Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.
O contexto desta pequena biografia
Nasci em Lisboa, na maternidade em Santos-o-Velho, em 1948. Ou seja, logo a seguir à II Guerra Mundial. Vivi até aos meus dezasseis anos de idade em Campo de Ourique. Tenho uma irmã e um irmão mais velhos do que eu. Sou filha de um pai português, do Porto, mas com família de Trás-os-Montes, e uma mãe alemã, vinda de Frankfurt, filha de um judeu e de uma ariana. Falo sobre estes factos porque teve muita importância no “amassar “da minha pessoa. Digo muitas vezes que nasci embrulhada em traumas.
A mãe e a Alemanha
A minha mãe, sendo filha de um judeu, foi perseguida quase desde o seu nascimento. A minha avó, que era muito mais nova do que o meu avô, tentou sempre proteger a minha mãe e a minha tia, no sentido de colocá-las em colégios católicos, de dizer que elas não professavam a religião judia, o que era verdade. Mas na intimidade a minha avó não falava dos porquês desta perseguição. A meu ver, isso foi um erro. Creio que deveria ter reforçado não o orgulho, mas a ideia de que ser filha de judeu não era nenhum crime, e que os judeus como muitos povos deste mundo deram ao mundo muita criatividade e beleza. A causa morava noutro sítio. Mas ela pensou protegê-las assim. Isso traduziu-se numa certa fragilidade da minha mãe e da minha tia. Ao mudar continuamente de identidade, não tinham onde se agarrar. O pai era o “causador” dos seus sofrimentos mas elas amavam o pai! Foi ao longo dos anos um trauma nunca resolvido nem apaziguado.
Quando começou a perseguição mais feroz aos judeus, o meu avô suicidou-se porque não via escapatória. Ele tinha uma doença no estômago, tinha de dormir da parte da tarde, também já tinha uma certa idade, e tinha perdido tudo. Era bastante rico, tinha um negócio de vinhos e peles para as cortes, com uma dimensão considerável. As irmãs dele, das quais não voltámos a ter notícias, foram mesmo criadas nas cortes. O meu avô foi sempre muito amante das artes e tinha introduzido na Alemanha os primeiros cinemas mudos. Depois, perdeu tudo. Perdeu com a crise de 29, perdeu com o confisco dos bens aos judeus, perdeu porque nunca especulou. Era uma pessoa nobre e com apetência para as artes. Durante a I Guerra Mundial, foi preso em França, em Paris, porque pensaram que era um espião dos alemães. E, na verdade, tinha ido para Paris com uma cantora de ópera, para aprender e para divertir-se. O meu avô ajudou a família da esposa, da minha avó, a sair da Alemanha. Era uma família de arianos, mas empobrecidos. Foram para vários sítios, por isso tenho família por esse mundo fora. Depois de perder tudo, quando viu que estava sem possibilidade de refazer a sua vida, habituado também a um certo conforto, sentiu-se completamente encurralado e, também para deixar a minha avó mais livre, suicidou-se.
Família Rosenheim: A avó, a tia, e o avô de Ana Rosenheim, a abraçar a sua mãe.
A perseguição aos judeus e o seu contrário
Depois da morte do meu avô e do empobrecimento geral da família, veio a perseguição física. A perseguição psicológica já existia previamente, mas, entretanto, começou, efectivamente, a perseguição física. A minha avó, com os contactos que tinha lá, mandou a minha tia para uma família aristocrática de portugueses, os Mendia, para a acolherem. A minha tia, em troca, tornou-se a fräulein dos filhos da família. A minha mãe ficou com a minha avó durante uns tempos. Quando começaram a prender os judeus da casa ao lado, a minha avó pegou na minha mãe e, com os contactos das igrejas, e negociando com os talheres de prata que ainda tinha, conseguiu que a minha mãe, com 14 ou 15 anos, fosse para a Suíça para um colégio de freiras. Ficou um ano nesse colégio, já queria ser freira, porque sentiu ali um certo aconchego, mas a Suíça deixou de ser neutra e começou a expulsar os judeus. A minha mãe dirigiu-se para Anvers (Antuérpia) acompanhada por uma freira e apanhou o último barco antes de a Guerra rebentar. Quando a Guerra estalou, estavam eles no oceano. Portanto, é um barco que ia à deriva, que não sabia onde ia atracar. Em princípio o barco deveria parar em Lisboa, porque o Salazar tinha aquela política ambígua. Agora cada campo se definia e assim aconteceu com o Portugal de Salazar. Depois de andar um pouco à deriva, finalmente atracou em Lisboa. Para tal contribuiu a intervenção de uma organização de judeus que era muito forte – o Joint. Os médicos de Salazar, judeus sefarditas, também interferiram. Salazar permitiu que o barco atracasse e “despejasse” certas pessoas que já tinham família em Portugal. Houve um “descarregamento” das pessoas e depois o barco zarpou e navegou indefinidamente. Angústia para todos, este navegar sem rumo certo e, sabe-se lá se chegaria alguma vez a porto seguro pois muitos submarinos alemães afundavam os barcos. Era quase um navio fantasma em contexto de guerra. Mas creio que conseguiu chegar aos Estados Unidos. A minha mãe por ter a irmã em Lisboa ficou por cá, indo também para o palacete dos Mendias. Mas, como era muito rebelde e inteligente, disse que não queria ficar ali, que aquilo cheirava a pó. Conseguiu poupar uns dinheiros e alugar um quarto na Costa do Castelo, e começou a dar explicações de francês. Ainda era uma adolescente. Comia quadradinhos de marmelada para enganar a fome. A partir daí, começou o seu caminho de introdução a ser uma mulher.
As pessoas da Pastelaria Suíça em Lisboa apoiaram muito os judeus. Havia, inclusive, um hotel judeu ali ao lado. Não sei bem qual foi o canal, mas sei que a minha mãe foi estudar para um colégio interno em Santarém e fez o liceu todo em dois anos. Concorreu a Medicina, na Faculdade de Ciências, e conseguiu entrar.
Ela contou-nos os factos mas escondeu sempre as suas emoções.
Aqui há um enorme trauma que ela transportou sempre e passou-nos. Por isso é que eu digo que vim embrulhada em traumas. E isso, quer queiramos quer não, deixa uma marca forte. Mesmo inconscientemente, sem a pessoa se dar conta disso.
Ela foi também uma heroína da resiliência.
A linha feminina do lado paterno era muito sombria
O meu pai não tem este percurso traumático social e histórico, pelo menos tão evidente. Tem, outro sim, trauma que é devido à generosidade do seu próprio pai. Os meus avós eram de Trás-os-Montes, com toda a certeza também judeus, porque têm Oliveira no apelido e alguns tios têm uma fisionomia muito característica dos judeus. Nunca fiz essa investigação, mas estou convencida de que haveria sangue judeu por ali (primas Judites…). Na terra do meu avô, Carção, havia uma grande comunidade judia e existia uma rua que separava os marranos (os judeus) dos cristãos. Outros tios eram do Vimioso, outros de Mirandela e há muita endogamia ali, casavam-se entre eles. É o caso dos meus avós paternos, que eram primos direitos. Isso também cria uma certa patologia, ainda que não evidente. O meu avô, por albergar um amigo, durante o surto da pneumónica que dizimou o Porto, acabou por falecer. O amigo conseguiu curar-se, já no que concerne ao meu avô, que fazia luta greco-romana e tinha episódios de tosse muito grandes, não resistiu. A sua caixa torácica acabou por rebentar e ele morreu.
O avô paterno de Ana Rosenheim com o seu filho (pai de Ana) ao ombro.
A minha avó ficou viúva tinha o meu pai dois anos. O meu avô era sócio de um irmão, tinham uma sociedade, no Porto, de fazendas e tecidos que era bastante conceituada. Eram republicanos, ainda que não muito militantes, pessoas abertas. A minha avó, à época, achou por bem que o meu pai fosse educado por uma irmã dela, e refez a vida com outra pessoa. Foi “por bem” do meu pai mas, no fundo, foi sentido por ele como um abandono. Assim esta criaturinha, o meu pai, ficou órfão de pai e mãe muito cedo, com dois anos e criado por uma panóplia de tias ignorantes e preconceituosas em nada semelhantes aos dois republicanos liberais, generosos e folgados.
A linha feminina do lado paterno era muito mais fechada e desconfiada. Lembro-me que a minha mãe me falava da tia Maria, que era uma coisa negra e rugosa para ela. A minha mãe estava habituada a muito mais liberdade. Com doze anos, pedalou com a bicicleta e em companhia da irmã, atravessaram a Floresta Negra. Portanto, aquele lado da família do meu pai fazia parte de um mundo que ela considerava um pouco tenebroso. Vestiam-se todas de preto e o sombrio da ditadura de Salazar encontrava-se projectado nestas tias como uma ameaça. Isto repercutiu-se no meu pai em forma de preconceitos e ciúmes sobretudo em relação à condição da mulher.
