O “efeito Lampedusa” ou como são criadas políticas migratórias repressivas

12 de novembro 2023 - 11:21

Lampedusa é sintoma de uma política migratória de vistas curtas que não compreende que está a ajudar a criar as condições que pretende evitar, reforçando instabilidade e violência nas regiões de partida ou trânsito e enriquecendo redes criminosas de tráfico de seres humanos que diz combater. Por Marie Bassi e Camille Schmoll.

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Migrantes chegam a Lampedusa. Foto de Noborder Network/Flickr.
Migrantes chegam a Lampedusa. Foto de Noborder Network/Flickr.

Nos dias antes da redação deste artigo, a pequena ilha de Lampedusa, na Sicília, viu desembarcar no seu território mais imigrantes do que o número da sua população. E como em cada um destes episódios de emergência migratória, na Europa, os representantes políticos lançam-se numa cruzada: para aumentar o seu capital eleitoral, utilizam uma retórica bélica, anunciando um encerramento de fronteiras atrás do outro. Com a aproximação das eleições europeias, é uma oportunidade para ultrapassarem potenciais rivais pela direita.

Para além do cinismo do oportunismo político, o que é que o episódio de Lampedusa nos diz? Mais uma vez que as políticas migratórias postas em prática pelos Estados europeus nos últimos trinta anos e aceleradas desde 2015 ajudaram a criar as condições para uma tragédia humanitária.

Fechámos as vias legais de entrada na Europa, obrigando milhões de exilados a seguir a perigosa rota marítima. Permitimos que os vários governos italianos criminalizassem as ONG que resgatam embarcações em perigo, aumentando a letalidade da travessia marítima. Colaborámos com governos que desrespeitam os direitos dos migrantes: em primeiro lugar, a Líbia que armámos e financiámos para prender e maltratar as populações migrantes a fim de as impedir de chegar à Europa.

O episódio de Lampedusa não é, portanto, apenas uma tragédia humana: é também o sintoma de uma política migratória de vistas curtas que não compreende que está a ajudar a criar as condições que pretende evitar, reforçando a instabilidade e a violência nas regiões de partida ou de trânsito e enriquecendo as redes criminosas de tráfico de seres humanos que diz combater.

Crise de acolhimento, não crise de migração

Em primeiro lugar, vejamos aquilo a que podemos chamar o efeito de hotspot. Nos últimos meses, registou-se um aumento significativo das travessias do Mediterrâneo Central para Itália, de tal modo que 2023 poderá, se a tendência se mantiver, estar ao nível de 2016 e 2017, que bateram recordes em termos de travessias nesta zona. É, evidentemente, este aumento das partidas que conduziu à atual sobrecarga de Lampedusa e à situação de crise a que assistimos.

Mas, na realidade, Lampedusa tem vivido um episódio de emergência após outro desde que a ilha se tornou o principal local de desembarque de migrantes no canal da Sicília, no início dos anos 2000. A sua interceção e confinamento no hotspot desta pequena ilha de 20 km² torna o fenómeno mais visível e cria um efeito de emergência e invasão que justifica uma gestão desumana das chegadas.

Já era o caso, em 2011, aquando da primavera Árabe, quando mais de 60.000 pessoas desembarcaram aqui, em poucos meses. O Governo italiano suspendeu as transferências para a Sicília, criando deliberadamente uma situação de sobrelotação e de crise humanitária. As imagens do centro sobrelotado, dos migrantes exaustos a dormir na rua e a protestar contra este acolhimento indigno foram amplamente divulgadas pelos meios de comunicação social. Permitiram ao Governo italiano instaurar mais um estado de emergência e legitimar novas políticas repressivas.

Se olharmos para os hotspots europeus, verificamos que estas situações se repetem e que a concentração em alguns pontos estratégicos, normalmente ilhas no sul da Europa, falhou. O efeito Lampedusa é o mesmo que o efeito Chios ou o efeito Moria (em Lesbos): por serem tão pequenas, estas ilhas fronteiriças têm todas as caraterísticas de uma gestão migratória desumana e ineficaz.

Concebida, em 2015 a nível da UE, mas aplicada há muito tempo em alguns países, esta política não conduziu a uma gestão mais racional dos fluxos de chegada. Em vez disso, impôs um enorme ónus humano e financeiro a pequenas regiões periféricas. Pessoas traumatizadas, sobreviventes e, cada vez mais, crianças pequenas estão a ser acolhidas em condições terríveis. Trata-se de uma crise de acolhimento e não de uma crise migratória, como já foi demonstrado por muitas pessoas.

Mudar de paradigma

Outra miopia europeia é acreditar que podemos conter o fluxo de migrantes trabalhando com os países de trânsito e de partida. Para além da vulnerabilidade que esta política cria em relação a Estados que podem usar a chantagem migratória a qualquer momento – algo que Kadhafi e Erdogan não se coibiram –, ela cria as próprias condições para a partida das pessoas em questão. A externalização agrava a situação dos migrantes nesses países, incluindo aqueles que gostariam de ficar.

Ao aumentar a criminalização da migração, a externalização reforça o seu desejo de fuga. Durante muitos anos, os migrantes fugiram das prisões e da tortura na Líbia; nos últimos meses, fogem da violência de um governo tunisino em plena viragem autoritária e que os utiliza como bodes expiatórios. O acordo entre a UE e a Tunísia, o enésimo do género, que condiciona a ajuda financeira à luta contra a imigração, reforça esta dinâmica, com os trágicos acontecimentos deste verão na fronteira tunisino-líbia.

Lampedusa ensina-nos que é necessária uma mudança de paradigma, uma vez que as soluções propostas pelos Estados europeus (externalização, dissuasão, criminalização da migração e dos seus apoiantes) se revelaram, na melhor das hipóteses, ineficazes e, na pior, letais. Contribuem, nomeadamente, para enraizar regimes autoritários e práticas violentas em relação aos migrantes. E para transformar os seres humanos em sujeitos humanitários.


Marie Bassi é professora e investigadora que se debruça sobre a temática das migrações. Integra a Universidade de Côte d’Azur.

Camille Schmoll é diretora de investigações no Instituto de Convergências Migratórias, Unidade Mista de Investigação em Geografia das Cidades (da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales-EHESS).

Publicado originalmente no A L’Encontre. Traduzido por António José André para Esquerda.net.