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Mulheres de Abril: Testemunho de Manuela Barros

Nasci em Braga, comecei a falar em S. Miguel, aprendi a ler em Cabeceiras de Basto e a contar em Guimarães, descobri a amizade em Mirandela e conheci no Porto o amor, a prisão da PIDE e os ideais que se tornaram a minha estrela polar. Por Manuela Barros Ferreira.
Manuela Barros, em 1965.

 

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


 

 

 

Nasci em Braga, em 1938. Sou a mais nova de quatro irmãos. Quando perguntei ao meu pai como é que tinha vindo ao mundo, respondeu-me que tinha sido trazida por um papagaio de papel. Com dois anos fui para os Açores: estávamos em plena guerra, o meu pai era bancário, e para ser promovido a gerente, tinha de ir para S. Miguel. No fim da guerra voltámos para o continente e, apesar de ele ser de Guimarães, só conseguiu vaga em Vila Real de Santo António. Então mandaram-me, juntamente com o irmão de idade mais próxima, para casa dos nossos avós maternos, no outro extremo do país, em Cabeceiras de Basto. Comecei lá a escola primária, até o meu pai ser transferido para Guimarães, onde ficámos a viver. Entretanto, ele foi colocado em Moura. Fiz lá o segundo ano do liceu, mas o terceiro ano já foi em Beja, que em Moura não havia. O quarto ano (que hoje corresponde ao oitavo), fi-lo em Braga, porque o meu pai tinha a promessa de voltar para o Norte. Mas foi colocado em Mirandela, o que me obrigou a ficar em Vila Real até chegar ao último ano do liceu. Então fui para o Porto. Como andava de terra em terra, e sabia que não ficava muito tempo em cada sítio, não me ligava muito às pessoas. Além disso, os meus irmãos também andavam a estudar longe de casa, uma em Braga, outro em Coimbra, outro no Porto, e eram todos muito mais velhos. Cresci, portanto, um bocadinho desenraizada da família e de tudo. Tive de me encontrar sozinha: sempre me habituei a ser independente. Saíra de casa dos meus pais para ir para um lar com 13 anos. Sempre que na terra onde o meu pai trabalhava não havia liceu, eu ia para onde o houvesse, mas dormia num lar de freiras. Sempre estive em liceus mistos, menos no último período do último ano, em que fui colocada num liceu masculino, o D. Manuel, no Porto. Era a única rapariga que lá andava. Dois colegas tornaram-se meus anjos da guarda. Ainda hoje os considero os meus maiores amigos de sempre.

Em minha casa nunca se falava em política ou religião

Nasci numa classe muito pequeno-burguesa, muito elitista. Em minha casa nunca se falava em política ou religião. O meu pai era anti-salazarista, mas era a figura do Salazar que ele criticava, não questionava o sistema. Lia o jornal todos os dias, o Primeiro de Janeiro. Lia também revistas e a bíblia, mas nunca ia à igreja. Já a minha mãe só ia à igreja quando tinha roupa nova, ou seja, pela Páscoa, pelo Natal... e pouco mais. Os nossos assuntos de conversa eram as questões do dia-a-dia. Mas existiam muitos livros em casa, que os meus irmãos traziam. O meu pai tinha muita imaginação técnica. Em cada sítio tinha um quarto só dele, que transformava em laboratório ou oficina. Quando chegava do Banco, ia revelar fotografias ou trabalhar em madeiras. Chegou a construir um rádio amador sozinho, de onde falava para todos os cantos do mundo em morse ou na linguagem de letras que usavam os rádio-amadores, por exemplo: “como está a sua igrego-éle?” (= como está a sua mulher?).

Eu nunca tive brinquedos, sempre brinquei com tachos, latas, serradura, fitas de madeira, arames … Meu, mesmo meu, só tinha um lápis. A família deixava-me desenhar as paredes todas da casa. Notava-se a minha progressão conforme as barras de desenhos que ia fazendo, desde o rodapé até à minha altura. Quando tinha quatro ou cinco anos, a minha maior descoberta foi descobrir que o sol e a mão se desenhavam da mesma maneira: ambos eram uma rodinha com cinco riscos, que tanto podiam ser raios como dedos. (Mais tarde verifiquei que desenhar mãos é muito mais difícil que desenhar o sol). Nessa idade, levavam-me muitas vezes a um jardim nos Açores onde estava o busto do Antero de Quental. Existia lá um laguinho com peixinhos vermelhos e uma abrótea muito grande e feia. Uma vez, uma senhora que tinha um cão deixou-me brincar com ele. No final eu quis levá-lo para casa mas a senhora não deixou. Desatei num berreiro e o meu pai, para me tranquilizar, disse que ia plantar no jardim do Banco um cão para mim. Passados oito dias, veio dizer-me que já tinham nascido as orelhas, branquinhas com a ponta preta. Fiquei tão contente! Desde aí passei a ir para a oficina onde ele fazia, ao torno, cabos de faca ou pernas de mesas. Aí, contava-me imensas histórias. Ia-lhe perguntando pelo meu cãozinho. Até que me disse que tinha de lhe pôr estrume, porque ele não estava a crescer muito bem. Quando me explicou o que era o tal estrume, não aceitei e pedi-lhe para deixar o cãozinho crescer à vontade dele. Com o passar do tempo, esqueci-me completamente do cão. Ora há cinco anos, uma amiga minha, sem conhecer esta história, deu-me um cachorrinho branco e preto. Apaixonei-me logo por ele e chamei-lhe Bel Ami. Foi como se o cão que o meu pai plantou no meu inconsciente tivesse finalmente nascido.

