Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.
Nasci em setembro na Beira, em Moçambique. Os meus pais casaram-se lá, com 20 anos, tiveram o meu irmão, e esperaram que eu nascesse para virem para Portugal estudar. O meu pai foi para Engenharia, para o Técnico, e envolveu-se nos movimentos estudantis. Era vice-presidente da Associação de Estudantes do Técnico, mas como o presidente se afastou, acabou por assumir a liderança da Associação. Participou nas lutas académicas de 62 com o Jorge Sampaio e com todo aquele grupo do luto académico. Foi um processo de profunda consciencialização política para o meu pai, embora o meu avô paterno, Claúdio, já tivesse uma perspetiva antifascista e uma franca simpatia por aquilo que era o comunismo. Além de ser um ateu ferrenho. O meu avô tinha um colégio na Beira que era o único que não dava aulas de religião e moral, o que acabou por lhe valer um processo e o encerramento do estabelecimento de ensino.
A minha avó paterna, a Sara, também tem uma história. O pai dela era um republicano dos sete costados. Esteve preso no Tarrafal e foi sempre um exemplo para o meu pai e para os irmãos. Era uma família de republicanos. O meu bisavô tem, inclusive, um largo com o nome Pires de Carvalho na Lousã, em Casal de Ermio. Era um combatente republicano antifascista. É, portanto, uma história de uma cultura que se instala.
O meu pai quando veio para Portugal veio casado e com dois filhos muito pequenos. Eu vim fazer um ou dois meses a Portugal e vivi sempre cá. A Beira é mesmo um acidente. Quando o meu pai chegou já tinha alguma consciência social e política, em termos de igualdade, de respeito pelo outro, mas considerava-se ainda muito imberbe. E é no movimento associativo e no movimento estudantil que ganhou, efetivamente, mais consciência. Entretanto, também estava cá o irmão mais novo, o meu tio Rui d’Espiney, que também pertenceu ao movimento associativo dos estudantes do ensino secundário. O facto é que, nessa altura, o meu pai e os seus irmãos começaram a ganhar consciência política mais estruturada nos movimentos associativos. A primeira imagem que tenho do meu pai, deveria ter uns quatro ou cinco anos, foi vê-lo chegar a casa carregado pelos colegas porque tinha apanhado uma sova monumental da policia ao tentar defender o professor Lindley Cintra que foi também brutalmente agredido. Acabou por conseguir fugir por entre as pernas de um policia. Os colegas conseguiram carrega-lo em braços por dentro da Faculdade de Medicina e leva-lo para casa, todo partido. Lembro-me perfeitamente que uma colega do meu pai me deu uma moeda para ir comprar rebuçados à rua, na loja ao lado. Deveria ser para eu não ver aquela cena. Foi o primeiro momento em que reconheço que existe alguma coisa que não bate certo.
Luísa d'Espiney, em 1962, na Alameda D. Afonso Henriques, com o seu pai e o seu irmão.
No final de 1962, quando tinha seis anos, o meu pai acabou o curso e foi trabalhar para a Messa que lhe proporcionou um estagio na Alemanha. Fomos todos com ele. Aprendi a ler e a escrever alemão primeiro do que português. Esse foi um período muito tranquilo, mas o meu pai achou que tinha de voltar a Portugal. Apesar de ter sido convidado para lá ficar, achava que tinha deveres quer para com a empresa quer para com a luta contra o fascismo.
Em três anos, foram presos os meus dois tios e o meu pai
Regressámos a Portugal quando eu estava à beira dos meus sete anos. Recordo-me de começarem a cochichar à minha volta. Foi aí que descobri que o meu tio Zé Luís d’Espiney, o irmão a seguir ao meu pai, tinha sido preso, em 1965. Eu tinha com ele uma relação muito afetiva. “Foi preso, mas não é bandido”, foi a explicação que me foi dada, o que, para uma criança de sete anos, não é muito fácil de engolir. Tinha oito anos, em 1966, quando foi preso o meu tio Rui com quem tinha menos contacto pois estava exilado no estrangeiro. E, quando tinha nove anos, em 1967, foi preso o meu pai. Quando o prenderam, tive a sensação de que não podia contar a ninguém. É este sentimento de que não se pode falar do que se passa a ninguém, nem aos amigos, porque não sabíamos quem eram os amigos, que, naquele contexto, favorece uma tendência para um certo isolamento, para um certo afastamento.
