifista contra a guerra.

Em Ecologia e Ciência Social recolhemos os textos de Sacristán que tratam da sua reflexão sobre este problema cada vez mais premente da civilização industrial moderna: a relação da humanidade com a natureza viva, que inclui a própria natureza humana. Os textos foram divididos em dois tipos: o primeiro, de natureza política, ou seja, intervenções no movimento social motivadas por problemas ecológicos; o segundo, mais teórico, ou seja, uma reflexão sobre estes problemas históricos da humanidade contemporânea, que comprometem seriamente o desenvolvimento humano.


Resenha de Manuel Sacristán Luzón. Ecologia e Ciência Social. Madrid. Irrecuperables, 2021.

Miguel Manzanera Salavert é professor de Filosofia, tendo-se doutorado pela UNAM com uma tese sobre a obra de Manuel Sacristán, e autor de livros como El periplo de la razón. El racionalismo musulmán en la Edad Media, Sevilla, Fénix editora, 2011 e Atravesando el desierto. Balance y perspectivas del marxismo en el siglo XXI, El Viejo Topo.

Publicado no Viento Sur. Traduzido por António José André para Esquerda.net.