Na Alemanha, quem se opõe ao massacre em Gaza é perseguido pelo Estado

08 de abril 2024 - 23:32

No dia em que a Alemanha responde no TIJ sobre o apoio a Israel, contamos histórias de quem resiste ao clima de medo instalado entre quem defende a Palestina: o grupo judaico com a conta congelada, os organizadores do congresso pela Palestina com rusgas em casa ou os funcionários públicos que escreveram anonimamente a Scholz.

PARTILHAR
Foto da Voz judaica para uma paz justa no Médio Oriente/Twitter.
Foto da Voz judaica para uma paz justa no Médio Oriente/Twitter.

Na Alemanha, criticar os ataques de Israel em Gaza é, mais do que em muitos outros países ocidentais, arriscar ser rotulado de promotor “do ódio contra os judeus”. À boleia do antissemitismo, tornou-se “uma razão de Estado” defender o sionismo.

O chanceler alemão Olaf Scholz declarou, desde o início da ofensiva sionista em Gaza, a Alemanha “ao lado de Israel” e desde então o seu apoio tem sido diplomático, político e militar. Segundo o Instituto de Investigação sobre a Paz Internacional de Estocolmo, o país é o segundo maior fornecedor de armas de Israel, com uma quota de 30%, e, em 2023, as exportações de armas aprovadas ascenderam a 326,5 milhões de euros, dez vezes mais do que no ano anterior.

Muitas manifestações já foram proibidas ou interrompidas à força pouco depois de começarem, houve já centenas de detenções de manifestantes justificadas com “incitamento ao ódio”, defender a liberdade da Palestina “do rio até ao mar” tem sido causa de prisões, mesmo quando apenas se escreveu isto nas redes sociais, e o tom da imprensa mainstream é altamente agressivo contra quem ouse desafiar o “consenso” estabelecido.

O advogado Alexander Gorski, à Al Jazeera, diz que estamos perante um ataque “quase sem precedentes” à liberdade de expressão, desviando-se as leis que originalmente foram concebidas para impedir o crescimento do discurso de ódio para se passar a uma “muito perigosa restrição da expressão que pode implementar um precedente que limita gravemente a liberdade de expressão neste país”.

E, contudo, há quem resista. Aqui mostramos alguns casos.

Conta bancária da Voz Judaica por uma Paz Justa no Médio Oriente congelada

Na terça-feira passada, a Voz Judaica por uma Paz Justa no Médio Oriente, Judische Stimme für gerechten Frieden in Nahost, anunciou que o banco público alemão Berliner Sparkasse congelou a sua conta bancária desde 26 de março e pediu uma lista de todos os membros da organização.

Em comunicado, publicado na sua página da rede social X, escreve-se que “em 2024, dinheiro judeu volta a ser confiscado por um banco alemão”. Explica-se ainda que numa carta, com a justificação de “atualizar dados de cliente”, dizia-se ser necessário enviar ao banco até 5 de abril uma lista completa de todos os membros da organização com endereços, documentação fiscal, declarações de rendimentos entre outros. Sob pena do contrato ser cancelado, sendo o congelamento apresentado como uma “medida de precaução”.

Ao Middle East Eye, o presidente da Voz Judaica, Wieland Hoban, defende que “o que aconteceu mostra o quanto o Estado quer obstruir e assediar o movimento palestiniano”. Legalmente, insiste-se no comunicado, “como empresa pública, o banco está vinculado pela lei pública e portanto não pode arbitrariamente congelar contas bancárias sem providenciar uma explicação, o que não fez”.

A Voz Judaica foi fundada em Berlim em 2003 e integra uma rede chamada Judeus Europeus para uma Paz Justa que se opõe à colonização israelita. Tem estado desde o início presente nos protestos que têm acontecido no país ao longo dos últimos meses.

Um congresso pró-Palestina assediado

A organização liga o bloqueio das suas contas ao Congresso Palestina que acontecerá entre 12 a 14 de abril. Este é financiado através da venda de bilhetes e de donativos e a conta da Voz Judaica estava a ser utilizada para receber o dinheiro. “Ao bloquear a nossa conta, o Estado quer privar o congresso do seu financiamento” afirma Hoban que acrescenta que “o assédio político e a intimidação estão em todo o lado. Temos o Estado contra nós mas não seremos intimidados”.

O dirigente associativo não fala em vão. Alguns dos organizadores do Congresso viram as suas casas serem objeto de rusgas policiais, Christian Herbert Hochgrebe, o secretário de Estado do Interior do Senado de Berlim (do social-liberal SPD) indicou que o evento estava a ser investigado e vários meios de comunicação social alemães têm amplificado as críticas que o pintam como uma “cimeira do ódio”.

