Lembrando a Viena Vermelha

02 de março 2024 - 20:31

Apesar de ter sido tragicamente extinta pela ascensão do fascismo, a Viena Vermelha foi uma ilha de organização socialista e de poder dos trabalhadores que merece ser lembrada. Por Veronika Duma e Hanna Lichtenberger.

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Karl-Marx-Hof, complexo habitacional construído durante a "Viena Vermelha". Foto de C.Stadler/Bwag/Wikimedia Commons.
Karl-Marx-Hof, complexo habitacional construído durante a "Viena Vermelha". Foto de C.Stadler/Bwag/Wikimedia Commons.

Quando se trata de planeamento urbano e gestão municipal progressistas, a “Viena Vermelha” (1919-1934) continua a ser um ponto de referência comum. Mais conhecido pelos seus programas habitacionais, esse projeto municipal radical também implicou melhorias sociais abrangentes que incluíam assistência médica, educação, creche e esforços de renovação cultural.

A Viena Vermelha representa uma resposta social-democrata historicamente específica a questões sociais e políticas que permanecem relevantes até hoje: a distribuição de riqueza, o acesso à infraestrutura e a reorganização do trabalho reprodutivo.

Tendo como pano de fundo os desafios contemporâneos à política urbana de esquerda – a luta pelo direito à habitação, pelo reinvestimento público e contra a ascensão da direita –, devemos lembrar esse projeto abrangente do período entre guerras para delinear as possibilidades e os limites da política urbana progressista num estado conservador.

A estrutura social da Viena Vermelha

Outras cidades europeias também aprovaram projetos habitacionais modernistas com orientação social para as suas classes trabalhadoras urbanas: Frankfurt am Main (“Nova Frankfurt”) e Zurique (“Zurique Vermelha”) iniciaram programas muito parecidos com os de Viena após a Primeira Guerra Mundial, mas nenhum deles foi tão amplo e ambicioso.

A combinação de forças sociais em Viena no final e logo após a Primeira Guerra Mundial criou as condições necessárias para o projeto. Fortes movimentos de trabalhadores, feministas e de conselhos surgiram da fome generalizada, desemprego e falta de habitação que marcaram os anos de guerra. Isto culminou numa onda de manifestações e greves no final da guerra. Por toda a Viena, trabalhadores e moradores organizaram conselhos inspirados na Revolução Russa e nas Repúblicas de Conselhos da Alemanha e da Hungria.

Depois da monarquia austro-húngara ter entrado em colapso, abriu-se espaço para a transformação social. Em novembro de 1918, a recém-formada república austríaca alargou o voto tanto a homens quanto a mulheres. Isto permitiu que o Partido Social Democrata dos Trabalhadores (SDAPÖ) obtivesse a maioria dos votos nas primeiras eleições.

O governo de coligação, formado pelos social-democratas e pelo Partido Social Cristão (CS), que governou até 1920, introduziu uma série de reformas progressistas que melhoraram imediatamente as condições de vida dos trabalhadores, como a jornada de oito horas, férias remuneradas, a Lei do Conselho de Trabalho, a criação da Câmara do Trabalho e a legislação de controle de arrendamentos.

A natureza do SDAPÖ – que se baseava na integração organizacional de várias correntes radicais e revolucionárias – facilitou esses programas. Embora algumas secções do partido tenham negociado com a oposição, elas conseguiram usar a pressão imposta pelos movimentos sociais para obter concessões adicionais.

Esse histórico ajuda a explicar por que o partido ainda enfatiza a unidade. Ao contrário da Alemanha, o SDAPÖ da Áustria testemunhou poucas divisões importantes, e o Partido Comunista nunca se estabeleceu – exceto durante os períodos de ilegalidade sob os austro-fascistas e os nazistas – como um sério rival.

