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Martín-Baró, mártir da psicologia da libertação latino-americana

A 16 de novembro de 1989, o jesuíta Martín-Baró foi executado no Massacre da UCA em El Salvador. O seu exemplo de compromisso com as lutas do povo e o seu pensamento crítico a todo tipo de fatalismo continuam a inspirar os que desejam construir novos futuros. Por Pablo Pamplona.
Ignacio Martín-Baró. Foto da página de Facebook dedicada ao autor.
Ignacio Martín-Baró. Foto da página de Facebook dedicada ao autor.

Ignacio Martín-Baró, “el rojo”, ou apenas Nacho para a família e amigos, foi um psicólogo social, padre jesuíta, adepto da Teologia da Libertação, e convertido em mártir da luta popular de El Salvador numa chacina ordenada pelo exército salvadorenho.

Martin-Baró nasceu em Espanha, em 1942, mas dedicou a sua vida e o seu trabalho às massas pauperizadas da América Central. Foi assassinado com um tiro na nuca na madrugada de 16 de novembro de 1989, quando um batalhão paramilitar invadiu a Universidade Centro-americana José Simeón Cañas (UCA), onde morava e trabalhava como investigador, professor e vice-reitor. Não morreu sozinho. A covarde operação, que ficou conhecida como “Massacre da UCA”, tirou a vida de mais cinco professores jesuítas, entre eles o próprio reitor da universidade, Ignacio Ellacuría (alvo principal da operação), uma caseira e a sua filha de 16 anos. A universidade preserva a memória dos seus mártires com murais, eventos celebrativos e uma exposição permanente com fotos e itens pessoais.

Só em 2019 um dos mandantes e executores foi condenado; os principais responsáveis, no entanto, permanecem impunes. El Salvador viveu uma guerra civil, entre 1980 a 1992, alimentada pelo financiamento dos Estados Unidos que, além de sustentar um governo militar brutalmente repressivo, também ofereceu apoio e treino a esquadrões da morte. A oposição revolucionária, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), tinha sido fundada em 1979, como uma coligação de cinco organizações políticas e guerrilheiras de orientação socialista, em parte inspirada pela vitória da Frente Sandinista de Libertação Nacional no derrube da ditadura Somoza na vizinha Nicarágua.

A operação militar foi ordenada por chefes do alto comando e realizada pela Unidade Atlacatl, um batalhão paramilitar de elite treinado na “Escola das Américas”, do exército dos Estados Unidos. Os soldados do Atlacatl não apenas assassinaram Martín-Baró, Ellacuría e os demais que os acompanhavam, como o fizeram de forma brutal e cruel. Destruíram livros, documentos e computadores e deixaram no local um cartaz político na tentativa de imputar o crime à própria FMLN, como se o massacre tivesse sido um ajuste de contas dos comunistas contra os “traidores da causa”.

Legado

Um dos principais temas de investigação de Martín-Baró, especialmente durante a guerra civil salvadorenha na década de 1980, foi justamente o problema da violência. Ignacio Dobles, autor da biografia do padre mártir, aproveita conceitos desenvolvidos pelo próprio Martín-Baró para descrever a história da sua morte: a “guerra suja” da violência bruta era acompanhada pela “guerra psicológica” da mentira e da desinformação. De facto, esse mesmo esquadrão da morte tinha recebido treino das forças especiais de Fort Bragg, na Carolina do Norte, um importante centro de treino militar em operações psicológicas.

Os relatos expressam que Ignacio foi um homem alegre e humilde, que sempre sorria e cumprimentava com abraços. Aos finais de semana, atuava como sacerdote na paróquia de Jayaque, uma pequena cidade rural. Dizem que se transformava assim que entrava no carro para se dirigir até a comunidade, como se de repente se encontrasse de espírito renovado.

Ele e os seus colegas jesuítas já tinham recebido ameaças antes, e sabiam que estavam marcados para a morte, mas Ignacio não parecia se abalar. O seu irmão conta que ele afrontava a constante ameaça da sua morte com “elegância e humor” – numa conversa telefónica entre os dois, quando se ouvia ao fundo o som de tiros, disse brincando: “não se preocupem, que estamos rodeados pelo exército”.