A minha mãe era uma contadora de histórias encantadora, e dela herdei a vontade de transformar em narrativas o que se passa à minha volta. Mas ela era outra coisa: quando ela estava, mais ninguém falava. Era uma atrás da outra, e fartávamo-nos de rir com ela.

Mas... não queria que andasse na rua com a filha da costureira?

Quando estávamos em Mirandela, ia lá a casa uma costureira que se fazia acompanhar pela filha. Ficavam lá connosco uma semana, a fazer lençóis, fronhas e todo o tipo de arranjos na roupa. Nessa altura, era muito comum as famílias albergarem uma costureira e darem-lhe tudo o que havia para costurar. Ainda não havia prontos-a-vestir... A filha da costureira, a Margarida, foi a primeira amiga que tive, com quem podia falar. Um certo dia, disse à minha mãe que íamos sair as duas. Não me deu autorização: não devia andar na rua com a filha da costureira. Fiquei horrorizada e senti uma revolta enorme. Acabámos por sair as duas como combinado, de braço dado, acintosamente, para toda a gente ver. Quando me lembro dela, até me dá vontade de chorar, porque perdi completamente o seu rasto. Como ela estava em minha casa todas as férias, sabia que nessa altura a podia encontrar. Mas desde esse episódio, a minha mãe nunca mais chamou essa costureira. Foi o meu primeiro contacto com a realidade social.

Comecei a tomar conhecimento do que é a história da humanidade

Em Belas Artes, no Porto, segui arquitectura. A minha primeira escolha era pintura, mas os meus pais achavam que, naquela época, uma mulher não podia ser pintora. Se ia estudar, era para conseguir um modo de vida que me desse segurança e independência. Quase que me obrigaram a ir para arquitectura. Claro que foi um falhanço. Se fizesse uma casa ela caía.

Não sentia quaisquer desigualdades, porque convivia sempre com pessoas oriundas da mesma classe. Entretanto, comecei a namorar com um pintor de quadros, filho de um pintor de paredes. A minha mãe disse-me: olha que quando uma mulher casa, não casa com um homem: casa com toda a família dele. Não cheguei a conhecer essa família: entretanto apaixonei-me pelo Cláudio [Torres]. Foi daquelas coisas fulminantes, não havia volta a dar. Estávamos em 1959. Gostei dele porque era muito bonito, era uma simpatia, toda a gente gostava dele, mas também pela forma como dava explicações de história. O Cláudio era filho de um professor de história e dava explicações para ganhar algum dinheiro. Passei a assistir às explicações dele. Aí comecei a tomar conhecimento do que é a história da humanidade – não era só a sucessão de datas e linhagens, de guerras ganhas, como a que aprendíamos na escola, mas também a luta extraordinária dos vencidos e dos oprimidos para se libertarem e para poderem dizer que, de facto, o sol nasceu para todos. Isso para mim foi uma revelação e foi pelo seu entusiasmo militante que me apaixonei. É engraçado que, há uns anos, quando uma equipa veio cá a casa fazer-nos entrevistas e perguntou ao Cláudio o que o tinha levado a gostar de mim, ele respondeu que foi porque eu desenhava muito bem narizes [Risos]. E se calhar tinha razão... talvez não houvesse em mim mais nada que se aproveitasse. Mas se me tivesse dito isso na altura não me teria casado com ele, certamente [Risos].

A minha vida, do ponto de vista do pensamento sobre o mundo, começou com o Cláudio

A minha vida, do ponto de vista do pensamento político sobre o mundo, começou com o Cláudio. Foi como um segundo nascimento. Foi a partir daí que comecei a ver o chão que estava a pisar; dei conta de pertencer a uma família muito conservadora e muito burguesa, e que havia horizontes mais largos. Existiam coisas que estavam mal no mundo, bem como existiam pessoas que lutavam contra o que havia de mal no mundo. E aí, decididamente, enveredei pelo caminho das pessoas que lutavam por mais justiça social. Tive a revelação do que é a vida: uma luta constante. É uma luta contra o domínio, esteja ele onde estiver. Seja ele da mulher pelo homem, das classes trabalhadoras pelas classes endinheiradas, dos povos invadidos pelos povos invasores… A razão está sempre do lado dos mais fracos. Esta é uma verdade fundamental, que, muitas vezes, se torna uma religião que até leva a excessos, com resultados contrários. Aí entra-se mais uma vez na área da dominação: querer impor a própria ideologia que é contra a dominação. Torna-se um paradoxo. Quem defende os dominados passa a dominar de uma maneira brutal. A vida ensinou-me isto. Vi-o nos países do leste, onde uma classe que era dominada chegou ao poder e deixou de admitir contestação, passando a ser a classe dominante.