Luísa d'Espiney na Ericeira, em 1966, com 9 anos, pouco antes da prisão do seu pai.
No dia em que o meu pai foi preso, numa sexta-feira, a minha tia Teresa, casada com o irmão Zé Luís que estava preso, jantou lá em casa. A seguir, saíram para tomar café. Eu, com nove anos, o meu irmão, com doze, e as minhas irmãs, com três anos, que estavam a dormir, ficámos em casa. A certa altura começaram a tocar insistentemente à campainha. Não queríamos abrir a porta, mas face à insistência decidimos abrir. O meu irmão mandou-me ir abrir a porta e pôs-se atrás de mim com um martelo escondido nas costas. Estava com um ar muito valente [Risos]. Abri a porta e entraram oito marmanjos pela casa dentro. Disseram-nos: “Não se assustem, somos da polícia”. O meu irmão disse-me ao ouvido: “Ainda pior!” [Risos]. Tudo isto era um bocadinho confuso na minha cabeça. Ficava um pouco baralhada com a questão dos polícias e dos ladrões. Aos nove anos, nada disto era muito linear. Pensava que, se fosse filha de um ladrão, ele não ia admitir que era ladrão. Esta suspeita ficava-me na cabeça e isto assaltava-me frequentemente.
Os Pides perguntaram-nos se tínhamos armas em casa. Respondemos que não. Ficaram muito contentes quando encontraram uma espingarda de matar passarinhos que o meu pai tinha de quando era adolescente em África. Claro que a deixaram lá em casa, porque aquilo só tinha chumbinhos.
Por volta das três da manhã, trouxeram a minha mãe. Perguntámos onde estava o pai, ao que ela respondeu que tinha sido preso. Comecei a chorar, e o meu irmão sussurrou-me “não se chora à frente da policia”. Engoli as lágrimas. Só trouxeram a minha mãe porque tinha quatro filhos em casa, caso contrário, também a tinham levado. Os polícias acharam que era melhor ficarmos presos em casa. Passámos três dias fechados, com as linhas de telefone cortadas e com dois PIDES à porta. Não podíamos contactar com ninguém. Eles iam fazer as compras do que precisássemos. A minha mãe chateou-os o mais que pôde. Só na segunda-feira, para aí às quatro da tarde, é que eles nos libertaram. Tivemos de chamar a companhia dos telefones para repor as comunicações.
A minha mãe estava a acabar o curso de Belas Artes quando o meu pai foi preso. A família da minha mãe rapidamente se organizou para lhe enviar uma mesada todos os meses. E a empresa onde ele trabalhava, a Messa, manteve o pagamento total do seu ordenado até ao julgamento. A minha mãe trabalhou com o Luís de Stau Monteiro durante uns meses e depois conseguiu concorrer para o ensino, para dar aulas de Educação Visual. Ao fim de um ano, foi proibida de ensinar, mas conseguiu recorrer a uns primos ligados ao regime que atestaram pela sua honra. Ela voltou ao ensino, apesar de não ser colocada, e algumas pessoas chamaram-na para dar aulas. Na altura em que o meu pai foi preso, eu estava no Colégio Alemão. Achava que me tinham entregue aos nazis [Risos], porque andavam lá uns quantos filhos de ministros. Os meus pais faziam o enorme sacrifício de me manter lá para não perder o alemão que tinha aprendido. Eu achava que o Colégio tinha uma cultura um bocado pesada a nível da disciplina. Com a prisão do meu pai, tive de sair do colégio. Fiquei muito feliz porque me livrei dos nazis [Risos].
