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A montanha de dívidas privadas das empresas estará no âmago da próxima crise financeira

Estão reunidas as condições para uma nova crise financeira de grandes dimensões. Os dirigentes sabem-no, a imprensa especializada também. Um dos factores é a enorme acumulação de dívidas pelas grandes empresas privadas e o uso que é dado a essas dívidas. Artigo de Eric Toussaint.
Bolsa de São Paulo. Foto de Rafael Matsunaga/Flickr.
Bolsa de São Paulo. Foto de Rafael Matsunaga/Flickr.

Estão reunidas as condições para a eclosão de uma nova crise financeira internacional de grandes dimensões. Os dirigentes dos bancos centrais sabem-no, tal como os dirigentes de instituições como o FMI, a OCDE e o Banco Internacional de Compensações. Numerosos artigos da imprensa especializada versam o assunto. Um dos factores que levam a economia para uma nova crise internacional de grande amplitude é a enorme acumulação de dívidas pelas grandes empresas privadas e o uso que é dado a essas dívidas.

No entanto os governos das principais economias mundiais tinham prometido restabelecer uma disciplina financeira que respeitasse o interesse geral e evitasse novas crises e respectivos efeitos dolorosos para a população. A fim de defender este sistema capitalista que assola a maioria da opinião pública, multiplicaram os anúncios de medidas de peso com vista à reforma do sistema, tentando dar-lhe um «rosto humano», mas, claro está, na prática nada mudou. Na realidade, a política levada a cabo pelos governos e pelos dirigentes dos bancos centrais poupou e favoreceu os interesses do grande capital, nomeadamente as grandes sociedades financeiras. Os capitalistas não foram refreados por qualquer medida restritiva que os impedisse de correr riscos, que reduzisse a especulação, que os forçasse a investir na produção.

As crises fazem parte do metabolismo do sistema capitalista mas não são todas iguais. Este artigo não trata das causas gerais das crises capitalistas. Tenta diagnosticar os factores que conduzem com toda a certeza a uma nova crise muito ampla.

Quando ela estalar, os governos, os dirigentes dos bancos centrais e a imprensa dominante fingir-se-ão surpreendidos, como de costume. Para os opositores ao sistema é fundamental apontar a dedo as responsabilidades e mostrar como funciona o capitalismo, de modo a conseguirem por fim impor outra lógica e romper radicalmente com este sistema.

Desde 2010, tirando proveito da política de baixos juros adoptada pelos bancos centrais dos países mais industrializados (Reserva Federal dos EUA, Banco Central Europeu, Banco de Inglaterra, Banco do Japão, Banco da Suíça, etc.), as grandes empresas privadas aumentaram massivamente o seu endividamento. Nos EUA, por exemplo, a dívida das empresas privadas não financeiras aumentou 7800 mil milhões de dólares entre 2010 e meados de 2017.

Que fizeram elas com o dinheiro emprestado? Investiram-no na investigação e desenvolvimento, no sector produtivo, na transição ecológica, na criação de empregos decentes, na luta contra as mudanças climáticas? Nem pouco mais ou menos.

O dinheiro emprestado serviu em especial as seguintes actividades:

I. As empresas endividam-se para recomprarem as suas acções na Bolsa. Isto traz vantagens para os capitalistas: 1) faz subir o preço das acções; 2) permite «remunerar» os accionistas sem que por isso tenham de pagar impostos sobre os lucros. Além disso as mais-valias sobre as acções não pagam imposto em numerosos países ou beneficiam de taxas muito baixas (em comparação com os impostos sobre o rendimento ou com o IVA). Já em 2014 as recompras nos EUA tinham atingido um montante mensal de 40 a 50 mil milhões de dólares [1]. O fenómeno prosseguiu daí para cá. Sublinhemos que tínhamos assistido, antes da crise precedente, a um aumento muito acentuado das recompras de acções a partir de 2003, o qual atingiu o auge em Setembro de 2007, em plena crise dita «dos subprimes». Entre 2010 e 2016, as empresas norte-americanas recompraram as suas próprias acções na Bolsa por um valor aproximado de 3 biliões de dólares [2]. Conforme expressava o título do jornal financeiro Les Echos, «As recompras de acções recorde são o motor de Wall Street» [3]. Uma grande parte da boa saúde das bolsas, e não só da dos EUA, deve-se às recompras massivas de acções. Por conseguinte é completamente artificial.