Quando o Cláudio começou a querer que fosse com ele distribuir panfletos a favor da liberdade de expressão e contra o regime, aderi de imediato. E o nosso namoro até dava muito jeito nestas actividades... Quando estávamos a meio de uma pichagem e éramos surpreendidos, escondíamos a lata de tinta e abraçávamos-nos, como qualquer casal de namorados. Ele já pertencia ao Partido Comunista, mas teve o cuidado de não me dizer nada sobre isso. O PC tinha muito cuidado para defender os seus militantes, ainda que, mesmo assim, existissem infiltrados.

Passado um tempo, vieram buscar-me a casa às sete da manhã

O que é certo é que, passado um tempo, vieram buscar-me a casa às sete da manhã. Vivia num quarto de uma casa de família onde estava também outra colega. Eu, o Cláudio, a irmã dele e um amigo, que pertencíamos ao mesmo círculo, fomos presos no mesmo dia. A PIDE levou-me para interrogatórios, questionando-me sobre o Partido Comunista. Neguei as acusações de pertencer ao Partido e, perante toda a minha inocência, lá perceberam que estava a dizer a verdade. De qualquer forma, convinha-lhes manterem-me presa. A melhor maneira de exercerem pressão sobre o Cláudio, era dizerem-lhe que me torturavam. Na prisão, ele e eu começámos a trocar bilhetes clandestinos que colocávamos em buracos, que iam mudando de sítio. Depois do julgamento soubemos que esses sítios onde escondíamos os bilhetes eram estrategicamente criados pela PIDE, e que eles interceptavam e liam todos os que lá eram postos. Aprendi também a comunicar através de pancadas, o que demorava imenso tempo. Uma pancada era A, duas B… Utilizava este método para comunicar com o vizinho de baixo, que cheguei a conhecer posteriormente.

Durante o tempo em que estive presa, estive sempre sozinha, e só me deixaram ter um livro, que era a primeira edição da obra completa de Fernando Pessoa. Se calhar consideravam que aquilo era ilegível [Risos]. Não me deixavam ter mais nada. A minha prisão foi um choque para a minha família. Os meus pais e um dos meus irmãos, que era psiquiatra, foram ver-me à Rua do Heroísmo, perto da Campanhã, onde funcionava a PIDE do Porto. Da minha cela via a entrada da prisão, pelo que assistia à chegada da família do Cláudio.

O Cláudio sofreu, no total, 19 dias da tortura do sono. Eu, não só não fui maltratada fisicamente, como fazia parte da tortura psicológica que lhe infligiam: constantemente os pides lhe descreviam os horrores pelos quais eu estaria a passar. Mas a circulação de informações secretas através das paredes da prisão contrariava essas falsas afirmações.

Transferiram-nos por uma noite para a cadeia da Relação do Porto. Foi um mergulho noutra vida

Ao fim de três meses e meio, transferiram-nos de prisão por uma noite. Fomos para a Cadeia da Relação do Porto, que era uma prisão comum, enorme, junto ao jardim da Cordoaria. Puseram-nos, a mim e à irmã do Cláudio, numa grande cela de mulheres. A maior parte eram prostitutas e ladras. A “chefe” das mulheres era professora primária e era a única assassina: tinha morto o marido. Receberam-nos muito bem. Rodearam-nos e perguntaram-nos por que razão estávamos ali, por que é que andávamos “naquela vida”. Disseram-nos que elas sim, tinham razão para andar na vida porque não tinham outra forma de sustento, mas nós... pelo aspecto devíamos ser doutra laia. A Marcela, a minha cunhada, que era membro do Partido e sabia muito, falou-lhes sobre a luta do povo contra o salazarismo, da repressão, da PIDE...As mulheres estavam de boca aberta a olhar para ela, encantadas. Deram-nos chá quente, com as bolachas que lá tinham e com todo o carinho. Trataram-nos como se fôssemos umas estrelas. No fim, abraçaram-se a nós e desejaram-nos muitas felicidades e muito êxito na nossa luta. Disseram-nos que aquilo lhes tinha tocado muito e que iam pensar no que lhes tínhamos dito. Para mim, foi um mergulho noutra vida. Foi lindíssimo! A Marcela voltou para a PIDE do Porto e o Cláudio e o David foram transferidos para Paços de Ferreira. Eu fui posta em liberdade condicional.

Tinha sido presa em Junho de 1960 e libertaram-me em Outubro do mesmo ano. Impediram que fizesse os exames em Junho e só me soltaram depois de as matrículas terem fechado. Obrigaram-me, assim, a perder dois anos de estudo. Mas frequentei novamente as aulas de pintura do primeiro ano e arranjei um novo atelier com colegas vários. Os meus pais continuaram a dar-me a mesada como sempre. Quase nem se falou na minha prisão. Colocaram as culpas no regime, e aí o meu pai tornou-se ainda mais anti-salazarista. Mas continuava muito conservador. A minha mãe, a doçura, a boa disposição e compreensão de sempre.

Eu e o Cláudio casámos a 17 de Junho.