Após a sua morte, o seu pai escreveu-lhe uma tocante carta na qual relatava que, quando o filho visitava a família na sua cidade natal, tocava na guitarra as músicas populares latino-americanas que tinha aprendido. A sua irmã Alicia diz que, nesses dias em Espanha, gostava de caminhar por uma rua que lhe lembrava de El Salvador. Alicia conversou com Ignacio por telefone na noite anterior ao seu assassinato e também pôde escutar o som de tiros. Perguntou-lhe quando o conflito salvadorenho seria resolvido. A resposta de Ignacio, tragicamente, revelou-se profética: “tiene que haber muchas muertes, muchas muertes todavía para que eso ocurra”.

Além de ter sido um homem de grandes afetos e comprometido com o povo trabalhador, Martín-Baró foi também um gigante do pensamento. Boa parte da sua produção intelectual pode ser encontrada no site da UCA. Autor de vários livros e artigos, foi fundador e coordenador do Instituto Universitário de Opinião Pública da UCA, ainda ativo, e contribuiu decisivamente na formação da psicologia latino-americana. As suas reflexões influenciaram de maneira decisiva os campos da psicologia social, da psicologia comunitária e da psicologia política.

Pouca dessa produção, infelizmente, foi traduzida e publicada no Brasil. Pelo menos por enquanto, o único livro disponível em português é uma coleção de textos publicada em 2017 pela Editora Vozes. Apesar disso, há um relativo consenso na Psicologia Social Crítica sobre a sua importância crucial para o campo. Em novembro de 2020, foi realizado o III Seminário Ignacio Martín-Baró e as lutas dos povos latino-americanos, que, entre outros debates, realizou uma mesa de conversa entre seis grupos (cinco no Brasil e um na Colômbia) de estudo, pesquisa ou extensão universitária centrados na obra de Martín-Baró, um importante momento de articulação que aponta para um esforço coletivo de tradução e atualização da obra.

A naturalização da violência

Profetas não se tornam profetas pela previsão bem sucedida de factos, mas pela sua forte presença espiritual, plena de inventividade prática e discursiva. Isto é, pela práxis. Cabe ao profeta, como dizia Paulo Freire, não apenas denunciar, mas também anunciar, converter-se num modelo da prática de esperança, que guia e dá exemplo para as gerações seguintes. É nesse sentido que podemos dizer que Ignacio Martín-Baró não foi apenas mártir, mas também um profeta. Ele não “previu”, mas viu concretamente – e analisou de forma crítica e rigorosa – a mesma violência que resultaria na sua morte.

O tema melhor desenvolvido na sua obra é a violência. É o objeto principal da última década da sua vida, os anos 1980, quando El Salvador estava mergulhado numa guerra civil. Martín-Baró argumentava que a análise da situação-limite vivida no contexto da guerra civil pode ajudar-nos a compreender também as situações mais ordinárias, uma vez que as contradições aparecem mais destacadas e os extremos melhor definidos.

E, se o povo salvadorenho vivia uma situação-limite, dizia, era uma situação-limite quotidiana. A guerra civil impôs à população uma ameaça contínua e imprevisível da morte. Os esquadrões da morte, as milícias paramilitares que aterrorizaram a população sob a justificação de combate aos subversivos, intensificavam a violência psicológica e a atmosfera de medo constante adicionando um exibicionismo macabro às suas ações. A guerra civil era convertida num espetáculo de horrores e, ainda assim, era tratada com naturalidade quotidiana.

Num de seus textos mais lidos e debatidos, que recebe o título irónico de O latino indolente, Martín-Baró aborda o que se vinha chamando de uma “atitude fatalista” dos povos latino-americanos, isto é, uma predisposição a aceitar as injustiças como parte de um destino trágico e inevitável determinado por alguma força superior e alheia – parte do curso natural da vida, a respeito do qual não se pode fazer nada. Ele desenvolve esse debate a partir de Paulo Freire, de quem sofreu muita influência, e que traçava uma ponte semelhante entre a opressão colonial e essa conformação a um destino fatal.

