Mundial Argentina 78: O segundo desaparecimento dos desaparecidos

02 de março 2018 - 16:36

Há 40 anos, a junta militar organizava o mundial de futebol enquanto matava milhares de pessoas ligadas à esquerda. Uma campanha internacional denunciou a ditadura. Todavia, os festejos da vitória argentina ajudaram a ocultar os crimes. Por Jorge Costa

porJorge Costa

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Festejos do ditador Videla durante o Mundial de 1978
Festejos do ditador Videla durante o Mundial de 1978

“Matar quantos for preciso para restabelecer a ordem na Argentina”. Ao tomar o poder em 1976, o general Videla foi claro sobre o seu programa. O “processo de reorganização nacional” duraria sete anos, deixaria 30 mil mortos e desaparecidos, meio milhão de exilados. No ano de 1978 a violência da junta militar atinge o auge. São constantes os raptos de militantes de esquerda, de sindicalistas ou familiares destes. Na baía de Buenos Aires todos os dias surgem corpos marcados pela tortura.

Cinco anos antes do golpe, a FIFA atribuiu à Argentina a organização do campeonato mundial de futebol de 1978. A junta militar herda o encargo, com preparativos atrasados, mas apressa-se a sinalizar o seu empenho na concretização do evento. Ao mesmo tempo que varre o país com a sua campanha de execuções, Videla quer credibilizar o seu governo e encenar para o mundo uma normalidade interna. Para isso, o Mundial é “uma ocasião única”, como assinala a agência de comunicação norte-americana Burson-Masteller, num relatório encomendado pela junta: o país deve ser levado a “encarar o campeonato numa perspetiva ultra-nacionalista”. Segundo o Nouvel Observateur, que teve acesso ao relatório, a Burson-Masteller indicou jornalistas de oito grandes países com tratamento especial: convites, prendas, diversões noturnas (NO, 30.12.1977). À frente do comité organizador, é colocado um general.

Nestes anos, a Argentina é um enorme campo de concentração. A realização do Mundial motiva protestos em todo o mundo. Olof Palme leva a participação sueca a debate parlamentar. O apelo ao boicote é subscrito em França por Duras, Barthes e Sartre. O bispo protestante alemão Helmut Franz pede “que os gritos dos adeptos não abafem os gritos de dor dos torturados”. O guarda-redes alemão exige a libertação dos presos e o craque holandês Johann Cruyff anuncia o seu boicote ao campeonato.

Solidariedade e diplomacia

A esquerda mundial acompanha a tragédia argentina, simbolizada pelos curtos 800 metros de distância entre o principal centro de tortura - a Escola Mecânica da Marinha - e o estádio do River Plate. Mas as denúncias dos anos 1977 e 1978 não conseguem impor a mudança de anfitrião para o campeonato. João Havelange, presidente da FIFA, explica: “Há demasiados interesses em jogo, económicos e políticos”. Mesmo na resistência argentina há quem não se oponha à realização do Mundial. A guerrilha dos Montoneros chega a editar um calendário dos jogos: “Argentina Campeón, Videla al paredón”.

A campanha internacional vira-se contra “o aproveitamento político do campeonato mundial pela ditadura” e liga-se à esquerda argentina. O velho Partido Socialista argentino integra o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST, trostkista) e a Internacional Socialista, aproximando-se da guerrilha montonera, sobe o tom das denúncias. A esquerda radical acompanha forças como o PST ou o PC(m-l)A. Os partidos comunistas de obediência soviética estão fora da campanha contra a repressão. Na ONU, Brejnev bloqueia qualquer condenação da junta militar argentina. Mesmo os comunistas argentinos emaranham-se nas intensas relações comerciais e diplomáticas entre Moscovo e Buenos Aires. O jornal do PC italiano, l’Unità, reproduz as declarações de Fernando Nadra, do comité central do PCA: “Tem lugar uma luta entre os elementos de tendência democrática dentro e fora do governo e as forças reacionárias e fascistas dentro e fora da junta. Toda a nossa atividade se dirige a impedir que estes homens tomem vantagem sobre as forças moderadas que podem dar um passo em frente. (...) Pode dizer-se que as forças moderadas avançaram na sua luta em 1977, ao consolidarem o “videlismo”, o setor mais disposto a abrir o diálogo com as forças políticas” (l’Unità, 18.11.1977).

Em Portugal, a campanha contra o Mundial sofre a contrariedade do não apuramento da seleção portuguesa para a fase final. O dilema sobre participar ou não, foi resolvido em campo. Ainda assim, reproduzem-se por cá os alinhamentos internacionais. Desde janeiro que o governo é da coligação PS-CDS e a Juventude Socialista faz abortar uma plataforma alargada. Arons de Carvalho, pela JS, veta a presença dos “aventureiristas” do PRP e da OUT (Isabel do Carmo e Carlos Antunes serão presos em junho) e a campanha fica em mãos do grupo pré-existente, o Comité de Apoio às Lutas dos Povos da América Latina. São produzidos cartazes e autocolantes e a 15 de junho realiza-se um comício de solidariedade em Campo de Ourique com representações do PST e do PC(m-l)A. Em linha com a posição soviética, o PCP distancia-se de qualquer iniciativa de denúncia da repressão na Argentina.

Renascimento pela bola e uma nova tortura

Na final do campeonato, a Argentina derrota a Holanda por 3-1, após prolongamento. É notado que o selecionador Menotti, na celebração, se recusa a partilhar o palanque com Videla. É uma versão invertida da recusa de Hitler de saudar o atleta negro norte-americano Jesse Owen pelas suas cinco medalhas nos jogos olímpicos de Berlim de 1936. A ausência de Menotti é notada, mas, tal como em Berlim, a imprensa não deixou de louvar a boa organização dos jogos e o simpático acolhimento. Terminada a festa na Alemanha, retomaram-se os pogroms e os preparativos da invasão da Checoslováquia.

Na Argentina, enquanto Videla celebra o “renascimento” do país pela força do seu futebol, o tempo da crueldade parece suspenso pela euforia de um povo unido por magia. Uma festa de todos? Alguém sobreviveu para contar que não. Na noite dos 3-1, alguns automóveis circulam pelas avenidas de Buenos Aires, alheios ao êxtase da multidão. Transportam militares e militantes de esquerda. Está em teste uma nova tortura: os presos são levados a testemunhar a indiferença geral à sua sorte.

Artigo publicado originalmente na revista "Manifesto", nº 6, junho de 2004

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.