Decidimos fugir do país

Enquanto o Cláudio esteve preso não pude vê-lo: negaram-me as visitas. Era a sua família que me ia dando notícias. Nem depois de ter sido amnistiada, no início de 1961, me deixaram visitá-lo. Entretanto, ele foi julgado e condenado à pena sofrida, ou seja, cerca de sete meses. Quando saiu, teve de ir logo à inspecção militar. Foi apurado e mandaram-no apresentar-se num quartel de treino de soldados em Junho. Tinha começado em Fevereiro desse ano (1961) a guerra em Angola. O Cláudio recusava-se a ir para a guerra colonial e a matar quem estava a defender a sua própria terra. Na altura, não havia a figura de objector de consciência. Se ele se deixasse incorporar e depois saísse era considerado desertor e nunca mais poderia regressar ao país. Decidimos fugir antes. Começaram a chegar várias notícias de comunistas mortos na guerra. Eram mortos pelas costas. Ficámos ainda mais convictos na nossa decisão. Nessa altura, fiquei grávida. O Cláudio decidiu ir a Mirandela comunicar ao meu pai que íamos casar. Porém casar pelo civil... era um acto revolucionário naquela altura. O meu pai disse que não autorizava. Se casasse só pelo civil, dispensando a igreja, não iria ao meu casamento nem me daria dinheiro algum. Não podia aceitar que uma filha sua vivesse em “concubinato”. Mas tão pouco imaginava que nós tencionávamos fugir do país. A minha mãe, no entanto, foi ao casamento e ajudou-me em tudo o que pôde com as suas economias secretas.

Resolvemos ir de barco até Marrocos

Como não tínhamos dinheiro para pagar a um passador que nos orientasse por terra, resolvemos ir por mar até Marrocos. Um rapaz do Partido que era estivador, e que também tinha estado preso, o José Valadas, tinha conhecimento de um barco que estava à venda no Douro. Era um barco a remos, bastante sólido, precisando de algumas reparações. Fizeram-lhe uma cabine, instalaram um motor fora de borda e um leme na cabine com ligação ao motor. Tinha menos de seis metros, com um banco de cada lado e umas traves no meio. Apareceram cinco companheiros para a viagem. Um casal (a Helena e o Fernando), que nem tinha razões para fugir; um rapaz que era escriturário e já tinha estado preso, o Hermínio; o José Valadas, que disse que tinha carta de marear e nunca tinha pegado num barco; e outro amigo do Cláudio, que ia ser incorporado em Agosto, o Valdemar. Havia grandes lutas pelo domínio do barco, para decidir quem era o capitão. A Helena e o Fernando tinham a carta de marear da Mocidade Portuguesa e tinham pago a maior tranche do valor do barco. Por isso achavam que deviam ser eles a comandar. O resto da malta achava que os rapazes mais fortes deviam revezar-se no leme, e que o espaço era demasiado pequeno para se estabelecerem hierarquias. Cada um faria segundo as suas possibilidades.

Nós os dois fugimos do Porto, de comboio, na madrugada de S. João.

Ao mesmo tempo, os outros cinco saíam com o barco pelo Douro em direcção a Lisboa, onde nós os iríamos encontrar. Só tiveram dificuldades no Cabo da Roca. Assim que o Hermínio entrou no barco começou logo a enjoar, e passou a viagem toda sempre estirado no chão. Eu e o Cláudio íamos tentar arranjar em Lisboa cartões internacionais de estudantes, porém o José Bernardino, que era o nosso contacto, andava em viagem - pelo que não conseguimos os cartões de que precisaríamos no estrangeiro. Quando o barquito chegou a Cascais atracou na Marina. Foi lá que nos encontrámos os sete. Quando alguém contou que vinham do Porto, aquilo pareceu uma coisa espantosa, porque o motor Evinrude nunca tinha sido utilizado para viagens tão longas. Os representantes da marca souberam disso e queriam fazer uma festa no dia seguinte, para comemorar a proeza. Era uma festa onde estaria a polícia, porque todos os ajuntamentos metiam pides. Tivemos de fugir à socapa nessa mesma noite.