Para além de Hoban, alguns dos outros oradores principais são Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, Ghassan Abu Sitteh, médico palestiniano que trabalhou nos hospitais de Gaza durante os ataques sionistas e Ali Abunimah, jornalista palestiniano que fundou a página Electronic Intifada.

No manifesto em que apresentam o Congresso, os organizadores denunciam o genocídio em Gaza e o apartheid em toda a Palestina. Criticam a “cumplicidade” do governo alemão que, por exemplo, “declarou que cessaria seu apoio humanitário aos palestinianos” numa altura em que “a fome é desenfreada”. E afirmam que “o barulho dos bombardeamentos na Palestina só é superado pelo silêncio da sociedade alemã”. Por isso, consideram-no “um ponto de viragem na história alemã” já que o seu governo passou a apoiar “descaradamente um genocídio” ao mesmo tempo que “os direitos democráticos foram prejudicados para silenciar os protestos pedindo um cessar-fogo” e “a liberdade de reunião, a liberdade de imprensa e a liberdade académica foram maciçamente reduzidas.”

Assim, promete-se resistência ao cinismo dos políticos que usam o “nunca mais” sobre o Holocausto “para reinterpretar a história e justificar o seu apoio ao genocídio”. E exige-se cessar-fogo, fim das restrições à ajuda humanitária, reparações pela destruição causada, cessação de apoio diplomático e económico a Israel pelo Estado alemão, acabar com a criminalização e repressão do movimento de solidariedade com a Palestina na Alemanha, para além da defesa do direito de retorno dos refugiados e do fim do colonialismo dos colonatos sionistas e da “limpeza étnica de toda a Palestina ocupada que vem acontecendo há mais de 76 anos”.

Funcionários Públicos reagem à vaga anti-palestiniana mas pedem para permanecer anónimos para escapar à repressão estatal

Esta segunda-feira, noticia a Al Jazeera, um grupo de 600 funcionários públicos escreveu ao chanceler Olaf Scholz e a outros membros do governo apelando ao fim das entregas de armas ao governo israelita “com efeito imediato”.

Ao longo de cinco páginas, os subscritores alegam que Israel “está a cometer crimes em Gaza que estão em clara contradição com a lei internacional e portanto com a Constituição a que estamos vinculados enquanto funcionários públicos e empregados pelo Estado”, citando a sentença de janeiro do Tribunal Internacional de Justiça que já definia as ações militares israelitas como “atos plausíveis de genocídio”.

Defendem que o governo alemão pressione para um cessar-fogo imediato, que retome os pagamentos à UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinianos, e que defenda o reconhecimento do Estado palestiniano nas fronteiras internacionalmente reconhecidas de 1967.

Estes elementos, “dado conteúdo sensível e a excessiva repressão com que as críticas nesta área têm sido atingidas” pedem para que os seus nomes não sejam divulgados.

Àquela cadeia de comunicação social, um dos organizadores descreve um “clima de medo” na Função Pública como “nunca tinha vivido de forma alguma em 15 anos”, tendo sido “avisado” para não falar no assunto.

Outro dos promotores, um destacado jurista, avança que “neste momento não há direitos na Alemanha no que toca à Palestina”. Confessa que tem medo de ser despedido se for descoberta a sua identidade, dada a “situação de total ausência de lei” com “pessoas a serem detidas, por vezes brutalmente, com justificações legais espúrias”.

O grupo inspirou-se noutra iniciativa de 800 funcionários públicos dos EUA e da União Europeia que assinaram uma “declaração transatlântica” contra as “graves violações da lei internacional” cometidas em Israel e a criticar o facto das análises dos peritos sobre esta situação estarem a ser ignorados pelos governos. Uma delas, Angelique Eijpe, demitiu-se do seu emprego de 21 anos no Ministério dos Negócios Estrangeiros dos Países Baixos por a lei humanitária internacional estar a ser “completamente posta de lado em Gaza”, com Israel a ter “intenções genocidas bastante explícitas” e com o governo a ignorar a sua tomada de posição.

E tornou público o teor da missiva esta segunda-feira, aproveitando assim a data em que em Haia, no Tribunal Internacional de Justiça, a Nicarágua apresenta a sua queixa contra a Alemanha por apoiar Israel a viola a Convenção contra o Genocídio.

As famílias das vítimas tentam processar o governo

Também à via judicial, mas domesticamente, recorreram familiares alemães de pessoas assassinadas em Gaza. Processaram Scholz e outros governantes e políticos principais do país, que integram o Conselho de Segurança do Governo Federal Alemão, por ajuda e cumplicidade no genocídio.

A advogada Nadija Samour apresentou uma queixa que se baseia em três pontos: as declarações a favor de Israel, a retirada do financiamento à UNRWA e as exportações de armas.