As visitas a Peniche
Para estar o máximo tempo possível com o meu pai, que entretanto foi enviado para o Forte de Peniche, a minha mãe arranjou uma tenda de campismo e instalou-se no Parque de Campismo de Peniche todos os fins-de-semana e férias entre fevereiro/março e outubro/novembro. À sexta-feira seguíamos para Peniche e domingo à noite voltávamos, normalmente com boleias. Éramos os campistas número 50 do parque.
Luísa d'Espiney e os seus irmãos no parque de campismo de Peniche, com a sua canadiana atrás, 1971.
Durante as visitas à prisão de Peniche, não podíamos dizer grande coisa, só se podia falar da família. Às vezes, apercebia-me de que os meus pais faziam sinais um ao outro. Lembro-me de alguma tensão. Os guardas não se metiam particularmente connosco, habitualmente, éramos meia dúzia de miúdos nas visitas. Recordo-me que não nos deixavam sair do parlatório onde estava o meu pai para visitar o meu tio, que estava no parlatório ao lado a receber a visita dos meus avós. Não podia ir lá dizer-lhe olá, o que não quer dizer que não fosse [Risos]. Normalmente, éramos logo chamados à atenção. Basicamente, as visitas eram um momento de alguma tensão mas também de alguma satisfação. Durante os três anos em que o meu pai esteve preso, só pude tocar-lhe uma vez. Também me lembro dos recados que vinham nas bainhas das calças ou dos casacos. Eram muito bem-feitos, com uma letra minúscula, mas tudo legível. Aquela minúcia impressionava-me [Risos]. Eram mensagens para o exterior, o que causava uma tensão quando se entregavam as roupas e se recebiam. Havia um sentimento de nojo daquele espaço. Era o sentimento mais forte que a prisão me provocava: uma certa repulsa física. Os presos em Peniche estavam divididos em dois pisos: no Pavilhão A estavam os presos do Partido Comunista Português (PCP), e no Pavilhão B estavam todos os outros. Existiram várias lutas pela melhoria das condições no pavilhão B, que não tiveram o apoio do Pavilhão A.
Depois tínhamos outras contrapartidas. Brincava muitas vezes com os miúdos que estavam ali, íamos à praia, fazíamos piqueniques nas dunas, o parque era lindíssimo – ainda não tinha tido a doença das árvores e, portanto, era bastante arborizado. Tudo isso contrabalançava a situação. Penso que acabávamos por integrar aquela experiência de uma forma mais ou menos pacífica. Claro que, na altura em que o meu pai foi preso, as coisas não foram fáceis.
A sensação de que, em silêncio, estamos juntos
As coisas foram difíceis, mas, a partir daí, começámos a compreender e a solidarizar-nos com o que se estava a passar. Fomos todos obrigados a crescer um bocadinho mais do que seria normal para a nossa idade. Aos onze anos já ia sozinha para Peniche. Tinha problemas de asma e a humidade de lá, por vezes, deixava-me mal, por isso, dormia em Lisboa e ia de camioneta ter com a minha mãe a Peniche.
Há uma realidade de que gosto muito de falar: o sentir a solidariedade das pessoas à nossa volta. Isso não consigo esquecer. Os motoristas e revisores das camionetas, que sabiam perfeitamente quem éramos e para onde íamos, arranjavam-nos sempre lugares, nem que fosse no banquinho ao lado do motorista. Eram os Henriques, que já não existem hoje. Na rua onde morei com os meus pais durante muitos anos, uma série de pessoas começaram a oferecer-me rebuçados ou chocolates. Eram pessoas que conhecíamos de nos cruzarmos ali mas com quem não tínhamos contacto. Começámos a receber imensos gestos de simpatia e solidariedade. E o mesmo se passou em Peniche: nos supermercados, nos restaurantes… As pessoas não diziam nada, não falavam, não comentavam, mas existiram uma série de pequenos gestos por parte de várias pessoas. Costumo dizer que aprendi a solidariedade nessa altura, com o carinho que as pessoas à volta demonstraram. Isso foi muito importante. Até para perceber que a pessoa não está tão só como imaginava. Esta sensação de que, em silêncio, estamos juntos. Foi qualquer coisa de muito gratificante.