A viagem até Marrocos

Atravessar a barra de Lisboa, do Bugio, ainda por cima de noite, é uma coisa infernal. Pensámos que ficávamos logo ali. O Valadas ia ao volante. Passados dois ou três dias a navegar, sempre a ver a costa, chegámos a Sines. Resolvemos parar uns dias para recuperar forças e para encher o barco com mais mantimentos. Alojámo-nos numa casa familiar que alugava quartos. A Helena começou a fazer perguntas ao dono da casa, que acabou por nos dizer que era o cabo do mar. Tivemos de fugir novamente. Fomos para a Arrifana, um porto de pesca. Não existiam casas nenhumas, só cabanas de pescadores e uma falésia altíssima que, à época, só tinha escadas de corda. Estivemos lá oito dias a descansar. Comíamos lavagante, que era a única coisa que eles pescavam para fornecer hotéis. Enjoámos logo [Risos]. Fizemos bons amigos entre os pescadores. Eles perceberam perfeitamente que não íamos para o Algarve, até porque precisávamos de imenso combustível. O Cláudio e os outros foram várias vezes a Lagos de táxi para abastecer. Aí apercebemo-nos que só conseguíamos levar um determinado número de bidões, na medida em que tínhamos pouco espaço no barco. E os bidões que levássemos não seriam suficientes para chegarmos a Marrocos: íamos ficar sem gasolina no meio do mar. Aí começou o grande drama com o outro casal. Ela queria que fôssemos pelo Algarve para eles poderem desembarcar e ficar em terra. Dissemos-lhe que todos sabiam à partida o perigo que íamos enfrentar e foram de livre vontade, por isso, íamos continuar. Ela acabou por ceder. Lá iniciámos viagem, em direcção ao alto mar. Não queríamos dobrar o cabo de São Vicente, não só porque era muito difícil, mas também porque entrávamos em águas do Algarve e podíamos ser apanhados. Quando decidimos ir em frente e nos afastámos da costa, a Helena sacou de uma pistola e ameaçou matar-nos se não virássemos em direcção ao Algarve. O Cláudio, que estava perto dela, dá um salto, dá-lhe uma pancada no braço e lá vai a pistola pela borda fora. Ia desequilibrando o barco. Ela ficou aos gritos. Teve um ataque de pânico, creio eu. Quando serenou, foi buscar ao caixote a bandeira de Portugal, embrulhou-se nela e começou a rezar o terço em alta voz. Quando acabava um terço, começava a cantar o hino nacional. E recomeçava. Ninguém tugia nem mugia. Isto durante horas, até que acalmou definitivamente. Parece que a reza lhe fez bem. Foi à mala, tirou um papel e uma caneta e pôs-se a escrever. Meteu aquilo num envelope.
A gasolina estava a acabar, e a ideia do Cláudio era posicionar-nos na rota dos navios que vinham da América para entrar no Mediterrâneo. Assim, seríamos avistados por alguém. E fomos! Um cargueiro grego parou e perguntou-nos o que estávamos ali a fazer. Dissemos que precisávamos de combustível e de água. Deram-nos tudo e indicaram-nos que Marrocos ficava a 50 milhas, e que devíamos ir sempre em frente pelo caminho que estávamos a seguir. Orientávamo-nos por uma bússola, daquelas pequeninas e levámos um daqueles mapas de Portugal que existiam nas escolas e que tinha sido a tia do Cláudio a arranjar. Achámos que iríamos chegar num instante. Mal o cargueiro desapareceu no horizonte, o mar começou a picar. Tínhamos entrado na desembocadura do Mediterrâneo. Ora, o Mediterrâneo a entrar no oceano faz uma correnteza enorme que, durante toda a noite, nos empurrou na direcção da América. E continuou a levar-nos nos dias seguintes, até a braveza abrandar e podermos tornar para trás. Mas quando voltámos àquele ponto fomos novamente levados pelas correntes. Já só existia combustível para mais uma hora. Convencemo-nos de que íamos morrer ali. Estando eu grávida, deram-me o único salva-vidas que tínhamos, como se uma bóia amarela fosse capaz de me salvar no meio do oceano. De repente, começámos a ouvir um barulho. Era uma quilha enorme que vinha por detrás na nossa direcção. Aflitos, tentámos que nos avistassem. Virámos o barco o mais possível para o lado para não nos abalroarem. Era um petroleiro muito alto. Vimo-lo passar ao nosso lado. Para pedir socorro no alto mar utilizam-se balões vermelhos e pretos ou, se for de noite, morse luminoso. Pegámos em panelas e tachos e embrulhámo-los em camisolas vermelhas e pretas. Gritámos e acenámos. De repente, vimos um homem a correr na ponte do petroleiro. Fomos ao encontro do navio, mas ele afastou-se. Passado um bocado apercebemo-nos de que ele nunca mais desaparecia do horizonte! Aproveitámos o que nos restava de combustível e aproximámo-nos do petroleiro. Tinha parado à nossa espera. Quando chegámos, atiraram-nos uma escada de corda. Não sei como é que trepei aquilo. Estávamos todos esfarrapados porque o motor deitava ácido que corroía as nossas roupas. Éramos autênticos náufragos. O petroleiro içou o nosso barco. O capitão era americano, o barco era liberiano, mas tinha tripulação italiana. Quando souberam que éramos anti-fascistas portugueses entraram em delírio. O comandante telefonou logo para Gibraltar, pois era obrigação de um salvador entregar os náufragos no porto mais próximo. Chamou a Scotland Yard para nos entregar. Quando abaixaram o nosso barco e a nós nos transferiram para a lancha da polícia, começou toda a tripulação a cantar o Bella Ciao, ciao, ciao... Foi bonito.

Em Gibraltar deram-nos 24 horas para irmos embora

A Scotland Yard meteu-nos em hotéis separados, os homens para um lado e as mulheres para o outro. Não lhes interessava se éramos casados. Deram-nos 24 horas para irmos embora. Nessa noite, decidimos que os que tinham passaporte iriam de ferryboat até Marrocos: eu, a Helena e o Hermínio. O barco estava muito fragilizado, cheio de buracos, porém um velho marinheiro espanhol que estava no cais ajudou os rapazes a arranjá-lo e indicou-lhes a rota para atravessar o Mediterrâneo, que tinha de ser em ziguezague. O Cláudio e os outros, novamente no barquito, foram perseguidos por vedetas espanholas, mas conseguiram despistá-las e entrar no cais de Tânger. Felizmente, estava maré cheia. Quando baixou a maré, vimos que o barco estava praticamente pousado em cima das rochas.