Esta amálgama de sentimentos de perda a que se junta o pouco amor prodigado por estas mães adoptivas pode ajudar a compreender aquele que foi o ingresso de meu pai no Partido Comunista. Era como se fosse uma família. Ele adorava o seu tio Eduardo. Era um burguês curioso que resolveu dar a volta ao mundo. O meu pai foi o seu herdeiro universal, e nós fomos descobrindo esse tio pelas fotografias que ficaram, pelos objectos que trazia das viagens – ainda tenho divindades do oriente, várias estatuetas e um massajador de deliciosa criatividade. Todo este mundo para além da casa povoou o nosso imaginário, definindo mais tarde o cruzamento entre a errância judia e a errância do desejo de ver e viver noutras terras, noutros mundos… A conquista da Liberdade
A revolução de Outubro na Rússia indicava o caminho!
Os preconceitos machistas que reinavam e ainda povoam a sociedade portuguesa
Este é o contexto familiar em que nasço e cresço. Como o meu pai herdou os bens do seu pai e do tio, tinha uma certa segurança financeira, se bem que tenha sido roubado pela própria família. Quando eu nasci, eles viviam relativamente bem. Tínhamos uma casa confortável em Campo de Ourique. Como a minha mãe passava mais frio em Portugal do que na Alemanha, a casa tinha de ter aquecimento central, o que era raríssimo e um luxo naquela altura. E a casa também tinha lareira. O aquecimento central era muito arcaico, com uma caldeira na cozinha. Estava sempre tudo muito sujo, com o carvão para alimentar a caldeira e a lenha para a lareira. O carvoeiro vinha com um saco, aquilo era quase medieval. Existiam umas gavetas muitos grandes onde se colocava o carvão. Naquela altura “tinham-se” as criadas. Elas vão limpar tudo!
O meu pai tinha acabado Medicina. Já a minha mãe, que era bonita e inteligente, acabou por desistir do curso no segundo ano, porque o meu pai tinha uns ciúmes enormes dela. Aí ele reproduziu o machismo e o trauma da educação sombria imposta pelas mulheres que o educaram. Por outro lado, na própria Faculdade, a minha mãe era ridicularizada, porque tinha de sair a meio das aulas para ir amamentar os filhos. A minha mãe ficou com a frustração de não ter acabado o curso durante toda a sua vida. Era uma das formas que ela tinha de ultrapassar os traumas que acumulou. Ser forte, autónoma e útil. Acabou por ficar outra vez, agora dependente, agora do meu pai. Só mais tarde se tornou independente, até certo ponto, porque resolveu ir trabalhar. Dava explicações de alemão a universitários. Existiam poucos professores alemães – eram os Pfs. A L. tinha sido professora da minha mãe, também refugiada e como muitos desta diáspora vieram encontrar-se aqui. Os Pfs tratavam a criada deles, que mais tarde vi no lar sentada ao lado da sua “patroa”, quase de igual para igual. Quase porque apesar de tudo a diferença cultural era imensa e ela não se sentia à vontade em certas circunstâncias. Na nossa casa, mantinha-se a distância com as criadas, não porque se queria, mas pelas aparências, pelo que se dizia e porque na realidade não se fazia nenhum esforço para reduzir a fractura das classes sociais. O senhor doutor não podia comer à mesa com as criadas. Portanto, existiam todas essas contradições. Por outro lado, também é verdade que as próprias pessoas que vinham do campo para servir não estavam preparadas para essa” igualdade”. Havia que investir em tempo e escuta...e nem sempre isso se realizava. E para a PIDE costumes semelhantes não lhes agradava nada.
Esta família alemã, apesar de ficar sempre no anonimato foi um dos pilares logísticos e não só, da luta contra a guerra colonial portuguesa.
Agora sim pode-se revelar a sua identidade: Para os Pfs começava outra frente de intervenção social: sua filha Ruth foi a esposa de Lúcio Lara... o caminho de Angola abria-se bem nítido para eles mas nem sempre sem obstáculos.
O ambiente foi sempre de contestação mas também de admiração por outros eventos que se passaram no mundo, como a Resistência Francesa, as lutas de Libertação nacionais sacudindo os vários colonialismos, os movimentos pela paz e contra o armamento nuclear, a saúde para todos sobretudo para os mais desfavorecidos, as invenções que aliviavam o sofrimento humano, e uma tímida aproximação de filosofias orientais...
O início da minha infância foi muito feliz, porque a minha mãe nessa altura não trabalhava e ocupava-se bastante de nós. Levava-nos ao Jardim Zoológico e também ao Jardim da Estrela, onde encontrava pessoas que falavam a sua língua, que eram suíças, a I.G. a EP, a cunhada da JG, e outras pessoas portuguesas, apesar de muito poucas, já que não era costume as senhoras irem para o jardim passear as crianças, inclusive, não as passeavam ou mandavam as criadas. Elas constituíam-se como um agregado à parte. Entretanto, este grupo de mulheres, que discutia vários assuntos, passou a envolver os seus maridos, para frequentarem a casa uns dos outros. Esse foi um período bastante rico para os meus pais dentro deste cinzento brumoso que era Portugal. O meu pai vindo do Porto, a minha mãe vinda de outro país, acabaram por criar ou integrarem-se em grupos de amigos, grupos de pertença, ao qual se juntaram outras pessoas como, por exemplo, Jacobson, que fora professor da minha mãe na Faculdade de Ciências, Arons, Namora, e tantos outros. Falavam sobre política, sobre as questões sociais... A casa dos Pfs teve bastante importância nestes encontros de amigos e conhecidos. A reunião à volta deles envolvia também muitos alunos da universidade, que estavam a fazer doutoramentos, artistas, pessoas de muitas origens sociais que queriam aprender alemão e atraídos por este cantinho de luz. Como eles eram muito cultos e viajados reuniam à sua volta muitas pessoas desejosas de partilhar ideias. Principalmente pessoas de esquerda. Praticamente todas as semanas havia um encontro em sua casa. Estávamos no pós-II Guerra Mundial, quando havia o reconhecimento daquele povo russo que perdeu 22 milhões de pessoas! Existia uma corrente de esquerda pró União Soviética e nessa altura não se sabia muito sobre o estalinismo.
Então no Portugal dos pequeninos ainda menos.
Posso dizer, no que me diz respeito, que respirava esta atmosfera com certo orgulho e tristeza neste ambiente de contestação, de crítica, de revolta, mas também de admiração por outros eventos que se passavam no mundo, como a memória da Resistência Francesa e dos seus partisans, com seus exemplos solidários e de um heroísmo fraterno, caloroso, inexprimível.
Graça, Ana, Liese Lotye e Eduardo. Família Rosenheim Rodrigues.
Aos domingos, dia de descanso e de maior suavidade ouvia-se mais nítido o chamamento das três beldades Liberté, Égalité, Fraternité como o ressoar dos sinos da Igreja em tempos de Páscoa.
A cultura com C grande ou pequeno era apreciada com grande respeito e carinho.
Literatura, artes plásticas, dança, música, fotografia, filmes, artesanato, costumes de saber ancestral, inventos técnicos, e um longo etc. juntavam e misturavam-se em alimento para a nossa fome de poesia, nossa inteligência amarrada, nosso amor não correspondido pela beleza, pela vida. Assim se afastava o mundo da miséria e das trevas. Cada gota era sorvida com deleite e apreço, com gratidão.
A Concorrente em Campo de Ourique era local de peregrinação. Por baixo do balcão circulavam os livros proibidos como o “Erika e seus irmãos”, de E. Vitorini, e tantos outros ratinhos benfazejos!
Isto tudo assentava praça, todos os dias lá em casa. Não só fui embrulhada em traumas, assim como os meus irmãos, mas também em possíveis resiliências... modos de luta, mesmo que fossem fragmentários, ou não fossem muito consequentes. A Pide foi lá a casa porque meu irmão e um amigo tinham publicado com a ajuda de stencil e serigrafia um jornal cujo título era Perspectiva em vermelho e em perspectiva!
No tempo do jornal A Perspectiva, Lisboa, Campo de Ourique, 1961.