Evolução das recompras (buybacks) de 500 grandes empresas privadas dos EUA de 1999 a 2019 (índice S&P 500).
Evolução das recompras (buybacks) de 500 grandes empresas privadas dos EUA de 1999 a 2019 em milhares de milhão de dólares (índice S&P 500). Fonte: https://www.yardeni.com/pub/buybackdiv.pdf

Evolução dos dividendos pagos aos accionistas de 1999 a 2019. Fonte: https://www.yardeni.com/pub/buybackdiv.pdf
Evolução dos dividendos pagos aos accionistas de 1999 a 2019 em milhares de milhão de dólares. Fonte: https://www.yardeni.com/pub/buybackdiv.pdf

Evolução das recompras de acções (a azul) e dos dividendos (a verde) de 1999 à 2019.
Evolução das recompras de acções (a azul) e dos dividendos (a verde) de 1999 à 2019 em milhares de milhão de dólares. A curva a vermelho indica a evolução do S&P 500, um índice bolsista baseado em 500 grandes empresas cotadas nas bolsas americanas. O índice pertence e é gerido por Standard & Poor’s, uma das principais empresas de notação financeira.

Utilização da liquidez das empresas do S&P 500 entre 2000 e 2017.
Utilização da liquidez das empresas do S&P 500 entre 2000 e 2017. Verifica-se um crescimento das despesas com recompra de acções e com distribuição de dividendos aos accionistas entre 2002 e 2007 e entre 2009 e 2017. Em 2017, a parte dedicada à recompra de acções e aos dividendos atinge os 48%.

No mundo imaginário do sistema capitalista ensinado nos manuais de economia, as empresas emitem acções na Bolsa para recolher capital, a fim de investirem na produção. No mundo real, as empresas capitalistas vão buscar empréstimos de capital aos mercados financeiros ou aos bancos centrais, para recomprarem as suas acções na Bolsa, de modo a aumentarem a riqueza dos seus accionistas e darem a impressão de estarem de excelente saúde.

Aos dirigentes das empresas — que em parte são remunerados em stock options, ou seja em acções que podem revender — interessa sobretudo levar a empresa a recomprar as suas acções… Assim se beneficiam a si próprios.

Também é preciso destacar que os gestores de empresa foram muito generosos em matéria de distribuição de dividendos. Entre 2010 e 2016, os dividendos pagos aos accionistas nos EUA ascenderam a 2 biliões de dólares. No total, se somarmos as recompras de bens e dividendos distribuídos, os accionistas das firmas norte-americanas embolsaram 5 biliões de dólares entre 2010 e 2016.

No balanço de contas das empresas, do lado do passivo a parte referente às dívidas das empresas cresce, ao mesmo tempo que diminui a parte correspondente às acções das empresas. Se as taxas de juro sobre as dívidas aumentarem, corre-se o risco de o pagamento de juros levar as empresas à falência. Se, ainda por cima, o valor das acções – que foi artificialmente aumentado pelo efeito combinado das recompras e da bolha financeira – baixar fortemente, a falência fica também ao virar da esquina.

Note-se que a recompra massiva das suas próprias acções, intensamente praticada por grandes empresas norte-americanas como a Hewlett Packard (HP), IBM, Motorola, Xerox, Symantec, JC Penney, não conseguiu melhorar a sua saúde.

II. As empresas endividam-se para comprarem créditos. Compram produtos estruturados, compostos por créditos concedidos a outras empresas ou aos particulares. Compram sobretudo obrigações emitidas por outras empresas privadas, assim como títulos de dívida pública. Só à sua conta, a firma Apple detinha em 2017 créditos sobre outras empresas no montante de 156 mil milhões de dólares, o que representa 60 % do total dos seus activos [4]. A Ford, a General Motors e a General Electric também compram dívidas de outras empresas. 80% dos activos do Ebay e 75% dos activos da Oracle são constituídos por créditos sobre outras empresas.