Eu e o Cláudio fomos a Rabat falar com a União dos Estudantes Marroquinos (UNEM). Os estudantes ajudaram-nos imenso. Pagavam o restaurante e ajudaram-nos a arranjar uma casa. Mas a associação estudantil foi desmantelada pela polícia marroquina pouco depois de chegarmos. A partir daí tivemos de nos desenrascar sozinhos. Foi um período muito duro, em que ficámos a saber o que é a fome. Valeram-nos o Valdemar e o Valadas que iam apanhar polvos nas rochas da praia. Depois o Hermínio arranjou um emprego de contabilista e a Helena e o Fernando tornaram-se revolucionários: foram para o grupo do Henrique Galvão, que depois iria sequestrar o avião da Operação Vagô. O José Valadas e o Valdemar arranjaram emprego como soldadores na oficina de um amigo português que lá fizemos. Como eu tinha andado em arquitectura, e sabia desenhar, ensinei ao Cláudio como se utilizavam as canetas do ofício e concorremos ao Ministério do Urbanismo, que precisava de desenhadores. Fomos logo admitidos. Mais ninguém sabia manusear aquelas canetas. Sobrevivemos assim um ano e dois meses. A Nádia nasceu lá, numa maternidade pública marroquina, quando havia 13 mulheres a parir ao mesmo tempo.

Fomos para a Roménia trabalhar na rádio Bucareste

Em Setembro de 1962, tinha a Nádia oito meses, recebemos através do Partido uma oferta de trabalho, que podia ser na Alemanha ou na Roménia. Aceitámos ir para a Roménia. Passámos pela Checoslováquia e depois fomos trabalhar na Rádio Bucareste, que era a rádio nacional, não sendo tão politizada como o era, por exemplo, a rádio Portugal Livre. Na rádio éramos responsáveis pelas três emissões diárias em português para Portugal, colónias e Brasil. Os conteúdos eram mais ou menos os mesmos. Só o comentário político, que estava mais a cargo do Cláudio, é que variava de uma para outra. Quando ele ia para férias eu assumia também essa responsabilidade. O resto era propaganda interna, traduzida do romeno: a comparação da colheita do milho do ano em que estávamos em relação ao mesmo período do ano anterior, etc. Também dávamos a conhecer um pouco da cultura romena. Essa parte estava mais a meu cargo. Estávamos encarregues da locução, de escrever notícias, de corrigir as traduções para português que os colegas romenos faziam, de escolher as músicas… Cada emissão tinha meia hora, num total de hora e meia por dia. As emissões eram gravadas, felizmente não eram em directo.

Uma coisa que na Roménia era estritamente proibida era que o marido e a mulher trabalhassem os dois no mesmo sítio. Eles diziam, com muita razão, que os problemas do trabalho são levados para casa e que os problemas de casa são levados para o trabalho. É preciso uma mulher ter muita força para conseguir estar com um homem, os dois com o mesmo grau de responsabilidade, no mesmo trabalho, todos os dias durante onze anos, que foi o tempo que estivemos na Rádio Bucareste. Foi por isso que eu resolvi prescindir, por exemplo, dos comentários políticos: seria sempre um terreno de desentendimentos desnecessários.

Durante os anos da Roménia fizemos muitos amigos. Eram, sobretudo, estudantes estrangeiros que encontravam na nossa casa algo que não havia em mais nenhum sítio: café de filtro e discussão de temas da actualidade. Ia toda a estudantada do Brasil e colónias portuguesas para nossa casa tomar café... e saber as poucas informações que nos chegavam dos seus países.

Entretanto, mudáramos de nome logo ao princípio, por precaução do Partido. A ideia que tínhamos de ir estudar ficou por isso suspensa até ao momento em que nasceu a nossa segunda filha, a Rossana. Quando a íamos registar, deparámos com o seguinte problema: sendo eu Teresa Ramos e o Cláudio José Ramos, a nossa filha ia ser Rossana Ramos… e quando voltássemos para Portugal de quem é que ela seria filha? Falámos com o Partido e dissemos que precisávamos de recuperar o nosso nome por causa dela e também porque queríamos voltar a estudar...

Comecei a estudar Filologia Românica

Estávamos lá há quatro anos sem estudar, só a tratar da rádio e a aprender a língua. Não íamos ser locutores em Portugal… Fomos a tribunal provar as nossas verdadeiras identidades e conseguimos recuperar os nossos nomes. Eu não podia voltar a Belas Artes porque não tinha espaço para pintar: a nossa casa era pequeníssima. Optei por um curso de Filologia, centrado nas línguas romena e francesa, onde tinha tudo: Literatura universal, Literaturas modernas, Linguística nas suas várias vertentes… Era muito interessante. O curso durou cinco anos, com tese final. Foi o período mais difícil da minha vida, porque tinha duas filhas pequenas, uma só com um ano, e tinha de conjugar os estudos com a rádio. Fui estudar antes do Cláudio, e ele é que ficava sempre na rádio até ao fecho das notícias, para eu poder dormir o suficiente durante a noite. Depois, quando eu já estava quase a terminar o curso, trocámos: era eu quem ficava até ao fim, porque ele tinha de se levantar cedo para ir para as aulas do curso de História da Arte.


Manuela Barros, 2019.