Às vezes, as doutrinas e os moralismos abriam caminho na família à medida que meu pai se comprometia mais e mais com o PC. O reino das ideologias afirmava-se e até se impunha. Assim era o ar que se respirava lá por casa. Dou um exemplo, porque estas coisas no dia-a-dia são importantes: ao jantar, a família reunia-se e o meu pai descarregava todos os problemas que existiam no hospital. A tensão era muito grande. E isto passava-se quase todos os dias. Absorvíamos este ar denso, sobrecarregado. Muitas vezes, ouvíamos a rádio Moscovo. Fiquei com um sentido crítico muito forte, por vezes prejudicial, por se tornar um pouco sectário, devido a este ambiente. Por outro lado, a minha mãe era mais liberal. Como já tinha vivido na pele a perseguição, era avessa às questões doutrinárias. Em relação ao Holocausto, a minha mãe nunca contou pormenores. Mas, uma vez, como era muito curiosa, decidi abrir um livro que estava em cima da mesinha de cabeceira no quarto dos meus pais. Era um livro sobre o Holocausto com fotografias.
Aquilo impressionou-me de tal forma! E não era tanto por causa das imagens dos cadáveres, era sobretudo pelos montes de sapatos, de óculos, cabelos…A imagem dos cadáveres permanecia surreal. Parecia uma montagem. Fiquei sem dormir por muito tempo, com imensos pesadelos. E como fiz aquilo à socapa, nunca me foi explicada aquela revelação. Abri sozinha uma caixa de Pandora.
Jardim de infância - sim jardim!
A minha consciencialização, se assim se pode dizer, emerge muito de sensações, de ver, de tentar compreender. E também do contínuo contraste social cá em Portugal. Andei no jardim infantil alemão, que era uma bola de vidro, como no quadro do J. Bosch. A directora do jardim infantil, também uma judia refugiada aplicava uma prática pedagógica muito interessante, baseada, sobretudo, no jogo. Para mim, abria-se um mundo mágico, de descoberta, de experimentação... A única coisa que se proibia naquele lugar era falar português. Tínhamos de falar alemão. Mas, de resto, não existiam proibições. Haviam limites, mas não interditos, que estão ligados a poderes repressivos e à culpabilidade. Adorei o jardim infantil. Foi o meu doutoramento, porque ali é que aprendi tudo. A ser rebelde contra os autoritarismos fascistas. Era um mundo de liberdade total mas também de respeito, de partilha, de curiosidade, de ligações muito familiares. O meu pai e o pai de uma das minhas amigas vinham sempre tarde do hospital. Éramos as últimas a sair. A senhora Rosa dava-nos um caldo verde. A minha amiga chorava por o pai se atrasar e eu dizia-lhe para não chorar, porque tínhamos direito a caldo verde e a um rebuçado-peitoral. Ela era filha única e eu tinha mais dois irmãos, por isso eu, estava ali nas sete quintas. Por fim, tinha um protagonismo. Aquele jardim infantil foi mesmo muito importante para mim. Estruturou-me e deu-me, num certo sentido, uma referência para toda a vida. A possibilidade da alegria, da curiosidade, do amor, de sair deste cinzento e medíocre Portugal salazarista. Eu era muito pequena, mas os miúdos sentem e são esponjas, absorvem tudo.
Jardim infantil alemão, 1952. A irmã de Ana Rosenheim em cima e Ana Rosenheim em baixo.
As discussões em casa começaram quando o meu pai entrou no Partido Comunista
As discussões em casa começaram quando o meu pai entrou no Partido Comunista, creio que em 58, quando eu tinha 9 anos. A minha mãe não estava de acordo porque não queria, mais uma vez, reviver todos os seus traumas. Para ela, a família era o principal. O que se percebe perfeitamente. Na altura, ouvia-os discutir mas não tinha a noção do que se tratava. Planeava fugas de casa e até suicídios. Dizia que não suportava aquilo. As fugas transformaram-se, no imaginário, em idas a Monsanto para fazer cabanas antes de entrar nas aulas. E depois comecei a pensar que, se os meus pais tivessem uma criança podia cuidar do bebé. Era o escape daquele universo de discussão quase permanente por o meu pai ter entrado no PC e ter assumido imensas responsabilidades. Não era justo naquele contexto. Num contexto de guerra seria diferente. Com uma família de três filhos, com estes traumas todos, puxaram a corda. O meu pai via no PC uma família e defendia-o com unhas e dentes da forma mais dogmática possível e imaginária, apesar de na célula dele ter levantado certos problemas de origem teórica e prática.
A minha irmã também fez a escola alemã até à quarta classe. Eu já não fiz a quarta classe, porque os meus pais decidiram pôr os três filhos no Liceu Francês. A minha mãe queria sempre que andássemos num liceu estrangeiro. Quase todos os filhos dos amigos do Jardim da Estrela foram para o Liceu Francês. Os meus pais faziam um esforço para nos manter lá, mesmo depois de a minha mãe começar a trabalhar. Até porque o meu pai especialista em tuberculose, médico no Sanatório do Lumiar, não ganhava o dinheiro suficiente para pagar as propinas bem recheadas do liceu. Quem contraía a tuberculose em Portugal eram sobretudo os pobres. Ele tinha um consultório mas trabalhava quase de borla. O pouco que recebia praticamente só dava para pagar o consultório. Os doentes acabavam por agradecer o meu pai trazendo cabritos, perus, jarras da Marinha Grande em cristal… Às vezes, juntavam-se cinco cabritos lá em casa, doze perus… Parecia um jardim zoológico. Eu tinha imensa pena dos cabritos. À época, em Campo de Ourique, ainda víamos homens na rua com uma varinha guiando um bando de perus no período do Natal. Também andavam ovelhas pelo bairro. A cidade de Lisboa transformou-se muito. Campo de Ourique era um bairro relativamente novo e apresentava uma grande mistura entre ilhas de trabalhadores manuais e operários, muitos comércios pequenos de bairro, oficinas de artesãos, andares modestos da pequena burguesia e aquela mais alta que vivia nas grandes moradias ou ricos e espaçosos apartamentos. Muitos intelectuais e artistas escolheram este lugar para aí morar talvez devido a esta grande diversidade. Era muito atractivo.
O contraste social enorme entre o Liceu Francês e o exterior
O Liceu Francês foi uma boa e uma má opção ao mesmo tempo, porque existia um contraste social enorme entre o liceu e o exterior. Por exemplo, os meus pais sempre nos habituaram a irmos a pé ou de eléctrico para o liceu, ainda aquela parte das Amoreiras não se encontrava aberta. Tínhamos de ir dar a volta e levávamos a cestinha com a nossa gamela. Em alguns bairros por onde passava, era autenticamente assaltada pelos miúdos de pé descalço. Onde está o quartel da 4ª Infantaria, para encurtar caminho, enviesava pelo bairro. A diferença social era tão grande que era impossível permanecer alheio. Só quem tinha papás que os levassem e trouxessem à escola, ou quem utilizasse o autocarro do liceu, que para nós não se justificava, porque era um trajecto tão pequeno, é que não era confrontado com este choque da realidade. Esta percepção foi muito importante para mim. Tinha quase sentimentos de culpa. Pensava por que razão é que eu vivia melhor do que aquelas pessoas. Apesar de em minha casa haver uma certa austeridade e contenção, a diferença era abismal.
Eu andava muito a pé e tinha muita liberdade e acabava por passar por situações condenáveis. Situações de assédio sexual e a repressão que isso representava. Masturbações exibicionistas nos transportes públicos, mãozinhas por aqui e por acolá. Ditos assobiados e persecutórios: “Ó Flausina ouh ou ouh!”. Lembro-me de andar de calções e a polícia abordar-me e dizer que tinha de ir para casa mudar de roupa. Uma vez fui de calças para o liceu, era muito friorenta, e fui chamada ao director. Não podia usar tal prenda! E isto em território estrangeiro! Havia toda uma rede de repressão do quotidiano que, pouco a pouco, as pessoas iam interiorizando e reproduzindo. Era terrível. Era a questão social, a questão ideológica, etc., etc. Eu era muito sensível a isso tudo. Isto também faz parte da lenta consciencialização.
No liceu havia muita inovação pedagógica por parte de certos professores de esquerda. Éramos muito privilegiados nesse sentido. A primeira exposição das fotos do Giacometti e a escuta das suas gravações foi no Liceu Francês com a qual colaborei. Nunca mais me saiu da cabeça a beleza das ceifeiras! Mas a ruptura social era terrível. A criada que tínhamos em casa, a M.B., vinda das famílias mais pobres de Barrancos, do contrabando, fez da nossa casa a base para colocar todos os irmãos que emigraram para Lisboa. Pô-los todos em sítios estratégicos para saírem da miséria. Era uma mulher de armas, com uma força incrível, que esteve imensos anos em nossa casa, e não deixava de ser “a criada”, mas Governanta! Como passava mais tempo com a criada e as irmãs a ouvi-las, e também ao romance radiofónico “Sempre Maria”, sentia-me privilegiada e não percebia como é que aquelas pessoas que passavam o dia inteiro a trabalhar estavam sempre à mercê dos patrões. Estava frequentemente na cozinha a absorver o que contavam e tornou-se-me ao longo dos anos muito fácil comunicar com pessoas mais humildes. Descobri uma apetência para o trabalho no terreno. De ouvir e falar com as pessoas no terreno, e não intelectualmente. Creio que depois isso foi importante para a definição da minha linha política. Reflectiu-se num trabalho de base com as pessoas, na fábrica, no campo na aldeia, na cidade… Quase como um trabalho antropológico. E dar a palavra às pessoas. Isso é uma constante. A minha irmã queixava-se que eu conversava mais com a porteira do que com ela [Risos]. Ao ser a mais nova, e, em certas idades, quatro anos de diferença sentem-se mais, era como que um ovni no meio daquilo tudo. A força centrífuga levava-me para fora do furacão. O núcleo do furacão forjou-se entre os meus pais e os meus irmãos e eu gravitava à volta. Era, de certa forma, “os olhos da testemunha”. As minhas amigas eram aquelas que eu conheci na infância ou na escola, e depois a criada, as irmãs da criada, a porteira, o senhor “Zé da Esquina”.
