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Lições de Wuhan, por Mike Davis

Ao reconhecer os feitos da China no combate à Covid-19, devemos evitar tirar a lição errada. A capacidade pública para uma ação decisiva numa emergência não requer a supressão da democracia. Por Mike Davis.
Xi Jinping visita um hospital em Wuhan. Março de 2020. Foto de fotospublicas.com.
Xi Jinping visita um hospital em Wuhan. Março de 2020. Foto de fotospublicas.com.

Um artigo recente na revista Infection discute as razões para o aparente sucesso da China na supressão da primeira vaga de Covid-19. A quarentena draconiana em Wuhan e nas cidades vizinhas, como as restrições nacionais a viagens, reduziram dramaticamente a velocidade da transmissão para o resto da China. Isto permitiu a milhares de médicos, enfermeiros e pessoal de emergência de toda a China irem para Hubei, onde tiveram os testes necessários, os ventiladores, as máscaras de proteção e as camas para tratar um grande número de casos críticos.

Segundo os relatórios chineses, corroborados pela Organização Mundial de Saúde, o número de casos foi mantido em um milhão de pessoas, de um total de 57 milhões da população da província de Hubei, uma taxa de menos de 2%, menor do que a que se esperava. Em contraste, o governador da Califórnia, Newsom, escreveu ao presidente Trump que os peritos do estado preveem uma taxa de infeção da população de 56% (25,5 milhões de casos) nas próximas oito semanas.

Naturalmente, à medida que a China relaxa a quarentena e os trabalhadores voltam às fábricas e escritórios, a infeção pode regressar, na ausência de uma vacina. Há sinais alarmantes de que isso pode estar a acontecer, com cidadãos chineses a trazerem de volta a infeção de Itália e de outros lugares. Os três países asiáticos que, como a China, suprimiram os surtos locais – Taiwan, Singapura e Coreia do Sul – sofrem a mesma ameaça iminente. Mas, tendo ganho a confiança pública, atuarão provavelmente ainda mais depressa para controlar a segunda vaga, mesmo que a um custo económico elevado.

O sucesso espetacular da China, mesmo que temporário, foi atribuído por muitos jornalistas ocidentais e responsáveis públicos ao facto de ser um estado quase-totalitário de vigilância. A sua prova principal é a reação precoce dos burocratas locais, que suprimiram dados vitais e enganaram a imprensa. Mas é difícil que isso seja a história completa.

Como o senador republicano da Luisiana, Bill Cassidy, que é um gastroentrologista reconhecido, sublinhava há poucos dias, os cientistas médicos chineses foram “impressionantes” em partilhar rapidamente informação vital com a comunidade mundial. De facto, o fluxo constante de relatórios e estatísticas tornou-se a fundação informativa para conduzir a luta em quase todo o lado. Vejam o site Covid do Instituto Nacional de Saúde e leiam a literatura.

Ao mesmo tempo, a China e Cuba estão a elevar as pressão ao fornecerem uma significativa ajuda e peritagem médica a nações pobres. Os médicos internacionalistas cubanos têm estado desde há décadas na primeira linha de resposta a epidemias no Terceiro Mundo, sofrendo elevadas perdas nas batalhas recentes contra o Ébola na África ocidental. São as tropas de choque confiáveis, mas os chineses também trazem a artilharia pesada, contentores de testes, fatos de proteção e outro material. Enquanto os irmãos europeus de Itália, no que pode ser um golpe de morte para o projeto europeu, fecham as fronteiras e recusam partilhar recursos, a China prepara uma operação médica massiva em coordenação com a Rússia.

Pequim, como se compreende, está a lutar por uma política hegemónica e a tentar refrescar a sua imagem no momento em que Washington colocou na Estátua da Liberdade o cartaz “fiquem longe e nem telefonem”, e a Organização Mundial de Saúde está paralisada pela inação dos governos ocidentais. Para um camponês da Libéria ou uma mãe no Quénia, ou para um italiano idoso fechado no seu apartamento, o que conta não são promessas mas máscaras, medicamentos e muitos médicos no terreno.

Ao reconhecer os feitos da China, no entanto, devemos evitar concluir a lição errada: a capacidade pública para uma ação decisiva numa emergência não necessita de uma supressão da democracia. Apesar do que muitos estão a afirmar, colocar um milhão de Uígures em campos de reeducação não era uma pré-condição para combater o vírus em Hubei, nem a prática de Big Brother de vigiar as ruas de todas as cidades da China, nem marcar o seu “crédito social” são relevantes para a quarentena nacional.

Mesmo assim, é inevitável que os líderes de extrema-direita na Casa Branca, em Downing Street e noutros lugares, venham a aproveitar todas as oportunidades, como no 11 de setembro, para se apropriarem de novos poderes autoritários, explorando as consequências da sua própria inação e da liderança desastrosa, para criarem mais precedentes no fecho de espaços públicos, proibindo assembleias ou mesmo suspendendo eleições.

É por isso que devemos debater os modelos democráticos de uma resposta efetiva às pragas do presente e do futuro, para mobilizar a coragem popular, para dar uma direção à ciência, para usar os recursos disponíveis para um sistema abrangente de saúde universal e de medicina pública. De outro modo, cederemos a liderança desta era de emergência constante aos nossos tiranos.

 

Artigo publicado no The Nation a 25 de março de 2020.

Mike Davis nasceu na cidade de Fontana, Califórnia, em 1946. Abandonou os estudos precocemente, aos dezasseis anos, devido a uma grave doença do pai. Trabalhou como talhante, motorista de camião e militou no Partido Comunista da Califórnia meridional antes de regressar à sala de aula. Aos 28 anos, ingressou na Universidade da Califórnia de Los Angeles (Ucla) para estudar economia e história. Atualmente, mora em San Diego, é um reconhecido professor no departamento de Creative Writing na Universidade da Califórnia, em Riverside, e integra o conselho editorial da New Left Review. Autor de vários livros, entre eles Planeta favela (link is external)Apologia dos bárbaros (link is external) e Cidade de quartzo (link is external). O autor também colabora com o livro de intervenção Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (link is external).

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