Em 1967, o meu sogro, Flausino Torres, que era historiador e militante comunista, saiu de Argel e foi para a Roménia viver connosco durante uns meses. Aí foi ainda mais duro. Não podíamos ter as miúdas connosco! Pusemo-las num infantário semanal. Foi uma dor de alma para mim. Elas entravam à segunda-feira e eu preparava uma malinha com as roupas para a semana. Ia buscá-las na madrugada de sábado. Mas na rádio eu trabalhava das quatro e meia até à meia-noite, todos os dias. Levantava-me às 7h30, ou mais cedo, para estar às 8h na Faculdade. Saía às 14h30 e vinha a casa almoçar qualquer coisa à pressa e ia para a rádio até à meia-noite. Foram cinco anos assim, de sufoco. Se as miúdas não ficassem no infantário nem conseguia. O meu sogro tinha um temperamento bastante difícil, mas a minha sogra tornou-se numa grande amiga. Tinha um amor por ela como se fosse minha mãe. Dávamo-nos muitíssimo bem e ela ajudava-me em tudo o que podia. Pouco tempo depois de chegarem os meus sogros, veio também o meu cunhado, o Álvaro, com 16 anos. Nessa altura, quando as minhas filhas vinham para casa ao fim de semana, era um desafio gerir o espaço. Entretanto, o pai do Cláudio foi convidado para ir para Praga, leccionar Português e História de Portugal na Universidade Karlova. O Álvaro ficou connosco mais cerca de um ano.

Enviámos as miúdas para Portugal

A Nádia já tinha crescido, já podia ir à escola, tirámos as miúdas da creche e voltaram para casa. A Nádia entrou na primeira classe do ensino oficial e a Rossana, com quatro anos, foi para uma escola maternal. Era a Nádia, com sete anos, que levava a Rossana pela mão para eu poder estar nas aulas às 8h. Um dia, a Nádia chegou a casa a cantar uma cantiga nova que tinha aprendido. A letra da cantiga continha a seguinte frase: “A Roménia é o meu país e Ceaușescu é o meu querido pai”. O Cláudio ouviu isto e perguntou-lhe: “Quem é o teu querido pai, Nádia?”. Ela apercebeu-se do que estava a cantar e fartou-se de chorar.
A nossa casa ficava num nono andar, onde habitava também uma amiga da Nádia. Elas as duas mais as outras miúdas do prédio tinham grandes “debates filosóficos” sentadas nas escadas ao lado do elevador. As conversas delas sobre o deus vingativo e sobre os horrores do inferno assustaram-me. O facto de estarmos num país supostamente ateu e os professores levarem as crianças às igrejas às escondidas também era uma coisa inadmissível. Optámos por mandá-las para Portugal, para casa do tio Hilário e da tia Cassilda, professores primários, muito católicos, que já tinham cuidado do Cláudio e das irmãs quando eram pequenos. A tia avisou logo que ia baptizá-las e nós não nos opusemos. Desde que não as afogassem… [Risos] Aprenderam o catecismo e foram obrigadas a ir à missa. Quando cresceram, optaram pelo que bem quiseram. Houve quem nos censurasse por as submetermos a uma educação católica quando estávamos num país de leste. Disse-lhes que era precisamente por isso: preferíamos que elas vivessem num país em que ter uma religião era um acto livre do que estarem num país onde isso era proibido, logo mais apetecido, e praticado como um acto de coragem rebelde.

Voltei para Portugal em 73

Em 1972 estava com tantas saudades delas que decidi vir a Portugal. Como ainda tinha o meu velho passaporte, entrei e saí sem problemas. Comprei o bilhete até Paris e de Paris para Portugal. Nessa altura, já tinha acabado o meu curso de Filologia Românica, pelo que entreguei o meu diploma no Ministério da Educação português com um pedido de reconhecimento da licenciatura. Ainda estava em Portugal quando me responderam que reconheciam a licenciatura, mas que precisavam dos programas circunstanciados de cada cadeira, bem como do plano de estudos. De volta à Roménia, levei a minha mãe comigo, que tinha 72 anos.

Em 1968 tinha havido a questão da Checoslováquia, da Primavera de Praga, e o pai dele, que condenou a invasão soviética, foi expulso do Partido. Ele dizia que não se considerava expulso porque seria comunista até ao fim da vida e era ele que pedia a expulsão do Álvaro Cunhal. O Cláudio saiu do Partido nessa altura. A direcção da rádio contratou um amigo nosso para nos ajudar, o Adelino, que tinha acabado Psicologia.