Colaborei na pró-Associação dos Liceus
No Liceu Francês reuniu-se uma certa esquerda. Lá, a pró-Associação tinha uma presença muito forte. Quem estava na sua origem era o R d”E., o CM e o RC. Lembro-me de ter ido com uma amiga a uma reunião no Técnico. Eu era muito gaiata, parecia uma miúda saída da primária. Quando chegámos lá, começaram-se todos a rir de nós. Fiquei muito encavacada, mas permanecemos. E colaboramos sempre muito na pró-Associação dos Liceus. Em 1962, participamos nas manifestações todas. Nessa altura, não sei por que via, a minha irmã já ingressara no Partido Comunista (PC) e tentou recrutar-me. Ainda me lembro que me mandou para uma zona de Alcântara com cinquenta mil directivas que tinha de cumprir escrupulosamente. Parecia quase um jogo, uma gincana, mas era tão complicado que fiquei com a cabeça às voltas. Mesmo assim, fui lá. Havia uma reunião de uma célula do Partido que se estava a constituir, com a L. G. Devia ter 12 ou 13 anos e achei aquilo impossível. Já tinha todo aquele ambiente cinzento cá fora e ia meter-me noutra coisa cinzenta? Jornais distribuía o que houvesse, mas não queria nada daquilo! Nunca mais lá apareci. A minha passagem pelo PC foi meteórica. Mais tarde, quando fui à Torre do Tombo consultar o meu processo de duas páginas apercebi-me de que a PIDE estava convencida de que eu pertencia a uma célula dos liceus. Creio que foi o Nuno Álvares Pereira, que fazendo duplo jogo, deve ter indicado o meu nome. Também, mais tarde, compreendi que aquele senhor que ia lá a casa e um dia puxou do lápis e fez o meu retrato era o Dias Coelho. A Pide assassinou-o. Fiquei estarrecida! Entretanto, observei várias coisas que me pareciam verdadeiras incoerências. Havia uma clivagem grande entre a teoria e a prática nas pessoas conhecidas que defendiam o Partido Comunista em todas as linhas. Ambição de enriquecimento, de protagonismo social, métodos unicamente vindicativos... Fazia-me uma grande confusão. Achava que o comunismo “prometia“ um sistema igualitário. Era para isso que se devia trabalhar. Por isso se sacrificavam pessoas. Cada vez o afastamento do entendimento se tornava mais claro, mais real. Partia-se para a instauração do dogma, do princípio na crença e não na experiência. Também se estudava pouco, não se debatia nada, e os princípios per sé dominavam a vontade de fazer entendendo.
O dogmatismo instalava-se insultando tudo e todos, que não concordassem. Evocava-se o centralismo democrático como organização interna em nome de uma maior defesa em tempos de clandestinidade. Este modelo foi reproduzido até em democracia!
A educação francesa era muito napoleónica
O Liceu Francês era interessante porque tinha toda essa gente menos reprimida e havia uma certa liberdade. Se bem que a educação francesa seguia o modelo napoleónico rígido e pouco maleável. Era muito exigente mas muito pouco criativa, muito à base de memória e pouco lúdica. Mais tarde, vim a reencontrar os mesmos métodos nas universidades, muitas vezes em contradição até com os próprios conteúdos, por exemplo, em Psicologia, Havia um mandarinato (sistema piramidal do saber) dava-se muita importância ao discurso eloquente, à dissertação. Não existia confiança na capacidade de o estudante criar os seus próprios instrumentos de trabalho e de orientá-lo com a ajuda de tutorias. Daí é que parte, não só mas também, o fraguar de Maio 68. Os anglo-saxónicos eram muito mais experimentais. Em Maio de 68 foram contestados os conteúdos dentro da própria universidade e a maneira como estavam a ser dados, não foi só a questão da Guerra do Vietname, a questão política, da emigração… Havia também uma contestação dos conteúdos, ajudada por William Reich, Marcuse, Fromm. A Antropologia trazia novas atitudes... A separação entre o observador e o observado não tinha que existir, discutia-se. Esses movimentos dentro da própria universidade foram importantes trouxeram-lhe lufadas de ar fresco.
Os Cineclubes
Devo imenso ao Cineclube Universitário a minha consciencialização política por ter visto filmes que nunca teria visto normalmente noutros cinemas em Portugal. Apesar do meu aspecto físico não se aparentar nem por sombra a uma estudante universitária, não desistia de frequentar o Cineclube; fingia que era namorada de um amigo mais velho. Ele lá me punha a mão em cima do ombro e conseguia passar muitas vezes com a ajuda da vista gorda do fiscal que barrava a porta. Os Cineclubes em Portugal tiveram uma grande importância na consciencialização das pessoas, porque apresentavam filmes que eram proibidos ou que eram censurados. Eram filmes que, naquela altura, eram muito marcantes para nós. Representavam um escape mas, ao mesmo tempo, tornavam-se numa formação importante. Pick-Pocket de Bresson, La Grande Illusion de Renoir, Les 400 coups de Truffaut…
A prisão do meu pai foi uma catástrofe para a família
Em 1963, o meu pai foi preso, bem como quase todo o sector intelectual do PC. Foi denunciado pelo Verdeal. Eu andava no quinto ano do liceu. No julgamento, em que estava também o Areosa Feio, o meu pai foi sentenciado a dois anos de prisão. Parte da pena foi cumprida no Aljube e outra parte no Hospital Prisão de Caxias. Tenho cartas de grandes figuras do Institut Pasteur e de outras instituições, para o Américo Tomás e para o Salazar a dizer que era bom que libertassem o meu pai porque ele era uma mais-valia para a questão da saúde em Portugal no campo da tuberculose e era uma pessoa valiosa. Isso também contou para os anos de prisão, porque ele teve muito menos do que poderia ter tido. Acresce que o meu pai trabalhava em investigação com o seu amigo e mestre Fernando Fonseca no IPO, que era médico do Tomás!
Ana Rosenheim, 1963.
A prisão do meu pai foi uma catástrofe, porque ele era o eixo da família. O que foi mais terrível para mim na prisão do meu pai foi a tortura. A minha mãe ia à PIDE visitá-lo e levava-me. A minha irmã chamou-os nazis e nunca mais lá pôde entrar. Vi a degradação do meu pai e apercebi-me do que se estava a passar. Vi o inspector Sachetti a cumprimentar a minha mãe como se fosse uma marquesa, sabendo ela que ele estava presente nas torturas! Esse “imprésentable” ser fazia parte das torturas. Tentava que ela dissuadisse o meu pai daquela atitude de não colaboração com a Pide. Aquilo meteu-me um nojo incrível. Aquela personagem é repugnante. Íamos lá quase todos os dias e assistíamos à degradação física do meu pai, aos seus delírios… Dias e dias de tortura do sono. Uma cólica renal nos curros do Aljube! E outra vez pr’á Antonio Maria Cardoso. Ele já via baratas e animais por todo o lado… e Eu vi ISSO TUDO!
Ana Rosenheim, Magoito, 1963, durante a prisão do seu pai.
O meu pai acabou por confirmar. E é diabólico, porque é o que acontece com a violação: é-se violado e depois é-se culpado da violação. O Verdeal (militante clandestino pertencente ao Comité Central do PC) fez um duplo jogo, estava a trabalhar para a PIDE quando tinha o sector intelectual todo do PC nas mãos. Ele tinha as actas todas das reuniões. Portanto, a PIDE já tinha toda a informação. Sabiam tudo. O meu pai, para salvaguardar algumas coisas que, de facto, eles não sabiam, confirmou a informação que já tinham. Quando o meu pai saiu, quis falar e compreender o que se passava com o PC mas não lhe deram resposta. Assim repetia ele: “nem a um cão se recusa a resposta”!