Como de costume, Martín-Baró inicia o texto traçando um diagnóstico da realidade salvadorenha. Enumera alguns acontecimentos da vida política no país que, apesar de serem verdadeiros absurdos históricos, insuportáveis, parecem ser absorvidos pelo povo como factos corriqueiros, e assim naturalizados. Conta, por exemplo, que em 1981 o chefe da Polícia Nacional de El Salvador, conhecido por atos de tortura e por dar proteção aos esquadrões da morte, foi nomeado membro da Comissão de Direitos Humanos. Como um absurdo desses pode ser possível? Quando nos atentamos ao diagnóstico aí traçado, salta aos olhos a quantidade de coincidências entre a realidade salvadorenha dos anos 1980 e a nossa realidade atual. Pois assim também ocorreu no Brasil, no começo de 2013, quando o pastor Marco Feliciano foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. É o mundo ao revés, mas aceite como o único normal possível.

Martín-Baró problematiza teorias que fazem uma leitura puramente psicológica dessa questão, como as que apontam para um suposto caráter essencial dos povos “subdesenvolvidos”, que seriam por natureza mais místicos e propensos à manipulação religiosa. Para ele, é impossível ler uma realidade psicossocial sem considerar as estruturas sociais profundas nas quais os indivíduos estão imersos. Ele sugere que o fatalismo não deve ser tratado simplesmente como uma “síndrome” pessoal, mas que, sobretudo, seria melhor pensá-lo como um correlato psíquico dessas estruturas. Se as pessoas assumem uma atitude fatalista é porque a estrutura social induz ao fatalismo. A violência constante que vivemos, e o impedimento, na base da força bruta ou da coerção económica, de qualquer movimento de transformação social, é o que faz parecer que qualquer esforço em direção a uma mudança profunda é inútil.

O fatalismo compreende a vida como algo dado, não como um processo histórico. A deflação da consciência histórica manifesta-se como uma forma de “presentismo”, uma experiência com o tempo que não atenta às memórias do passado, nem a expetativas sobre o futuro – as coisas são como são, e assim serão para sempre. Mas o fatalismo é, ele próprio, uma produção histórica, um resultado histórico e contingente da história social. Não se trata de uma causa da passividade, como se houvesse uma predisposição natural dos pobres à opressão que sofrem. Ao contrário, o fatalismo opera como uma justificação ideológica da inação, ao mesmo tempo que a reproduz. A violência acaba por ser internalizada pelo oprimido, “ancorada” na sua musculatura como uma tensão reprimida e permanente e afeta diretamente a sua saúde física e mental. O fatalismo não deixa de ser uma estratégia para lidar individualmente com uma realidade que parece imutável, mas é também uma fonte de dor e sofrimento. Nesse sentido, a teorização de Martín-Baró mostra uma proximidade surpreendentemente contemporânea com críticas mais recentes ao neoliberalismo, como a noção de “realismo capitalista” de Mark Fisher, que também aponta um fechamento do horizonte histórico e o conecta com a epidemia de sofrimento psíquico tão característica da nossa época, a fim de politizar a questão da saúde mental.

O profissional de psicologia não deve assumir cada pessoa como um organismo isolado, mas sim como sujeito histórico. Os próprios transtornos psíquicos, sob essa ótica, são compreendidos como uma reação normal a uma realidade anormal. Por isso, como sugere em Guerra e saúde mental, a construção de uma sociedade justa não é apenas um problema político, mas também um problema psicológico. Isso não significa que o tratamento individual não tenha valor, mas que será sempre um paliativo enquanto durarem as raízes do sofrimento. E a psicologia tem instrumentos também a oferecer para intervir sobre a dimensão coletiva e mesmo estrutural da sociedade.

Para uma Psicologia da Libertação

É importante lembrar que Martín-Baró foi um padre jesuíta ligado à Teologia da Libertação, uma corrente de teoria e prática enraizada na Igreja Católica que teve um papel central nas lutas contra as ditaduras na América Latina. Principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, diversos bispos, padres, frades e freiras aliaram-se às lutas populares para combater a injustiça e o “pecado estrutural” instaurado pelo imperialismo no continente. A Teologia da Libertação defende que o seu horizonte é o mesmo de Cristo: a libertação dos povos oprimidos para a formação do Reino dos céus na Terra.

Na famosa conferência Para uma Psicologia da Libertação, disponível no YouTube, Martín-Baró, inspirado por esse movimento, reivindica uma psicologia comprometida com as causas do povo pobre e com a possibilidade de libertação das maiorias. Para ele, não há contradição entre uma ciência “objetiva” e uma que toma partido nos problemas políticos e sociais.