É este o panorama em que vivia: “não fales”, “não digas”, “não contes”, “tem cuidado”
Nessa altura, os meus avós, os pais do meu pai, já tinham vindo para Portugal. Recordo-me de um episódio curioso, do aparecimento de uma prima, a Catarina que tinha menos dois meses do que as minhas irmãs. Era filha da Rita e do Rui (exilados em Marrocos) e foi entregue em Paris, penso que ao pai do António Costa que a trouxe para Portugal e a passou aos avós. O meu avô pediu-me para ir com eles buscar a Catarina, mas deu-me indicações para não dizer a ninguém onde fui e para, se me perguntassem, responder que tinha ido fazer um piquenique. Não sei se estava a chover, se foi um dia de novembro ou dezembro, mas lembro-me que aquilo pareceu um contrassenso na minha cabeça. Não fazia muito sentido. É este o panorama em que vivia: “não fales”, “não digas”, “não contes”, “tem cuidado”…
A casa dos meus avós tornou-se um centro de apoio aos familiares dos presos políticos. O meu avô recebia e levava para casa toda a gente que precisasse. Eram pessoas que não eram do Partido Comunista Português (PCP), porque, na altura, o PCP tinha redes de apoio próprias. Quem não era do PCP ficava, normalmente, muito sozinho e muito abandonado. E encontravam no meu avô um homem antifascista muito afirmativo, que se confrontava regularmente com os pides.
Uma vez, eu e o meu avô passámos pelo Aljube para vermos o meu tio Zé Luís a partir da rua. O meu avô apontou para cima e disse-me que o meu tio me estava a dizer adeus. Ele começou a assobiar-me a música do capuchinho vermelho, de um disco que tínhamos. Disse-lhe adeus e acenei, juntamente com o meu avô. Apareceu um pide que afirmou que não podíamos fazê-lo. O meu avô respondeu: “Posso, posso…está a ver como posso? O que o senhor quer dizer é que não devo, mas poder, posso!”, e continuou a acenar [Risos]. São pequenas histórias que nos dão uma imagem do modo como foi viver estas coisas.
A casa do meu avô transformou-se numa casa de acolhimento para os familiares de presos políticos.
A casa do meu avô transformou-se, portanto, numa casa de acolhimento para os familiares de presos políticos. Conheci muitas das pessoas que passaram por lá para sentirem apoio, para dormirem, para fazerem refeições, pessoas vindas de longe que não tinham onde ficar… Nessa altura, era frequente a discussão política, a crítica ao regime. Cresci completamente nesse contexto e nesse ambiente, com algum cuidado em relação à escola, evitando falar sobre essas matérias.
A libertação do meu pai e o reencontro com a PIDE
Costumávamos ter uma empregada em casa, porque a minha mãe não tinha apoio para ir trabalhar e deixar os filhos sozinhos em casa. Ela foi sugerida pelo nosso vizinho da frente que, depois do 25 de Abril, descobrimos que era da Legião Portuguesa. Antes ainda da prisão do meu pai, encontrámos essa empregada encostada à porta do quarto do meu pai a escutar as conversas. Quando o meu pai foi preso, despedimo-la e passámos a ter sempre mais cuidado com as empregadas que iam lá para casa e com as denúncias.
O meu pai foi libertado quando eu tinha 13 anos. Um ano após ser solto, a PIDE foi a casa dos meus avós fazer uma rusga para ver os livros que lá existiam. O meu tio Zé Luís também já tinha saído da prisão nessa altura e vivia com os pais. Questionado sobre os seus livros, o meu tio apontou para a mesinha de cabeceira onde só tinha banda desenhada, dizendo “estão aqui os meus livros” [Risos]
Esta foi a segunda vez que a PIDE esteve lá em casa. Também, a partir daí, não tiveram muito tempo para lá voltar. Não tenho dúvidas que, na próxima vez, seria eu a ser presa, portanto, ainda bem que se deu logo a seguir o 25 de Abril.