O meu pai insistiu durante anos e nunca obteve resposta. Com o pretexto de que ele tinha “falado”, que não é verdade, não falou, apenas confirmou o que os pides já estavam fartos de saber, nunca quiseram falar com ele. Isto criou uma divisão na família. Os “amigos” acusaram-no de traição. Este homem, que deu uma importante parte da sua vida, com imensas responsabilidades a todos os níveis, nunca teve direito a uma resposta sobre o que se passou e foi ostracizado. Este acontecimento revela uma crueldade e uma cobardia absoluta por parte da hierarquia do PC. Mais tarde, quando o meu pai já estava à beira da morte e já nem conseguia falar, apareceu o Álvaro Cunhal em minha casa. Como sabiam que ele sempre foi fiel ao PC, que era a sua família, que era uma pessoa com valores, um verdadeiro antifascista, veio o Cunhal como que a dar-lhe a extrema-unção. Estas atitudes têm de ser banidas, têm de ser denunciadas, têm de ser explicadas e nunca esquecidas.
Tolerância ZERO.
Para tapar a responsabilidade máxima da existência de um traidor no Comité Central do PC, silenciam-se as vítimas. Toda uma vida, mesmo já instaurada a democracia!
Aqui fica a minha sentida homenagem aos presos políticos que foram Maltratados, Vexados, Insultados, Torturados não só pela PIDE como pelas Hierarquias Estalinistas de certas “esquerdas” ou de direitas ditatoriais.
A ruptura da família foi a pedra no charco
Entretanto, enquanto o meu pai ainda estava preso, o meu irmão foi para a Suíça para não ser obrigado a ir para a Guerra Colonial. Depois disso, foi para a Alemanha e acabou por conseguir voltar para Portugal e fazer Belas Artes devido à sua pouca idade. A minha irmã resolveu entrar numa semi-clandestinidade, passados uns tempos, já depois de o meu pai ser libertado, também é presa.
Quando o meu pai foi libertado, quis ir ver o mar. Dirigimo-nos ao Cabo Ruivo. O Tejo no seu esbanjamento em mar da Palha encheu-nos de novas esperanças.
Em Portugal, ficou sem hipóteses de trabalhar, sem futuro à vista. Privado de direitos políticos e sociais. Como fazia investigação de ponta, ao nível da tuberculose, dos bacilos e dos antibióticos, colaborava com o Instituto Pasteur de Paris. Decidiu então dirigir-se para Paris. Ficou lá uns meses e depois transitou para a Argélia, para um posto no quadro da OMS [Organização Mundial de Saúde], onde continuou a investigação e a práctica clínica. A minha mãe ficou em Portugal a assegurar a casa, a estrutura familiar fantasma. Vivi sozinha com ela durante um ano, até acabar o liceu.
A minha mãe, passados uns tempos, foi ter com ele, creio que em 67. Só que não suportou estar no recém independente Estado Argelino porque era loura e era continuamente perseguida, não se sentia à vontade. Disse ao meu pai que ia para a Alemanha e que se ele quisesse estar com ela teria de acompanhá-la. O meu pai acedeu. Teve de aprender tudo do zero. Foi muito duro para ele e para minha mãe, mas ao mesmo tempo, gratificante. Continuou a investigação e descobriu um bacilo: o bacilo africanus.
Minha mãe reciclou-se e foi tradutora oficial para o ministério de agricultura alemão.
Para mim, esta ruptura da família, este estalar, foi a pedra no charco.
Também há aqui a reprodução de uma certa orfandade.
Chegada a França, há um grande deslumbramento mas também uma grande desilusão
Quando acabei o liceu, em Setembro de 1965, acabei por sair de Portugal. Vários elementos das Pró-Associações foram presos nessa altura e o movimento estava muito fragmentado. Parecia um deserto. As pessoas ou fugiam à guerra – desertores, refractários, ou estavam presas… A minha madrinha, que era francesa, estava em França, podia ajudar-me a tratar da burocracia para o ingresso na universidade. E tinha uma amiga, a R., que também já lá estava há um ano. Fui à aventura, não muito calculada, mas com algum cálculo. Tinha estes dois pontos de apoio. Viajei para Paris com a LM, que também foi para a universidade em Paris. Em Hendaia ficámos na conversa e perdemos o comboio deixando lá dentro as malas. Mas enfim, tudo se arranjou [Risos]. Fomos directas ao Odéon, onde a minha amiga R. habitava no hotel Delavigne. Mas havia várias saídas do metro e nós nem tínhamos plano para onde ir, nada. Parecíamos duas camponesas com as malas cheias de livros, sem rodas sem nada. Deram-nos indicações erradas, andámos às voltas, até que encontrámos o bendito hotel. Partilhámos um quarto e ficámos lá uns tempos até encontrarmos uma casa. Vivemos juntas durante um período e depois cada uma foi viver para seu lado.
O contacto com Paris foi sempre especial, por ser uma cidade muito sofisticada, mas o contacto com o que seria a democracia e a liberdade que idealizávamos foi um duche de água fria. Completamente. Primeiro, os imigrantes eram mal tratados, existia um racismo latente muito forte e um grande chauvinismo. Nós sentíamos isso. Não na universidade, mas cá fora. Foi um pouco o desmoronar daquele ideal que tínhamos de democracia, liberdade e igualdade. Por outro lado, apareciam acontecimentos fantásticos e aliciantes. São casos pequenos mas significativos. Fui ao cinema e aquilo que mais me tocou foi o facto de as pessoas comentarem em voz alta o filme e rirem. Rirem, vejam bem! Lá em Portugal era impensável, impossível. Senti que podíamos falar e dizer o que pensávamos.
Os restaurantes universitários também eram uma novidade, porque proporcionavam pontos de encontro de pessoas de várias universidades e nacionalidades, com experiências e conhecimentos muito diversos Falava-se de tudo, inclusive da Revolução Cultural chinesa. A Cinemateca era outra fascinação, com aquela profusão de filmes, aos quais nunca tínhamos acesso em Portugal. Às vezes, tirava um bilhete que ia das três da tarde até à meia-noite. Arquivos e carrossel de cinema vivo.
Basicamente, chegada a França, há, de facto, um grande deslumbramento mas também uma grande desilusão. Uma grande solidão, também. Creio que tive uma espécie de depressão sem me aperceber. Comecei a desconstruir a linguagem.
Durante o primeiro ano em Paris, a minha mãe dava-me pouco dinheiro. Contudo, tinha as meias libras que a minha madrinha me oferecia todos os anos no meu aniversário. Isso e mais uns trabalhitos para estudantes permitia-me sobreviver com o essencial. Tinha uma saia, umas calças e duas camisolas. Em Paris, percorri praticamente todos os bairros, porque geralmente arranjava alojamento através de estudantes. Eram quartos de criadas. Naquela altura, conhecia melhor Paris do que Lisboa. Aquela história do judeu errante está sempre presente na minha vida.
Como a independência da Argélia em 1962 era recente, existiam ainda alguns daqueles grupos da OAS [organização clandestina de extrema-direita que se opunha à independência da Argélia] que colocavam bombas em Paris. À época, os porteiros estavam, muitas vezes, ligados a essa rede de bombistas, porque, em certos bairros de Paris, os porteiros eram guardas, os cães de guarda de uma certa burguesia. Vivi num prédio que era muito burguês em frente ao Sena e ao lado da Câmara dos Deputados. Consegui-o através do organismo de estudantes que partilhava informações sobre quartos para alugar. A proprietária era mulher de um médico que devia ser muito famoso. Nesse prédio vivia o fotógrafo Cartier-Bresson. O porteiro tinha ligações à OAS e era um cão de guarda raivoso. Para aceder ao quarto, o tal das criadas, não havia elevador. Era um prédio com um pé direito enorme, pelo que subir sete andares equivalia a subir catorze. Na única vez em que voltei a Portugal durante a ditadura, quando a minha mãe ainda cá estava, regressei com uma amiga T. que é sobrinha do AO. Como ela não tinha onde ficar, disse-lhe para ficar comigo. O porteiro chateou-me tanto a cabeça, dizendo que eu não tinha direito a levar pessoas para lá. Depois, quando amigos meus vinham para me convidarem para vernissages de exposições outro escândalo ele armava. Até que, um dia, mandei-o calar e disse-lhe para chamar de imediato a proprietária porque não estava disposta a continuar a aturá-lo. Ele ameaçou chamar a polícia e eu respondi que estivesse à vontade. A proprietária veio e lá pôs o porteiro na ordem. Mas era uma tortura todos os dias. São os efeitos das guerras que fazem com que depois, no nosso quotidiano, tropecemos com estes fenómenos.
Cruzando a rua, a piscina Deligny resistia a esta nuvem enfadonha, mal cheirosa, mostrando-me um outro Paris mais aprazível e não menos acessível, a uma jovem estudante semi-exilada.