Pelo contrário, a própria psicologia social fez seu berço, por um lado, no ambiente de fábrica, visando o aumento de produtividade e a integração do trabalhador no seu trabalho explorado; e, por outro lado, nasce também como uma crítica da “irracionalidade” das multidões e das suas demonstrações de revolta popular. Esse antigo horizonte da psicologia social nada tem de imparcial ou mesmo de objetivo.

Seguindo um novo horizonte de transformação social, de libertação, o campo pode e deve assumir uma posição frente aos problemas que identifica no diagnóstico que faz da realidade. Pelo que Martín-Baró apelava aos psicólogos também para uma nova práxis, para (como ele dizia) abandonar os seus sapatos confortáveis no laboratório e caminhar na terra agreste das lutas. As perguntas que interessam a uma psicologia libertadora devem partir da realidade e dos interesses do povo.

Quando a violência perde o seu caráter histórico, a psicologia pode trabalhar para uma elaboração do passado, um resgate do que nos é constantemente negado, relegado ao esquecimento. Martín-Baró chama a psicologia a “devolver o sentido a cada ato e a responsabilidade pessoal e social a cada ator”, para combater a naturalização da violência e da injustiça.

Uma sugestão frequente que fazia é a investigação e difusão das memórias de lutas contra a opressão. Essa é uma forma de enfrentar o “presentismo”, esse tempo congelado, empobrecido, sem a memória dos que lutaram antes de nós e sem perspetivas de um futuro diferente. O trabalho com memória, ao nos informar sobre estratégias que serviram bem aos processos de libertação no passado, pode também ampliar o nosso imaginário e nos informar sobre outros mundos possíveis para o futuro.

Mais que traçar um diagnóstico da sociedade, Martín-Baró preocupava-se sobretudo em discutir as possibilidades da libertação pelas organizações populares: pelos sindicatos, comunidades, movimentos sociais, e organizações políticas revolucionárias. O que precisamos, aponta, é de um fazer científico enraizado no terreno concreto das lutas e da ação coletiva militante. Destacava a importância da organização para que as classes oprimidas possam superar o individualismo e assim representar os seus próprios interesses no espaço público. Daí a necessidade do que chamava de uma “prática de classe”, visando a mudança radical e estrutural da sociedade.

Uma das suas contribuições mais originais foi o debate sobre as “virtudes” das classes populares. Em Acción e Ideología, talvez a sua obra mais importante, dedica um capítulo para discutir a cooperação e a solidariedade. Ainda que esteja bem atento às contradições do “oprimido que sonha ser opressor”, recusa a tese liberal de que o ser humano é naturalmente egoísta e que, portanto, toda ação de solidariedade teria um fundo de intenção narcisista. Na conferência Para uma Psicologia da Libertação, chega a dizer que uma das “tarefas urgentes” da psicologia deve ser “potencializar as virtudes populares”.

Otimismo ingénuo, típico de um sacerdote cristão? Dificilmente. Assim como outros teólogos da libertação, Martín-Baró tinha uma leitura crítica da religiosidade católica do seu tempo. No seu trabalho Culpabilidad religiosa en um barrio popular, de 1975, já denunciava a dimensão conformista da religião e criticava o confessionário como forma de resolução da culpa, por se tratar de um ritual individualista e escapista. Martín-Baró é explícito: não é possível uma salvação transcendente para o indivíduo isolado; esse caminho deve ser tecido em comunhão, no vínculo coletivo e enraizado na materialidade da vida.

As análises e as teorias de Martín-Baró, ainda que direcionadas imediatamente à realidade salvadorenha, dizem muito também sobre o nosso contexto atual. As suas recomendações de intervenção e investigação científica podem servir de inspiração tanto para o trabalho intelectual na academia quanto para o trabalho de organização política e construção estratégica do poder coletivo capaz de transformar a realidade presente. A produção de uma ciência libertadora, que articule pensamento crítico rigoroso com prática emancipatória popular, longe de ser uma proposta do passado, mantém-se urgente em todo lugar onde haja opressão.


Pablo Pamplona é doutorando em Psicologia Social pela USP e membro do Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias.

Texto publicado na Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal por Esquerda.net.

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