Entretanto, vieram a minha casa e bateram à porta. Eu estava com as minhas irmãs, que tinham sete anos, à espera que viesse a empregada. Deviam ser umas 9h30 da manhã. Os pides levaram com eles o porteiro, que era diabético e ainda não tinha comido. Estava a transpirar por todo o lado e a sentir-se mal, mas não o deixaram sair dali porque nós éramos menores e eles estavam preocupados em ter um adulto presente. Durante a visita dos pides, a minha avó ligou para lá várias vezes, para nos avisar de que eles deveriam ir lá a casa. Os pides impediram-me de atender o telefone. Como a minha avó não desistia, acabaram por me dizer para atender mas para não mencionar que lá estavam. Pôs-se uma bisarma atrás de mim para me vigiar enquanto eu falava ao telefone. A minha avó perguntou-me porque é que eu não tinha atendido. Respondi que não tinha podido. “Mas não pudeste porquê, o que é que estavas a fazer?”, continuou. “Pois, não sei”, retorqui. Ela insistia e eu só dizia “não sei”, “não posso”. Claro que ela percebeu que a conversa era completamente abstrusa. Já não sabia o que é que lhe havia de dizer, com o pide colado atrás de mim. Ela acabou por desligar o telefone e eles andaram a vasculhar os livros. Lembro-me que eram muito “cultos”: tudo o que era do Lenine, foi apreendido; tudo o que era do Vladimir Ilyich Ulyanov ficou lá em casa [Risos]. Creio que aquela ida lá a casa teve a ver com uma qualquer denúncia, não sei de quem. O meu pai depois do 25 de Abril conseguiu recolher as pilhas de livros apreendidos.
Esta foi a segunda vez que a PIDE esteve lá em casa. Também, a partir daí, não tiveram muito tempo para lá voltar. Não tenho dúvidas que, na próxima vez, seria eu a ser presa, portanto, ainda bem que se deu logo a seguir o 25 de Abril.
O Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário
Depois de sair do Colégio Alemão, fui para escola pública. Estive um ano na Escola Luís António Verney, uma escola mista que abriu nesse ano. Foi uma experiência muito interessante. Não sei se a minha mãe disse a alguém que o meu pai estava preso. A minha mãe fazia questão de divulgar, enquanto eu fazia questão de não dizer nada, porque achava que as pessoas não iam compreender que o meu pai não era ladrão. Uma vez tive a experiência de dizer a alguns miúdos e eles tiveram aquela reação de cantar: “O pai da Luísa está na cadeira sem r” [Risos]. Nunca mais contei.
Depois dali fui para o Filipa Lencastre, lá, tive de assinar um documento onde me comprometia a apenas usar saias abaixo do joelho. Eram pormenores daquele quotidiano que não lembram ao diabo. Assinei o papel mas claro que nunca usei as saias abaixo do joelho. A bata era comprida, não havia problemas [Risos]. O Filipa era um liceu muito fechado. Nessa altura, comecei a tentar entrar em contacto com o movimento associativo, mas não consegui. A família não me facilitou os acessos. Nem facilitou nem dificultou, estavam noutro plano, com outro tipo de preocupações, não tinham contacto com o movimento associativo dos liceus.
Luísa d'Espiney aos 14 - 15 anos, antes de ir para o Liceu D. João de Castro.