Para nós, filhos de uma certa burguesia, passar por uma fábrica é descobrir como a maioria das pessoas vivem no mundo industrial.
Nova aprendizagem.
O exílio teve episódios muito gratificantes. Aprendemos muito. Mas foi duro também, porque não nos podíamos referir a uma certa identidade. Se bem que as identidades são, muitas vezes, subjectivas. E, muitas vezes, degeneram em nacionalismos retrógrados. O que é terrível nos exílios é o corte total com a cultura de antes, com os amigos, com a carreira que se possa estar a fazer, com as redes de apoio. É preciso começar do zero. E, muitas vezes, passar por situações absolutamente anómalas. Uma pessoa que, por exemplo, fez um curso superior, só encontrava trabalho de pedreiro. Durante cinco meses tudo bem, mas depois também já basta, na medida em que a pessoa foi formada para outras lides.
E um genuíno pedreiro tem de deixar a sua terra e trocar o seu ofício por um trabalho mecânico e alienante de OS, numa cadeia de automóveis.
A experiência de passar por fábricas foi muito interessante. Para nós, burgueses, passar por uma fábrica é descobrir como a maioria das pessoas vivem no mundo industrial. E toda a hierarquia, toda a alienação que isso pressupõe. Mas se me perguntarem se quero ficar a trabalhar toda a vida numa fábrica numa cadeia de montagem, não quero. Não sou proletária, nunca fui. Não posso reivindicar qualquer tipo de dirigismo proletário. Não posso afirmar-me como a vanguarda do proletariado. Quem tem de se emancipar são os próprios. Claro que uma pessoa pode, como fizeram muitos revolucionários, a Rosa Luxemburgo, por exemplo, desde a sua posição de intelectual, comunicar e teorizar um determinado movimento. E é importante que o faça. Agora, nunca será a vanguarda do proletariado, e dos históricos movimentos revolucionários deveríamos aprender as suas vitórias e os seus fracassos.
A luta pela PAZ é imprescindível.
A luta contra as alterações climáticas nunca foi tão abrangente e URGENTE.
O meu trabalho na política, Política no sentido de cidadã interveniente, vai orientar-se por não ter o protagonismo, estar sempre na sombra, ouvir, empatizar e talvez indicar o que é que se poderia fazer e que as pessoas decidam o que têm de realizar. Praticamente, foi sempre o que me caracterizou. Tenho uma certa aversão a grandes propagandas, se bem que também tenha passado por uma fase de sectarismo e dogmatismo.
Maio de 68 revela-me que a política é mais do que um partido
Nas universidades existiam muitos grupos políticos a contestar a Guerra do Vietname, O Racismo, entre outras coisas. É evidente que, mais dia, menos dia, lá fui parar. Não aos grupos políticos, mas a esta contestação. Como estava no ramo da psicologia, fazia uns estágios ao fim-de-semana em Psicoterapia Institucional, que era uma nova corrente na Psiquiatria. Tinha começado em Itália, França, e defendia que era necessário tirar os doentes mentais das prisões em que estavam confinados. Foi algo experimental mas que deu resultados, até ao nível da integração de doentes mentais em famílias. Não se consideravam os doentes mentais como presos, que era a ideologia dominante, e tinha-se confiança neles para criarem a sua auto-gestão, acompanhados por uma equipa de técnicos e médicos. Existia uma experiência muito célebre, pelo menos neste domínio, que era a de “La Borde”, um castelo na região da Loire, fundada por Jean Oury, onde se praticava este tipo de terapia. Nos fins-de-semana eu ia lá com um amigo. Dentro desta corrente, havia um psiquiatra muito conhecido em França, o Jean-Claude Pollack, que, com os cineastas, resolveu criar um grupo de cinema anti-imperialista. Para ele, era ligar a terapia à política e, para os cineastas, vinha na linha do Chris Marker e afins, que era colaborar com a sua arte para a divulgação do anti-imperialismo, com a Guerra do Vietname no seu auge. Este meu amigo, que estava mais em contacto com eles, desafiou-me para integrar o grupo. Eu, muito novinha, que não sabia alinhavar um discurso político, acabada de ter uma depressão, achei aquilo interessante e disse: “Vamos a isso!”. O grupo tinha cineastas, gente que foi assistente do Bresson, do Truffaut e de outros, e gente da psiquiatria.
Em 1967, fomos a Berlim porque havia lá uma grande contestação anti-imperialista em Berlim Ocidental com destaque para a direcção do Rudi Dutschke, que mais tarde foi baleado, acabando por morrer. Filmámos os acontecimentos todos, as manifestações contra a imprensa do Springer, que era um monopolista da imprensa imperialista e pró-americano. As manifestações em Berlim eram bastante duras, ia tudo de capacete branco e munidos de paus. Os estudantes e professores moravam em comunas, naqueles velhos imóveis de Berlim ainda cheios de buracos provocados pelos tiros da II Guerra Mundial. Era um ambiente de uma enorme efervescência. Estive sempre na sombra, não tinha nem competências cinematográficas, nem competências políticas. Ia aprendendo.
Voltámos para Paris e montámos o filme. Foi a primeira vez que fizemos produção própria, porque antes só distribuíamos filmes já existentes. Os estudantes da Sorbonne pediram-nos para projectá-lo. Já se tinha dado o 22 de Março com o Cohn-Bendit e o movimento em Nanterre, borbulhava numa grande efervescência contra o conservadorismo da sociedade, o tratamento dos imigrantes, entre outros. Tínhamos combinado um encontro na praça da Sorbonne para entregar o filme e, de repente, vimos chegar a polícia de choque. Eles foram pedir a chave da sala de projecção e o director recusou, então deram um pontapé na porta e os eventos precipitaram-se com a intervenção da polícia. Aí começou o Maio de 68.
Ana Rosenheim no Jardim do Luxemburgo. Pausa em Maio de 68, Paris.
Há outra versão, no sentido de que o grupo do 22 de Março queria fazer um meeting lá dentro da Sorbonne e o director não permitiu. Só sei que o que eu vi foi isto. Estava num café, que era o Select, à espera dos estudantes para ir à projecção e chegou a polícia. Passadas umas horas, vi as barricadas e as pedras a serem arrancadas das calçadas. Começou a aventura de Maio de 68. Participei directamente nas manifestações, nas barricadas, e, como estávamos organizados, tínhamos o grupo de cinema, filmámos tudo.
Aí é que comecei a perceber que a política é mais do que um partido. Que a política é uma atitude e uma acção perante a vida. Maio de 68 revela-me isso. Para além da Guerra do Vietname, para além dos imperialismos, das guerras de libertação nacional, como a Guerra Colonial portuguesa, etc., o que eu tinha visto é que o Partido Comunista reduzia a política a um instrumento. Nas democracias europeias, a um instrumento para angariar votos. Só. Esquecendo-se do principal que é divulgar e cuidar da atitude perante a vida. Maio de 68, para mim, não era uma coisa de estudantes, era algo muito para além de qualquer movimento estudantil ou mesmo operário. É aí que eu faço a ligação com o maoismo e a Revolução Cultural chinesa, porque punha em causa a divisão entre trabalho manual e intelectual, punha em causa a hierarquia como instrumento de poder. É toda uma filosofia que está por atrás que foi sistematicamente enrijecida pelos partidos e que serviu de escudo de defesa em relação à sua evolução no sentido de transformar o homem ou melhor de reencontrá-lo como ser consciente e compassivo.
O trabalho nas fábricas
Tinha muito contacto com pessoas alentejanas, que são “filósofas”, naturalmente. E pensava que aquela gente tinha uma posição sobre a vida que era extremamente observadora, contemplativa, e que vai ao fundo das questões, muitas vezes. É mais do que sabedoria popular. É o que vamos encontrar, por exemplo, nessa sabedoria de certas tribos de índios da América do Norte e mesmo da América Central e do Sul.
A inteligência da observação, do fazer parte de um todo, o estudo por experimentação desse universo é valiosíssimo. E isso é sempre desprezado por uma espécie de hierarquia de bem pensantes que é um exercício de poder sobre os povos.
Comecei a querer conhecer a realidade nas fábricas. Na altura, existiam pessoas da Cause du Peuple a trabalhar nas fábricas, justamente no trabalho de base, e depois ligados através de uma organização a todo o aparelho de propaganda, etc. Mais válido, ou menos válido, agora não faço nenhuma apreciação ou julgamento.
