Nem o Neo se consegue desligar

15 de janeiro 2022 - 17:24

O tecido social desgastou-se devido ao isolamento, à alienação e à falta de segurança material. O que muita gente procurava num novo Matrix era um pouco de nostalgia para aliviar a nossa muito real ansiedade coletiva. Mas o seu carácter de meta-filme torna-o muitas vezes entediante. Por Ryan Zickgraf.

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Imagem de Matrix Ressurrections.
Imagem de Matrix Ressurrections.

No início do século, Jean Baudrillard foi convidado a explicar algumas coisas sobre Matrix. O trabalho do filósofo francês estava entre as incontáveis influências e referências que as Wachowskis inseriram no código da Matrix — junto com o cristianismo, o budismo, a Alice no País das Maravilhas e diversos outros filmes de ficção científica e artes marciais. No início do primeiro filme, Neo, personagem de Keanu Reeves, esconde um software ilícito dentro de uma cópia oca do livro Simulacros e Simulações, de Baudrillard, e Morpheus, interpretado por Laurence Fishburne, ecoa uma de suas frases mais notáveis ao introduzir o mundo pós-apocalíptico fora da simulação como “o deserto do real”.

Baudrillard, como uma espécie de gato de Cheshire da teoria dos meios de comunicação social, recusou-se a seguir as pistas para entrar na toca do coelho. Ele acreditava que Matrix promovia uma falsa dicotomia entre o mundo artificial de computadores e o mundo real de carne e osso, que há muito tempo tinha colapsado no estado que ele apelidou de hiper-realidade.

Pior, os filmes reificavam os sistemas de controle modernos ao fazer uma pantomima de resistência a eles. “Matrix é certamente o tipo de filme sobre a Matrix que a Matrix conseguiria produzir”, concluia Baudrillard em 2004.

Mas algo engraçado aconteceu. Uma terceira sequência nasceu — uma que deixa claro que as criadoras de Matrix finalmente reconheceram o ponto de Baudrillard.

A pílula vermelha cinematográfica?

Ainda impressiona re-assistir nos dias de hoje à trilogia original de Matrix, mas não necessariamente devido às suas previsões proféticas. Os efeitos especiais de kung-fu, a cinematografia e os trajes estilosos de couro ainda são divertidos mas o diálogo, que outrora soara profundo ao meu eu jovem, agora parece pesado e a história bastante juvenil. Em retrospetiva, eram filmes de super-heróis glorificados que faziam cosplay de cyberpunk desafiante para o pensamento.

O contexto é importante. Parte do motivo de Matrix ter atingido tantos cinéfilos como um relâmpago é porque o primeiro filme foi lançado em 1999. Mexia com uma crescente apreensão sobre a Internet — que estava então prestes a transformar nossa existência diária — e articulava um mal-estar crescente que muitos sentiam sobre a vida no “fim da história”.

Em 1999, os mercados e a democracia liberal tinham finalmente destruído a sua oposição, deixando um travo amargo à medida em que as instituições norte-americanas e a ordem social continuavam a desmoronar. Poderia alguém imaginar uma alternativa ao esmagador status quo hipermercantilizado para além de enterrarmos as nossas cabeças nos ecrãs?

Em vez disso, as Wachowski sonharam os sonhos da geração Z por nós. Matrix gira à volta de um hacker chamado Thomas Anderson, conhecido como Neo, que descobre que a sua realidade é, na verdade, uma simulação de computador. A pílula vermelha que Morpheus lhe dá fá-lo aterrar de cabeça no mundo real e impulsiona-o a embarcar numa jornada na qual deve abraçar o seu destino como “the One”, “o Escolhido”. No final de 2003, em Matrix Revolutions, a última parcela da trilogia original, esse Messias vestido com um casaco impermeável lidera a resistência da humanidade às máquinas, aos socos mortais à Inteligência Artificial, abrindo caminho para uma sociedade nova e livre.