Soube de uma reunião no Técnico e fui lá. Identifiquei algumas caras e registei-as mas, como era muito tímida e pouco intrusiva nestas coisas, não tive coragem de abordar ninguém. Também não tinha ideia de quem é que haveria de abordar. Decidi pedir transferência para o D. Pedro V, que sabia ser um liceu com grandes movimentações. Convenci uma colega a ir comigo. Acabei por ser mandada para o D. João de Castro, que ficava a quilómetros de distância de minha casa, e a minha amiga ficou no D. Pedro V [Risos]. Não fiquei mal. Fui colocada na última turma do liceu, com inúmeros repetentes e com problemas de indisciplina. Era indiscritível, daquelas que davam cabo à cabeça de qualquer professor. Mas onde me senti perfeitamente integrada [Risos]. Na altura, aquela postura estava de acordo com a minha irreverência. Hoje tenho pena dos professores.
Nessa turma, encontrei um colega que tinha visto na reunião do movimento associativo. Pensei: “Cá está! É este!”. Aproximei-me dele, começámos a conversar e, passado um tempo, eu estava dentro do movimento associativo dos estudantes do ensino secundário, no MAESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa). Foi aí que conheci vários colegas, e já por iniciativa minha.
Ao todo, fomos presos 140 estudantes do ensino secundário
Entrei em finais de setembro e, em dezembro, fomos todos presos. Ao todo, foram presos cerca de 140 estudantes do ensino secundário. O movimento associativo do ensino secundário era proibido. Marcávamos as reuniões para Santa Maria ou para o Técnico e depois chegávamos lá, aquilo estava fechado, e íamos para Económicas. Daquela vez, não sei se por influência do nosso pide de estimação, que era o Barcia, a reunião foi marcada para Económicas que estava fechada e foram apanhar-nos a todos em Santa Maria. A certa altura, o Barcia disse: “Deixem-se estar que não há problema, a polícia não sabe que estamos aqui”. Depois vieram outros que alertaram que a polícia estava a cercar-nos. O Barcia era um infiltrado e era uma pessoa com alguma responsabilidade. Estavam nessa reunião pessoas que foram pela primeira vez na vida a um encontro associativo. Não tinham sequer trabalho regular. Alguns foram porque iam a acompanhar alguém. Isto apanhou imensas pessoas.
Entrei em finais de setembro e, em dezembro, fomos todos presos. Ao todo, foram presos cerca de 140 estudantes do ensino secundário.
Recordo-me que tinha comprado um jornal com um suplemento em que aparecia na capa o Mao Tsé-Tung. Meti o suplemento dentro do bolso do casaco para ler depois. Quando nos apanharam, comecei a ter medo que eles encontrassem o suplemento, mas depois pensei que era uma estupidez, porque aquilo tinha saído no jornal. Passámos todos uma noite no Governo Civil de Lisboa. Cortaram o cabelo dos rapazes à escovinha. Éramos todos miúdos, alguns com treze e catorze anos. Os que tinham 18 foram levados para Caxias. Os restantes eram todos menores, eu tinha dezasseis anos. Estava convicta de que não nos podiam manter ali muito tempo presos. Não achei que o episódio fosse ter consequências graves. Estávamos quarenta raparigas numa cela, com dois catres, com um buraco no chão para fazer as necessidades, encostadas à parede, todas dobradas. Passámos a noite a cantar e a contar histórias, para nos entretermos.
Os meus pais foram as primeiras pessoas a saberem que eu estava presa. Tinha combinado ir tomar conta das minhas irmãs para eles irem jantar com um ex-preso político. Quando não apareci às sete horas, aperceberam-se de que se tinha passado qualquer coisa. O timing naquela época era muito rigoroso. Às nove da noite estava a receber os primeiros quatro pregos que entraram. Eles não sabiam quantas pessoas tinham sido presas, por isso, mandaram-me quatro pregos para quarenta pessoas. Também me deixaram uma bomba para a asma, que só me entregaram no dia seguinte. O que vale é que não precisei dela. Passado um bocado, começaram a chegar mais pais e mais comida. Os primeiros pais a aparecerem foram os meus, e a mãe do Pedro Martins Rodrigues, filho do Francisco Martins Rodrigues. Foram os primeiros a encontrar-se lá fora. Entretanto, começaram a chegar mais. Aquilo foi um festival. No dia seguinte de manhã, os nossos pais receberam-nos de braços abertos. Já os pais que chegavam nos carros do corpo diplomático receberam os filhos à chapada. Foram umas cenas um bocado bizarras. Os meus pais reagiram como se fosse uma inevitabilidade. O meu pai estava bem-disposto, satisfeito, levou-me para casa dos meus avós, estavam todos divertidos. A minha mãe não se manifestou muito, mas também não me inibiu muito, ainda que me tenha impedido de ir ao funeral do Ribeiro dos Santos.