À época, conheci um rapaz, o VM, que fazia parte do comité dos trabalhadores numa fábrica, e que me falou no jornal O Comunista. Perguntou-me se o conhecia. Respondi que sim. E disse-lhe que tinha sido o primeiro jornal a que achei piada, porque na primeira página vinha escarrapachado “Como se faz um cocktail Molotov”. Achei uma certa piada porque respirava ar fresco, não era o mesmo vocabulário de sempre. O VM apresentou-me o Hélder Costa, que, nessa altura, era o mentor d’O Comunista. Era uma organização que funcionava por núcleos independentes. Entro num núcleo d’O Comunista e depois faço aquela evolução d’O Comunista para O Grito do Povo e d’O Grito do Povo para a Organização Comunista Marxista-Leninista, à qual pertenci até a organização dissolver-se e integrar o PCP(R). Nunca aderi ao PCP(R), tendo sido considerada uma inimiga do Partido! (Hoje com muita Honra!). O mesmo aconteceu com o “pessoal” da Covilhã, da Barragem da Valeira, o núcleo de Benfica e outros.
Em França percorri várias fábricas. A maior foi a Gévelot, uma fábrica de armas, de caça e de guerra. Existiam muitos portugueses a trabalhar lá, muitos migrantes. Era uma fábrica terrivelmente dura, o metal era pesado, tínhamos de levantar caixas a um ritmo alucinante. As portuguesas eram sobretudo oriundas da Guarda, rebentavam com todas as marcas de produção, porque existia um regime de comissão. As jugoslavas também trabalhavam imenso. Era um universo interessante de conhecer. Houve uma altura em que me queixei porque as caixas eram demasiado pesadas para a minha estrutura física. Puseram-me no atelier dos detonadores. Aí arranjei uma doença de pele porque era alérgica às substâncias da pólvora. Fui ao responsável informar que estava com aquele problema e que tinha de ir ao médico. Ele disse-me que não era nada, mas, como insisti, lá me encaminhou para o médico da fábrica, que também me disse que não era nada. Tinha os braços praticamente em sangue, por isso, resolvi ir ao hospital. O médico alertou que tinha de fazer uns testes e que estava com uma reacção alérgica. Levei os resultados ao responsável da fábrica e eles deduziram logo que eu tinha de estar a ser influenciada por alguém, um desses revolucionários que repartiam panfletos à porta da fábrica. Não concebiam que a pessoa conhecesse minimamente os seus direitos para se poder defender. Fui ao médico de trabalho e ele viu-se obrigado a passar-me a baixa.
Mais tarde, esta fábrica ardeu completamente. Foi fogo posto. Cobraram do seguro uns muitos milhões para reconstruir uma fábrica nova longe de Paris, cobraram outros tantos por aqueles valiosíssimos terrenos, afastaram várias pessoas, devido ao clima de contestação, deslocando-se para outro sítio e levaram apenas aqueles em quem tinham plena confiança. Esta foi a fábrica que me trouxe mais experiência de terreno. Dentro das fábricas estava organizada com O Comunista e também como o Cause du Peuple. Nunca entrei para o sindicato. Falava, com algum cuidado, com os trabalhadores e trabalhadoras sobre a Guerra Colonial, sobre as condições de trabalho, sobre a realidade portuguesa e internacional. Com as jugoslavas falava sobre o Tito. Ao mesmo tempo, fazia propaganda e recolhia informações para depois fazer folhetos e entregar. Fiz também um pequeno jornal para as mulheres imigrantes. Eu pertencia à Comissão do Interior da OCMLP (fusão entre O Comunista e núcleos do Porto) no estrangeiro, que era aquela que estava em ligação com as pessoas em Portugal, por defesa e clandestinidade. Era esta Comissão que dirigia o exterior para o interior e que estava em ligação com o interior lá fora. Era uma espécie de crivo, se assim se pode dizer, mas, ao mesmo tempo, de discussão política para unir o interior com o exterior. Mas é verdade que tinham de existir mais barreiras porque o interior não perdoava.
O regresso a Portugal – a clandestinidade na Covilhã
Entretanto, resolvi vir para Portugal. Achei que, se queria acabar com a ditadura no meu país, tinha de voltar. E, como já estava habituada a recolher informação, a analisá-la, a perspectivá-la, e tinha essa facilidade de falar com as pessoas e de criar empatia com elas, pensei que devia regressar clandestina. É questionável isto. E hoje coloco essa questão, mas também havia um vazio nesse sentido. O PC tinha a sua esfera de influência, o Alentejo e a margem sul, e no Norte não existia nada. Sobretudo nas zonas mais rurais. A organização trouxe-me à fronteira, passei a salto a partir de Vigo. Em Portugal estava um camarada, de carro, à minha espera com umas armas, para o caso de haver qualquer problema. Fui circulando de casa em casa até parar na Covilhã, onde havia um camarada da organização que já lá estava estabelecido. Supostamente, iria ser a mulher dele, que tinha vindo de uma aldeia qualquer. Fui conhecendo algumas pessoas nessa mesma situação, esses casais pré-fabricados mas que depois resultavam como casais, ou forçados ou não forçados. Há toda uma pressão ideológica: em nome de… em nome de… e, às vezes, acabam por se violar coisas básicas. Mas isso foi transversal a todos os partidos. O Partido Comunista está cheio disso. Ainda por cima com uma base de machismo. No PC era a companheira. Não era a criada, mas era quase. E na extrema-esquerda era a mesma coisa. Esse pano de fundo ainda existe. E as mulheres têm de lutar contra isso, porque ninguém vai dar nada a ninguém. Isso chocou-me muito, muito. Era uma das coisas que tinha de ser falada, porque pode originar grandes problemas numa organização, traições, etc. Com as emoções e a dignidade não se brinca.
O rapaz com quem era supostamente casada acabou por se ir embora e fiquei a viver com a Adelaide (não sei o verdadeiro nome dela). Ela fazia-se passar por minha prima. Tínhamos uma vida o mais simples possível e não podíamos ter relações abertas com ninguém. Só uma pessoa na Covilhã é que desconfiou de mim. A dona da papelaria apercebeu-se que eu tinha uma forma de falar diferente. Às vezes, uma pessoa descaía-se.
Estávamos quase todos clandestinos na Covilhã. Eu, o PB, a Adelaide (não sei o nome verdadeiro), mais o NM. Era uma situação de grande isolamento, naquela altura não havia auto-estrada. Parecia que estávamos no fim do mundo. A Covilhã era uma espécie de pinha de fábricas de lanifícios cheias de operárias (os) com ligações à terra, ao campesinato. Tinha um sindicato forte. Vivíamos ali também como uma pinha, isolados de tudo. Muito raramente, tínhamos contacto com “malta” do Porto ou de outros locais.
Ana Rosenheim a trabalhar numa fábrica de lanifícios na Covilhã, 1973.
Na Covilhã concentravam-se 200 fábricas, todas subindo pelas colinas da Serra, e de manhã subia uma massa rural que vinha trabalhar para as fábricas. Podia-se fazer bem a ligação operária-camponesa, que era a tal linha maoista. O facto de estar isolado, no meio do nada, de uma serra quase “virgem” dava ao nosso estabelecimento um ar romântico, aventureiro. Aquele lado exótico com que todos sonhamos um pouco. E ao mesmo tempo, urdia-se uma prefiguração de um ovo materno. Eu era uma pessoa relativamente sofisticada, tímida, peneirenta no sentido de uma certa falta de humildade. Quando vim para a Covilhã, tive de me transformar para passar despercebida. Engordei 10 quilos e emagreci outros tantos em arrogância. Comecei por trabalhar na Fábrica Velha, cá em baixo num vale. Estava na parte da alimentação dos rolos que vinham da cardação para sua divisão e posterior fiação. Depois passei para o Fiadeiro. Era uma fábrica relativamente pequena. Havia uma grande fábrica, a Nova Penteação, onde trabalhava a minha companheira e muitas centenas de operárias, com tecnologias muito modernas. A Adelaide tinha um dom oratório fantástico e eu tinha as ideias.
Contactei com um Portugal que nunca tinha conhecido
Contactei com um Portugal que nunca tinha conhecido. Muito mais real, muito mais autêntico. Foi uma vivência fantástica. Mas contactei também com um Portugal do mais atrasado que há. Havia uma camarada minha da primeira fábrica onde trabalhei que tinha um namoro e engravidou. Ela escondeu a gravidez até ao último dia. Quando deu à luz no Hospital da Covilhã, as freiras disseram-lhe que o seu filho ia sair com pés de cabra. Por castigo do pecado! Parecem aquelas gravuras do Goya, os pesadelos. Uma recém-parida, que sofreu imenso, que esteve nove meses a esconder-se, a trabalhar com dores, e que teve de fazer uma cesariana e ainda leva com as “profecias” de uma velha bolorenta, seca que nem um pau, fanática que em nome de Deus e de Jesus Cristo lhe deseja o pior por ter tido a ousadia do pecado da luxúria! Uma coisa absolutamente do outro mundo. No tempo das trovoadas começavam as rezas. Parecia mesmo que Goya testemunhava estas invectivas e preces. Assim o tinha retratado nos seus terríveis quadros só que um século antes. Aquelas mulheres começavam todas a rezar e a esconjurar com truques de bruxaria! O certo é que essa autenticidade tocou-me muito. Era a primeira vez, apesar da ligação com as criadas, que estava em contacto com uma autenticidade da terra, das pessoas. Percebi que as coisas não são o que são, o que parecem ser. São muito mais para além das aparências. Podemos modificar a nossa relação com a realidade se deixarmos os nossos preconceitos de lado. Se virmos as coisas com outros olhos. Quando um rapaz que esteve na guerra colonial me disse, vaidoso, que tinha uma colecção de orelhas, deixei-o falar, em vez de contrariá-lo. Depois comecei a lembrar-lhe que ele era tão explorado como eles, os nativos.