As trinta principais empresas não financeiras dos EUA activas no mercado de dívidas detêm no seu conjunto 423 mil milhões de dólares de dívidas das empresas privadas (Corporate debt and comercial paper securities), 369 mil milhões de dólares de dívidas públicas e 40 mil milhões de dólares de produtos estruturados (Asset Backed Securities e Mortgage Backed Securities).

Uma vez que as empresas procuram maximizar os rendimentos que obtêm dos créditos sobre outras empresas, são levadas a comprar dívidas emitidas pelas empresas menos sólidas dispostas a remunerar os credores melhor que as outras. O mercado de dívidas de risco é assim amplificado.

Se um dia as empresas devedoras tiverem dificuldades em pagar, as empresas credoras ver-se-ão elas próprias em dificuldades. Em 2016 a Apple comunicou às autoridades que um aumento de 1% nas taxas de juro poderia acarretar uma perda de 4,9 mil milhões de dólares [5]. Tanto mais quanto, para financiar a compra de dívidas, a Apple, tal como as outras empresas, pediu empréstimos. Por exemplo, em 2017 a Apple contraiu empréstimos no valor de 28 mil milhões de dólares. A sua dívida financeira total eleva-se a 75 mil milhões de dólares. Por efeito de dominó poderia ocorrer uma crise de amplitude tão vasta como a de 2007-2008 nos EUA.

Também é importante saber que quando as taxas de juro sobem, o valor dos títulos de dívida das empresas baixa. Quanto mais esses créditos (ou seja, os títulos de dívida emitidos sob a forma de obrigações pelas empresas privadas) representarem uma parte importante dos activos das empresas, mais a queda de valor poderá ter um impacte negativo sobre a saúde dos credores. Estes arriscam-se então a ter falta de fundos próprios para compensar a desvalorização ou as quebras dos créditos que possuem.

A situação descrita corresponde a uma nova progressão da financeirização do capital: as grandes empresas não financeiras desenvolvem cada vez mais os seus investimentos financeiros. Apple, Oracle, General Electric, Pfizer, Ford, General Motors reforçaram os seus departamentos de «Finanças» e assumem cada vez mais riscos para aumentarem os lucros. Anteriormente emprestavam 60 % da sua liquidez a intermediários, nomeadamente os money market funds, para maximizarem os seus rendimentos; agora não lhes confiam mais de 50% e assumem elas próprias, directamente, o risco, a fim de maximizar os lucros.

Acresce que uma grande parte dos créditos detidos sobre outras empresas passam por paraísos fiscais, o que aumenta a opacidade das operações realizadas e pode aumentar o risco. As Bermudas e a Irlanda contam-se entre os principais paraísos fiscais utilizados pelas grandes empresas dos EUA que apostam a fundo sobre a optimização fiscal.

O que acaba de ser descrito diz respeito ao conjunto do mundo capitalista, ainda que os dados apresentados digam respeito à economia dos EUA.

A montanha de dívidas privadas das empresas estará no âmago da próxima crise financeira. Mas com crise ou sem ela, os comportamentos descritos justificam sem sombra de dúvida a acção de todos quantos lutam para acabar com o capitalismo e o sistema da dívida.

Artigo publicado no site do CADTM. Tradução de Rui Viana Pereira.


Notas

  1. ^ Financial Times, «Return of the buyback extends US rally», 5-12-2014.
  2. ^ Financial Times, «Buyback outlook darkens for US socks», 22-06-2017.
  3. ^ Les Echos, 18-01-2017. Ver https://www.lesechos.fr/18/01/2017/LesEchos/22364-131-ECH_les-rachats-d-...
  4. ^ Financial Times, «Debt collectors», 16-17 Setembro 2017.
  5. ^ Financial Times, «Patcy disclosure gives investors little to chew on», 28-09-2017.

Sobre o/a autor(a)

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
Termos relacionados Economia, Internacional
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