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Embora possa parecer o contrário pelos títulos da imprensa ou pelas declarações grandiloquentes da Comissão Europeia e da Presidência espanhola da UE, o chamado Pacto para a Migração ainda não foi aprovado. O que o Conselho alcançou há poucos dias por maioria qualificada, depois de várias tentativas falhadas, foi a sua posição sobre o Regulamento de Crise, a última peça do Pacto sobre Migração e Asilo que os Estados-Membros ainda não tinham finalizado. De facto, com a posição acordada pelo Conselho sobre este regulamento, estamos a entrar numa reta final que consiste em tentar aprovar todo o pacote de reformas migratórias antes do final da atual legislatura.
Mas porque é que era tão importante aprovar o Regulamento de Crise no Conselho? Este regulamento é um dos elementos-chave do Pacto de Migração e Asilo que Bruxelas apresentou em 2020 e que regula a normativa a aplicar em caso de situações de crise ou de força maior, como no caso de chegadas massivas de migrantes. Até à semana passada, este regulamento bloqueava a obtenção de uma maioria de três quartos no Conselho, necessária para a aprovação do Pacto de Migração. Depois de a extrema-direita ter conseguido a vitória política de acabar com as quotas obrigatórias para a distribuição de refugiados, que tinha sido um dos seus principais cavalos de batalha e pomo de discórdia com Bruxelas, o Regulamento de Crise tinha passado a ser o seu outro grande objetivo nas negociações sobre a nova normativa migratória. O regulamento conseguiu assim superar a maioria qualificada, apesar da queixa teatralizada dos governos húngaro e polaco sobre a imposição de um acordo contra a sua opinião. Denúncia que responde mais aos seus próprios equilíbrios internos e à proximidade eleitoral do que a uma verdadeira oposição ao que foi aprovado.
Com a aprovação deste regulamento, avança-se mais uma vez numa reforma migratória que institucionaliza a ausência e a violação de direitos das pessoas migrantes, uma vez que o que se pretende é normalizar e institucionalizar as práticas de violação de direitos que vários estados-membros têm vindo a implementar até à data, apesar das inúmeras denúncias da sociedade civil, das organizações sociais e das próprias pessoas migrantes. Assim, este regulamento permitirá a suspensão de facto dos direitos na fronteira, desde que seja invocada uma de três razões: “crise migratória”, “força maior” e “instrumentalização”. Embora todos estes conceitos sejam vagamente definidos, o que pode levar à suspensão de direitos em grande escala, talvez o mais problemático e aquele que o Parlamento Europeu tem rejeitados até agora seja o de “instrumentalização” ou, tal como definido na proposta, as “acções de países terceiros e de intervenientes não estatais que facilitam as chegadas à UE”.
Na prática, como salienta o Conselho Europeu para os Refugiados e Exilados (ECRE), o que está em causa, caso o acordo com este Regulamento de Crise seja finalmente aprovado, é a possibilidade de os Estados evocarem um conjunto de circunstâncias que lhes permita fugir às suas responsabilidades em matéria de asilo. Entre outras medidas, isso permitiria aos Estados-Membros atrasar o registo de requerentes, aumentar o tempo de detenção e aumentar o número de pessoas cujos pedidos são processados através do procedimento de fronteira, o que pode até incluir menores não acompanhados e famílias. Também agravaria ainda mais as já deficientes condições de acolhimento e as condições materiais e sanitárias, que já estão muito aquém do limiar necessário para manter o mínimo de dignidade humana, especialmente para as pessoas vulneráveis. Além disso, criaria situações de discriminação contra certos grupos de pessoas refugiadas, em violação do artigo 3º da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e dos artigos 2º e 22º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Ou seja, a medida procura reforçar um sistema de asilo comum violento, quando o principal desafio que enfrentamos está longe de ser a regulamentação da excecionalidade, mas sim o incumprimento das obrigações jurídicas em matéria de direito internacional de asilo e de direitos humanos e tudo isto no curso de uma crise profunda e contínua do Estado de direito na UE. Além disso, é necessário recordar que o atual quadro jurídico e legal já proporciona flexibilidade aos Estados-Membros para lidarem com situações de crise nas suas fronteiras, permitindo mesmo derrogações. No entanto, esta flexibilidade é estritamente circunscrita pelos Tratados e pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE. Por conseguinte, longe de acrescentar um mecanismo que facilita a adaptação a situações excecionais, o que a implementação da “instrumentalização” provocaria seria uma nova reviravolta na necropolítica da migração: mais detenções, mais restrições ao direito de asilo, mais deportações e mais justificações irracionais de políticas racistas, eurocêntricas e estigmatizantes.