Além dos filmes, houve uma série animada, vários jogos eletrónicos e uma seita de seguidores na Internet que se dedicou a decifrar as mitologias e significados da franquia. O conceito de tomar o comprimido vermelho é talvez o seu legado mais duradouro – uma metáfora para emergir de um sono induzido por narcóticos e descobrir a Verdade oculta de um sistema poderoso, seja o realismo capitalista, a binarismo de género, as origens da Covid-19, ou o “verdadeiro vencedor” das eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2020.

Para lhes dar o seu devido crédito, os escritores de Matrix Resurrections (Lana Wachowski, David Mitchell e Aleksandar Hemon) estão totalmente cientes do legado duradouro da franquia e, bem, estão um tanto constrangidos com ele.

Durante grande parte do seu primeiro trecho, Ressurrections funciona como uma viagem que é um pedido de desculpas prolongado por causa de si próprio. Muito à semelhança da sequência divisiva de Star Wars: O Último Jedi, é um produto da cultura pop auto-consciente que desafia as expetativas dos fãs e desconstrói as suas próprias mitologias, ao mesmo tempo que ostenta a quebra das regras que deveriam rege-lo. Ei! As máquinas já não são todas más, algumas delas são realmente úteis e fofas! Neo é um tipo de meia-idade que não pode voar e nem sequer é “o Escolhido”. E ele continuar ligado à Matrix será realmente a pior coisa do mundo?

O filme abre com o alter-ego de Neo, Thomas Anderson, de volta aos confins da Matrix, mas desta vez preso numa existência indiferente como um famoso designer de jogos eletrónicos que criou um jogo de grande sucesso chamado – sim – The Matrix. Enquanto Anderson expressa ambivalência sobre a omnipresença do jogo na cultura (ele “entretinha alguns miúdos”, diz ele ao personagem de Carrie Anne Moss, Trinity/Tiffany, com um encolher de ombros), todos os outros parecem estar a viver na longa sombra da Matrix. Uma hilariante cena inicial apresenta jovens criadores de jogos que debatem calorosamente sobre a Matrix enquanto sorvem café numa loja chamada “Simulatte”. Será uma alegoria sobre direitos trans? Sobre exploração capitalista?

Para “o homem que voltaria a ser Neo novamente”, parece ser contra-intuitivo que a Matrix (o escravizante programa de computador) coloque a Matrix (o produto cultural) no centro de uma prisão virtual destinada a enganar os seres humanos para que acreditem que ela não existe. Mas essa versão atualizada 2.0 da Matrix mantém de forma ainda melhor os humanos presos em cápsulas de matéria viscosa, diz o seu criador, uma inteligência artificial chamada Analista (Neil Patrick Harris). O toque especial? Os robots observam os verdadeiros “medos e desejos” das pessoas e depois vendem-nos de volta a nós.

Numa cena pungente, o personagem Bugs admite-o a Neo:

“Eles pegaram na tua história, algo que significava muito para pessoas como eu, e a transformam em algo trivial. É isso que a Matrix faz. Torna cada ideia numa arma… Onde enterrar melhor a verdade do que em algo tão comum como um jogo eletrónico?”

Esta citação é um dos muitos atos de auto-imolação do filme mas reflete a visão de Baudrillard de que a nossa raiva contra a máquina na verdade fortalece o controlo da máquina sobre nós quando surge embalada na forma de Rage Against the Machine ®, um produto capitalista num universo no qual só isso importa, um espetáculo mediático pacificador entre outros espetáculos. Porquê organizar uma revolução confusa quando podemos simplesmente consumi-la no nosso telefone?

Até mesmo o personagem de Neo se encaixa no universo alargado de Baudrillard. “Tal como a sociedade medieval estava equilibrada entre Deus e o Diabo, a nossa também está equilibrada entre o consumo e a sua denúncia”, escreveu a certa altura Baudrillard. Como tal, Neo representa tanto o velho, quanto o novo, fundidos num só – uma figura fictícia de Jesus para a falsa resistência contra o consumo sem sentido, com o personagem do Oráculo a cumprir o papel do seu Espírito Santo.

Assim, a reviravolta meta-narrativa de Resurrections acaba por nos pedir para nos confrontarmos com uma pergunta provocadora e desconfortável: e se os filmes de Matrix e o ecossistema dos meios de comunicação social que os criou for a coisa mais aproximada da Matrix que existe… e estivermos já presos dentro dele?