Este episódio deu direito a três dias de suspensão do liceu. Claro que os vários liceus reagiram de forma diferente. Eu apanhei três dias de suspensão, mais a tal dita cuja multa, que nunca paguei. Arranjámos advogados e o meu advogado, o José Augusto Rocha, disse-me que a polícia não podia decidir que um encontro de jovens era ilegal, que só o tribunal o podia fazer, e que, portanto, não devíamos pagar a multa enquanto o tribunal não a aplicasse. O grupo que esteve comigo nunca chegou a pagar a multa. Depois deu-se o 16 de março, que nos deixou muito entusiasmados, e a seguir o 25 de Abril.
O desejo de integrar uma organização comunista era muito grande
No que respeita à minha consciência política, o que eu tinha presente era a separação entre o PCP e os outros. Não tinha propriamente uma clareza absoluta sobre as divergências. Nessa altura, já tinha lido algumas coisas. Li “A Mãe” do Gorki aos dez anos de idade. Fez todo o sentido e ajudou-me a integrar e a compreender os acontecimentos. Foi esclarecedor e apaziguador. Já tinha percebido que havia diferentes movimentos. E a experiência de Peniche era clara no sentido da segregação absoluta, entre os dois pavilhões, nas boleias que se davam, nas dormidas que se arranjavam… Ainda que tenham havido algumas exceções, como foi o caso do momento em que a Conceição Matos nos arranjou umas dormidas, porque percebeu as dificuldades da minha mãe com quatro filhos. Quando fui para o movimento dos estudantes do ensino secundário, sabia que, na altura, o movimento era coordenado por grupos ML (marxistas-leninistas). Não sabia muito bem qual era o perfil desses ML’s. E sabia que andava por lá a UEC (União dos Estudantes Comunistas), na pessoa do Miguel Portas – e dos seus seguidores -, que era um saltarico agitado, muito pequenino mas com muita energia. Fazia barulho por 50 pessoas. Tinha muita pujança.
À época, o meu desejo de integrar uma organização comunista era muito grande. E não sabia para que lado é que me havia de virar. A minha família não me ligava muito. Eu era uma garota, um bocado a filha do meu pai, e não me davam grande saída. Ali, eles eram de um grupo ML que não sabia muito bem como é que funcionava, mas pensei que não fazia mal, eram ML e o que eu queria era participar. Pouco antes do 25 de Abril, creio que em março, fui convidada a entrar num grupo ML, da fação Mendes.
O 25 de Abril e a libertação dos presos de Peniche
Quando se deu o 25 de Abril, não tínhamos consciência nenhuma do que se ia passar. Não sabíamos de que lado é que vinha o golpe. Os ML’s tinham muito medo que fosse um golpe do Kaúlza de Arriaga. Em vez de termos ido para a rua, ficámos metidos em casa para ver para que lado ia o golpe. Tenho muita pena de não ter ido para a rua. Acho que perdi uma oportunidade única. Mas, de qualquer maneira, à medida que as notícias foram surgindo, a sensação de alegria é indescritível. Não há dias mais felizes na minha vida. Era uma sensação de expansão, de explosão, de liberdade. Acho que as gerações mais novas não devem ter inveja do resto mas daquela sensação, daqueles momentos, daqueles dias… Foi um momento fabuloso.