É também um retrocesso muito grave que, no âmbito das negociações para conseguir a desejada maioria de três quartos no Conselho Europeu, o governo italiano de extrema-direita de Meloni tenha conseguido que a cláusula alemã de salvaguarda da atividade das ONG de busca e salvamento fosse retirada, permitindo a criminalização da sua atividade. As declarações do ministro italiano dos Negócios Estrangeiros, Antonio Tajani, sobre o salvamento no mar são uma demonstração explícita do discurso da extrema-direita de criminalização das ONG: o “problema não é salvar” os migrantes no Mediterrâneo mas “não ter organizações governamentais que os recolham e os tragam para Itália” [1]. Um continuismo do clima antipessoas que reina na Europa e que acaba por normalizar tragédias como a que aconteceu em Phylos, onde centenas de pessoas se afogaram devido à “negligência” da guarda costeira grega e que é objeto de uma queixa coletiva das vítimas cujas vidas, ao que parece, já não merecem ser recordadas.
Em suma, a aprovação do Regulamento de Crise pelo Conselho Europeu não encerra o Pacto de Migração mas abre caminho para um maior aprofundamento de uma proposta que discrimina, exclui e viola direitos fundamentais. É verdadeiramente preocupante que durante estes anos de negociação, desde que a Comissão apresentou o pacto há três anos [2], a extrema-direita tenha conseguido torná-lo ainda pior, demonstrando a sua grande capacidade de marcar a agenda migratória da União. No entanto, creio que seria um erro apontar o dedo apenas à extrema-direita como única culpada desta política que destrói direitos e inocula uma visão xenófoba da migração humana. Temos de alargar o foco e apontar o dedo aos cúmplices necessários para implementar esta necropolítica migratória, que não são outros senão a grande coligação de extremo centro que governa a União.
Como exemplo desta lepenização dos espíritos da grande coligação europeia em matéria de política migratória, temos o governo de Pedro Sánchez. Passou de iniciar a sua primeira presidência saudando o navio de salvamento e resgate marítimo Aquarius, a quem tinha sido negado porto seguro pela extrema-direita do governo italiano de Salvini, para ser felicitado pela ministra alemã Nancy Faeser, que afirmou que a presidência espanhola do Conselho da UE tinha feito um “excelente trabalho” para chegar à atual proposta de texto que permite a criminalização das ONG de busca e salvamento pelo governo de ultra-direita de Meloni. Foi também o governo espanhol que recentemente defendeu uma maior externalização das fronteiras para aumentar os esforços para travar a migração na origem[3] e justificou as acções indefensáveis das forças policiais espanholas na fronteira de Melilla. Para além de manter pelo menos meio milhão de pessoas no seu território num limbo administrativo.
Mas o Pacto de Migração ainda não foi aprovado, pelo que ainda há tempo para lutar contra a institucionalização da violação de direitos que a Presidência espanhola do Conselho pretende encerrar. É fundamental exigir que o governo e os parceiros de investidura do PSOE incluam a rejeição desta reforma no acordo para que Pedro Sánchez se torne presidente. É fundamental recuperar a mobilização social contra a Fortaleza Europa, denunciando não só as suas consequências mas também os seus culpados e, portanto, não só a extrema-direita mas também aqueles que implementam as suas políticas migratórias. Ainda temos uma hipótese de parar este pacto de morte que está a transformar o Mediterrâneo numa grande vala comum.
Miguel Urbán é deputado no Parlamento Europeu e membro do Conselho Assessor do Viento Sur.
Texto publicado originalmente no Viento Sur. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
Notas:
[2] Aqui está uma ligação para um artigo resumo dos pontos mais lesivos do Pacto Migratório que escrevi quando este foi apresentado: https://vientosur.info/el-pacto-de-la-verguenza/