“Quente! Estás a ficar cada vez mais quente!”, poderia dizer Baudrillard. Para o pensador francês, a pacificação da vida quotidiana aconteceu muito antes de Mark Zuckerberg ter proferido o termo “metaverso”. Aconteceu através dos processos da sociedade se tornar numa sociedade de consumo e baseada na informação – a adoção em massa dos meios de comunicação de massa. Filmes como Matrix, disse, “são para a cultura o que o seguro de vida é para a vida: está lá para prevenir os seus perigos”.

Talvez, mas o problema de criar um novo meta-filme sobre como Matrix é a nova Matrix é que ele torna o entretenimento exaustivo, muitas vezes entediante. No espírito de ser meta, provavelmente diverti-me mais a pensar sobre Resurrections e a escrever este ensaio do que a vê-lo.

A verdade é que mergulharmos no conforto ilusório da HBO Max ou no parque de diversões de realidade virtual de Zuckerberg ou em algo mais parecido com a Matrix original parece cada vez mais tentador atualmente. Nos últimos dois anos, milhões de pessoas morreram devido à pandemia e muitos mais estão doentes, deprimidos ou carregados de ansiedade. Demasiados de nós andamos à luta por causa de máscaras, vacinas e políticas, publicando nas rede sociais cada momento desconfortável vivido com outra pessoa na esperança de uma justiça digital de bando, enquanto uma onda de homicídios continua a causar estragos em todo o país, batendo recordes em cidades como Filadélfia, Indianápolis e Austin.

A tensão é palpável: o tecido social tem-se desgastado ainda mais devido ao isolamento, à alienação e à falta de segurança material e estamos a começar a tratar as pessoas na vida real como fazemos nas redes sociais – cruelmente.

O que muitas pessoas procuravam num novo filme Matrix era um pouco de nostalgia para aliviar a nossa muito real ansiedade coletiva, como a nova versão computadorizada de Morfeu o coloca inteligentemente em Resurrections. Mas ao assistir à cobra proverbial a comer sua própria cauda durante quase duas horas e meia é fácil de perder o apetite.

E como corretivo da cultura pop, a mensagem de Resurrections provavelmente cairá em ouvidos moucos. Grande parte da energia política hoje em dia, tanto à esquerda quanto à direita, está obsessivamente focada no poder de controlar os fluxos de informação e assegurar que toda a gente tenha uma saudável dieta mediática livre de desinformação. A direita, por exemplo, diz querer superar o enviesamento liberal das Big Techs e dissipar todas as menções de raça e género na educação, enquanto os protestos de rua da esquerda pela justiça racial foram subsumidos pelos clubes de leitura woke e pelas playlists “Vozes Negras Edificantes” da Netflix.

Ao mesmo tempo que Neo e Trinity voltaram ousadamente ao cinema, o mesmo aconteceu com Homem-Aranha: Sem Volta a Casa e Não Olhem Para Cima. O primeiro foi um sucesso de bilheteira visto por muitos comentadores e críticos como mais uma sequela estúpida de um filme de super-heróis para a Disney/Marvel, uma das maiores empresas de entretenimento do mundo, encaixar dinheiro. O segundo? Uma sátira refrescante, até mesmo importante, sobre a nossa inação coletiva em relação às alterações climáticas.

Contudo, ambas existem na luz fria, eletrónica, dos meios de comunicação de massa, cuja função derradeira é “neutralizar o caráter vivido, único e de acontecimento do mundo e substituí-lo por um universo múltiplo de meios de comunicação social que, como tais, são homogéneos uns relativamente aos outros, significando-se reciprocamente e referindo uns aos outros” como escreveu Baudrillard em A Sociedade de Consumo, cerca de 30 anos antes da estreia de Matrix. Soa familiar? No fim de contas, Homem-Aranha não é um comprimido azul, e Não Olhe Para Cima e Matrix Resurrections não são versões cinematográficas de um comprimido vermelho. Todos eles não oferecem nada mais do que um efeito placebo.


Ryan Zickgraf é jornalista e editor da Third Rail Mag.

Publicado originalmente na Jacobin Brasil.