Posteriormente, pediram-me para ficar em casa com as irmãs mais novas. O meu irmão já estava em Paris há um ano para fugir à tropa. A ideia era não voltar, e, de facto, não voltou. Além disso, incumbiram-me de fazer de ponte telefónica com as pessoas que estavam em Lisboa, para lhes dar informações sobre Peniche, onde estavam os meus pais. Os presos do pavilhão B estavam todos barricados porque não sabiam o que é que se estava a passar. No pavilhão do PCP estava tudo mais calmo, provavelmente porque teriam mais informação sobre o que estava a acontecer. O meu pai sugeriu aos guardas, que também estavam desorientados, ir falar com os presos. Os guardas disseram que ali não entrava ninguém, mas depois de ele argumentar que conhecia bem a prisão e tinha saído de lá não há muito tempo, acabaram por aceder. Ele foi lá dentro dizer aos presos o que é que se estava a passar, qual era o sentido do golpe de estado, como é que as coisas estavam a correr, o que é que se sabia cá fora e que estivessem tranquilos porque, em princípio, as decisões iriam no sentido de libertar os presos políticos. Os ânimos acalmaram. Entretanto, colocou-se a hipótese de o meu tio Rui e o Francisco Martins Rodrigues e mais um outro não serem soltos, porque eram alvo de um processo-crime que envolvia a morte de uma pessoa. Os presos disseram que saíam todos ou não saía nenhum. Acabou por se gerar ali alguma tensão, mas foram todos libertados.
A rua passou a ser a nossa vida
Esses três primeiros dias foram, portanto, assim um bocadinho de castigo, apesar da alegria imensa. A partir daí acho que mais ninguém me viu. A rua passou a ser a nossa vida: a ocupação de casas, a militância na UDP… Pintávamos paredes, tínhamos reuniões intermináveis, organizávamos eventos culturais e manifestações, preparávamos comícios, montávamos bancas, dávamos apoio ao grupo que fazia os cartazes, ao qual pertencia o Jorge Falcato - muito jovenzinho e ainda antes de ser baleado -, distribuíamos panfletos, vendíamos jornais… Tive imenso tempo no Voz do Povo a dobrar jornais. Lembro-me de ir vender o Voz do Povo com a uma camarada, eu já com 17 anos e ela penso que com 20, para Belas, num dois cavalos. Duas raparigas, novíssimas, com ar naife, cada uma com o seu jeito. Íamos para as tascas vender o Voz do Povo e bebíamos um bagaço, armadas em valentes e popularuchas [Risos]. Todos os sábados de manhã, lá íamos as duas. Não éramos mal recebidas, não me lembro de termos sido maltratadas. Nessa altura, as mulheres não entravam em tascas. Era um atrevimento, ainda por cima duas miúdas (é claro que nós não achávamos que éramos miúdas). Recordo-me também de ter ido ajudar os trabalhadores na apanha da azeitona numa herdade ocupada. Fui ainda a Baleizão, a uma homenagem à Catarina Eufémia. Naquela altura não parávamos e não haviam horas. Um dia apanhei um táxi para casa às quatro da manhã e o taxista disse logo: “A senhora mete-se em política. Para ir para casa a estas horas…”.
Breve nota biográfica
Em 1977 comecei a trabalhar num infantário e conclui o antigo 7º ano do liceu. Inscrevi-me no curso de enfermagem em 1980 e em janeiro de 1983 comecei a trabalhar no Hospital de Santa Cruz onde permaneci até 1987. Nessa altura concorri para o ensino tendo sido admitida na Escola de Enfermagem de Calouste Gulbenkian de Lisboa onde permaneci até à fusão das escolas publicas de enfermagem de Lisboa em 2007. Passei então a pertencer ao quadro da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Especializei-me em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria e fiz formação em Ciências de Educação (licenciatura, mestrado e doutoramento) na vertente de educação de adultos. Atualmente trabalho nos mestrados de enfermagem e integro a comissão cientifica do Doutoramento em Enfermagem.