Covilhã - Sessão de apoio aos movimentos de libertação do colonialismo português organizada pela OCMLP, 1974.
O rapaz simpatizou comigo e quando houve, após o 25 de Abril, a ocupação da fábrica, e o patrão não pagava, ele pôs-se à frente do seu carro para o não deixar passar. Houve uma alteração nele, uma transformação. O patrão foi sequestrado e passou uma noite a ser julgado pelas operárias, o tal direito da pernada. Foi um julgamento popular pacífico, cheio de dor, porque tudo veio cá para fora. E este rapaz foi o que instigou esta acção popular.
Manifestação na Covilhã, após o 25 de Abril, convocada pela célula do OCMLP e pelo sindicato dos Lanifícios.
Não devemos reagir impetuosamente, temos de ser muito mais cautelosos na maneira como lidamos com a realidade, porque a realidade é uma aparência. Por trás das aparências há outras coisas. E normalmente, no circuito político, isso não é tratado. Eu talvez acuse o toque de uma necessidade urgente de tratamento pela minha sensibilidade e pelo facto de ter feito Psicologia. A Psicologia pode ser um estudo que, entroncado com outras disciplinas, vá mais a fundo no comportamento e na alma humana. Hoje, é isso que me interessa. Mais que tudo. Não é só a Psicologia, é uma transversalidade da Psicologia, Artes, Política, etc., etc… Se formos à História, a nossa história é a história da sobrevivência e do recurso à espada para atingir tal fim. Não quer dizer que não tenham existido sociedades igualitárias, que foram sempre silenciadas pela nossa cultura hoje hereditária de tempos antigos, machista, guerreira de punhal na mão. Mágica que faz desaparecer evidências arqueológicas de tempos pacíficos. Não interessa falar, porque o poder está na mão do macho, da espada, do caçador. Mas, realmente, este é o padrão. E nós, como seres humanos, sofremos por causa disso. O sofrimento vem daí. Vem de que estamos sempre na dupla defensiva-ofensiva. Sempre insatisfeitos, a tentar satisfazer-nos à procura não sei do quê, da felicidade, quando ela está ali mas não a vemos. E tratamos tudo à espadeirada. Enquanto este problema, que, na verdade, não é um problema, porque, se fosse, já estava resolvido, enquanto permanecer esta cegueira quanto à profunda causa dos males da sociedade de que fazemos parte e do mundo, vamos repetir os mesmos padrões. E, ao repetir os mesmos padrões, tanto faz ser de direita ou de esquerda. Pode ser que seja melhor um de esquerda, como agora a geringonça, mas os padrões repetem-se. No imediato, temos umas pequenas vantagens, mas, no futuro, será a mesma coisa. O padrão vai ser exactamente a destruição da natureza, ao considerarmo-nos superiores à natureza, etc., etc. Começa em nós. Não me sinto culpada por nada, mas sinto-me responsável, que é muito diferente. A culpabilidade é saída do judaico-cristão. A responsabilidade é totalmente diferente. Uma pessoa é livre de escolher aquilo que quer, em consciência. Adopto esta atitude através da observação na política daquilo que se repete. E, ao mesmo tempo, encontro na questão psicológica e na terapia justamente estes problemas. Há um encontro. É fundamental hoje em dia tratar disso, se tivermos tempo. Porque a destruição é muito grande. E cada vez vai ser maior.
Unhais da Serra - ocupação de propriedade pelos camponeses e solidariedade dos soldados do MFA, 1974.
Estive na clandestinidade até ao final de 1976
Antes do 25 de Abril, já tinham havido vários problemas na organização, nomeadamente, por causa de um camarada que foi preso e falou.
Quando se dá o 25 de Abril, eu tinha ido ao Porto durante cerca de uma semana e assisti à saída dos prisioneiros políticos. Ia aos meetings sozinha. A organização estava completamente fragmentada. Não tinha contacto com ninguém e a minha família não estava cá. Depois voltei para a Covilhã.
Tino Flores, Fausto, José Mário Branco, Covilhã, 1º de Maio de 1975.
Eu e a Adelaide estivemos na clandestinidade até fins de 1976. Sem apoio de ninguém. É surreal. No primeiro ou segundo mês após a Revolução é compreensível, pode haver um golpe de Estado. Mas até 76? E não houve quem aparecesse lá e dissesse: “Não, temos de abrir esta situação”.
Entretanto, percebemos que havia muito para esclarecer, pôr a nu e resolver na organização. Só que ninguém quis fazê-lo. A única coisa que interessava era a fusão no PCP(R). A nossa lógica era que não tínhamos condições para nos unir, para fazer um partido se estávamos cheios de erros e de falhas graves. Primeiro, tínhamos de limpar a casa. E, então, quando a casa estivesse mais ao menos limpa, poderíamos ver qual era a possibilidade da fusão. Nunca fusionámos, os da Covilhã! Depois do desaparecimento da OCMLP nunca mais pertenci a nenhum partido. Nem quero. Prefiro estar fora. O que não significa que não possa intervir. E quero continuar o meu trabalho de investigação e acção.
Reencontro com os pais e irmã em Madrid, 1981, por ocasião do nascimento do segundo filho de Ana (Ana Rosenheim e Max na foto).
Os efeitos das Guerras
Há uma reflexão que gostaria também de deixar sobre os efeitos das guerras, que não só provocam as mortes, o sofrimento e a destruição do património, das economias, etc. É também aquilo que fica e é perpetuado de geração em geração. Não se vê, mas está lá. E vai-se repetir de uma forma muito perversa. É o que se passa agora com os judeus e a Palestina. Se bem que há um movimento sionista que nem sofreu directamente o holocausto, a verdade é que há uma base que os elege. De vítimas, passaram a carrascos. Isto é muito importante tratar. Sobre os efeitos, até na vida quotidiana, do fascismo. Eles ainda cá estão. Mesmo invisíveis. As pegadas são muito profundas e nós todos, de uma maneira ou de outra, sejam os resistentes, sejam os não resistentes, sofremo-las na pele. Uns mais, outros menos. Somos todos interdependentes. Se os queremos cortar para as gerações futuras, temos de tratar disso. O que sinto no meu caso é que há muitos rastos de que nem sequer tenho consciência e que reproduzo. A palavra pode ajudar a revelá-los e assim a torná-los inofensivos.
Outros instrumentos haverá que não sejam a espada na defesa da vida!
Nasci embrulhada em traumas e cresci na resiliência…
Ana Rosenheim nasceu em Lisboa, em 1948.
Frequentou o Kindergarten (alemão e livre) dos 3 aos 5 anos.
Fez os 11anos do Lycée Charles Lepierre (francês) de Lisboa.
Em 1965 vai para Paris.
A partir desta data ingressa na Universidade em Paris.
Estudou psicologia na Sorbonne, Censier, Salpetrière, Faculté des Sciences, Instituto de Psicologia experimental, Escolas primárias etc.
Pertenceu ao grupo de cinema ARC-Paris.
Frequentou a instituição psiquiátrica de "La Borde".
Ingressa no "Comunista" em 1969-70.
Em 1973 regressa clandestina a Portugal integrada na organização OCMLP.
Em 1976 sai de Portugal e vai viver para Espanha,em Madrid,onde com o seu companheiro funda uma livraria com especial relevo para publicações importadas da RP da China, assim como de artesanato de qualidade.
Em 1982 estabelece-se na Andaluzia. Dedica-se então à elaboração e execução de projectos socio-culturais e educativos, nomeadamente inter-gerações, tendo como fundamento a implementação e resgate do jogo e do lúdico como elementos fundamentais para a saúde, a formação educativa e ética-social.
Em 1998 volta a Portugal e trabalha na empresa municipal de Lisboa, a EBAHL hoje EGEAC, até se reformar.
Hoje segue e participa nos movimentos de igualdade de género, contra o racismo e qualquer forma de guerra que pretenda impor a um povo a sua dominação, usurpação de seus bens e dignidade. Neste sentido, as alterações climáticas podem considerar-se uma guerra generalizada que põem em causa a existência de vida na terra.