Em Janeiro de 73, já só faltava ao Cláudio entregar a tese. Eu fazia 35 anos nesse ano, que era a idade limite para entrar na Função Pública, e como queria ficar em Portugal e ver o meu curso reconhecido, tive mesmo de voltar. Fui a Paris pedir um novo passaporte, já que o meu tinha sido actualizado com carimbos feitos com batata crua. Fui à embaixada de Paris pedir o passaporte, onde fui muito bem recebida pelo embaixador. Felicitou, inclusive, o meu percurso académico. Vim para Portugal sem avisar ninguém, mas, assim que cheguei ao aeroporto de Lisboa, fui abordada pela PIDE. Alguém os tinha avisado que ia chegar. Creio que não terá sido o embaixador, mas sim um dos muitos pides que se encontravam nas embaixadas. No aeroporto, pedi ao agente que estava na secretária para andar um pouco. Quando passei por trás dele, vi que o mandado de captura era de 1962. Isso significava que eles não sabiam nada sobre a minha estadia na Roménia. E eu soubera em Paris que a Helena tinha sido presa e já devia ter contado tudo sobre a nossa fuga. Fiquei presa durante cerca de três semanas em Caxias. Pediram para descrever, por escrito, a minha fuga e eu escrevi, começando por dizer que, no tempo dos gregos, a mulher ficava a fazer tapetes quando o marido se ausentava, mas não estávamos na Grécia... Não falei sobre a Roménia, nem sobre o trabalho na rádio. Só falei sobre a fuga, da qual eles já conheciam os pormenores. O Cláudio estranhou a ausência de notícias e, ao fim de oito dias, resolveu ligar para a família. Disseram-lhe que não sabiam de mim. Entraram todos em pânico. Lá me desencantaram em Caxias. Estava mais uma vez numa cela isolada, mas com melhores condições que as da PIDE do Porto. A minha cunhada Marcela entrou logo em campo e contratou um advogado, que rapidamente conseguiu a minha libertação. Soltaram-me sob caução e residência fixa, porque não tinham quaisquer provas para me levarem a julgamento.
Quando saí, fui ter com o professor Lindley Cintra, que me ofereceu trabalho como bolseira de investigação no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (que então se chamava Centro de Estudos Filológicos). Fiquei lá trinta anos. Percorri o país a conversar com pescadores, camponeses, moleiros, tecedeiras… a recolher a terminologia das artes tradicionais, informações sobre os instrumentos utilizados, os nomes das ervas e animais locais, as superstições, as histórias. Fiquei a conhecer melhor o povo do nosso país. E confirmei que a minha opção de estar sempre ao lado dos dominados estava correcta.

Fui duas vezes a Paris ver o Cláudio, que foi para lá trabalhar em Setembro de 1973 como electroencefalografista, depois de terminar o curso.

No 25 de Abril soube do que se passava logo que saí de manhã. Fui na mesma para o trabalho, mas saí logo outra vez para a rua com as minhas colegas. Continuámos a ir trabalhar todos os dias, não queríamos falhar nos nossos compromissos. O Cláudio voltou no primeiro avião, a 30 de Abril, com o Álvaro Cunhal, o José Mário Branco, o Luís Cília... Não fui esperá-lo ao aeroporto porque nem sequer sabia que ele vinha. Como não tinha passaporte, saltou a vedação e fugiu às multidões. Chegou ao Centro de Estudos Filológicos com a malinha na mão. Sem mais nada, a não ser um sonho que finalmente podíamos viver bem acordados.


Manuela Barros Ferreira nasceu em Braga em 1938, onde recebeu o nome de Manuela Alexandra Queiroz de Barros Ferreira. Começou a falar na ilha de S. Miguel, aprendeu a ler em Cabeceiras de Basto e a contar em Guimarães, leu o primeiro livro em Beja, descobriu a neve em Vila Real e a amizade em Mirandela. No Porto andou em Arquitectura e Pintura e ali conheceu o amor, a prisão da PIDE e os ideais que se tornaram a sua estrela polar. Quando estalou a guerra colonial (1961), o marido recusou-se a ir matar. Com ele e mais cinco companheiros, fugiu, grávida, para Marrocos, onde foram ambos desenhadores de Urbanismo. O casal seguiu para a Roménia com uma filha. Durante onze anos foram, sob pseudónimo, locutores da Rádio Bucareste. Tiveram outra filha e deram apoio a estudantes chegados da África e América Latina. Depois de recuperado o verdadeiro nome, Manuela formou-se em Filologia Românica. Em 1973 regressou a Portugal, foi novamente presa, desta vez em Caxias, e libertada sob caução. Foi admitida como bolseira de investigação no Centro de Estudos Filológicos, ligado à Universidade de Lisboa. O marido, Cláudio Torres, regressou a Portugal logo após o 25 de Abril.

Doutorou-se em 1987. Durante trinta anos trabalhou em projectos de Geografia Linguística, gravando extensos testemunhos dos dialectos falados nas aldeias do continente e ilhas e sistematizando os dados para o Atlas Linguístico de Portugal, Atlas Linguístico dos Açores, Atlas Linguístico Românico e Atlas das Línguas da Europa (geográfica). Entre 1997 e 1999 coordenou do ponto de vista científico a equipa que instituiu a Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, o que contribuiu para o seu reconhecimento como língua oficial. Criou em 2001 o primeiro site dedicado a essa língua, com um fórum para discussão de problemas linguísticos.

Aposentou-se em 2002 . Trabalhou até 2009 como investigadora do Campo Arqueológica de Mértola, coordenando a equipa de linguistas luso-espanhola que publicou no site do CAM o recurso electrónico “Bibliografia Língua e Cultura na Fronteira Norte-Sul” (2007).

Além de numerosos artigos de carácter linguístico, a partir de 2003 tem publicado livros de ficção: “A cor das nuvens”, “Meia Bola”, “O medronho ponto por ponto”, “A Senhora de Todas as Mortes” (editora Afrontamento) e, com Cláudio Torres, “Casa, casarão, minha casinha” (editora ALTUM). Pelo seu teor político, destaque para “Contos de querer e poder” que, apesar do seu aspecto gráfico, não fora concebido para crianças.

Vive em Mértola com a família. Tenciona chegar aos 81 anos e publicar com essa idade um “Relatório Circunstanciado de uma Vida a Dois, pelo menos”. Não aceita o chamado “Acordo Ortográfico 1990”.

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