Os socialistas também se organizaram fora do parlamento através da sua ala militar, a Schutzhund, e do movimento dos trabalhadores. Em Viena, os social-democratas sempre obtinham maioria absoluta nas eleições para o conselho municipal, revelando que tanto a classe trabalhadora da cidade quanto grandes segmentos da emergente classe profissional de colarinho branco gravitavam em torno do partido. A Viena Vermelha tornou-se uma grande força na política nacional.

Mas os desafios de gerir uma cidade socialista num estado conservador logo se tornaram evidentes. A administração da cidade empenhava-se num projeto político que ia contra os objetivos do governo federal e, até certo ponto, contrastava com o comportamento da ala mais reformista do Partido Social Democrata.

A partir da década de 1920, o equilíbrio de forças começou a deslocar-se contra os interesses dos movimentos dos trabalhadores e femininos. Os apelos para eliminar o “lixo revolucionário” soavam cada vez mais altos nos debates públicos. Após o colapso da primeira coligação governamental em 1920, o SDAPÖ nunca mais participaria num governo nacional da Primeira República.

Enquanto isso, como na Alemanha, a inflação provocada pela guerra espalhou-se pelo país. O colapso da moeda só parou depois da Liga das Nações ter prometido garantir os créditos estrangeiros. O governo planeava equilibrar o orçamento nacional aumentando a receita e cortando despesas, uma fórmula familiar que, como sempre, foi conduzida às custas da grande maioria.

Renovação urbana vermelha

Em Viena, o SDAPÖ concentrou-se em projetos políticos municipais. Eles acreditavam que uma reestruturação completa em todas as esferas da vida produziria o “homem novo” preparado para a futura sociedade socialista.

A base ideológica da abordagem veio do austro-marxismo, uma ideologia situada em algum ponto entre a reforma e a revolução que buscava realizar o socialismo através das urnas. A estratégia política correspondente enfatizava a construção da hegemonia dentro dos limites da cidade.

A Câmara Municipal de Viena interveio na crise económica do pós-guerra com um programa massivo de investimento e infraestrutura. Não é de surpreender que tenha enfrentado imediatamente uma enxurrada de críticas das forças burguesas e de direita.

A oposição às políticas da Viena Vermelha uniu o governo federal, as principais associações industriais e bancárias, o grande capital, a igreja e as organizações fascistas e paramilitares contra a cidade.

Apesar da resistência interna e externa, o gabinete da cidade usou um amplo programa de redistribuição de riqueza baseado em impostos para pagar os programas. Isto só foi possível depois de 1922, quando Viena se tornou um estado federal e, portanto, adquiriu uma ampla autonomia na política tributária.

O imposto Breitner, nomeado em homenagem ao conselheiro de finanças, arrecadou dinheiro com bens e consumo de luxo, taxando carros, corridas de cavalos e contratação de empregados domésticos. Um imposto progressivo sobre habitações, que visava principalmente vivendas e habitações particulares, não taxando a maioria dos apartamentos da classe trabalhadora, também apoiou o projeto.

O conselho criou um amplo programa de estímulo económico, incluindo investimentos em massa em infraestrutura e criação de empregos, enquanto uma onda de municipalização e nacionalização varria o setor reprodutivo. A administração concentrou-se nas esferas que hoje descreveríamos como “trabalho do cuidado” – enfermagem, assistência médica, educação e assim por diante – e equipou-as com infraestrutura aprimorada e recursos significativamente maiores.

Seguiu-se uma expansão enorme de creches e centros juvenis, casas de repouso modernas e melhorias gerais no atendimento à saúde. O governo promoveu reformas pedagógicas e aumentou as oportunidades de educação contínua. Inúmeras novas bibliotecas foram abertas, muitas vezes dentro dos projetos de habitação pública que surgiam por toda a cidade.

Uma ampla rede de associações e clubes culturais subsidiados publicamente deu a mais cidadãos acesso à educação cultural. Juntos, esses projetos representaram um programa abrangente de reforma e modernização da educação. Ao mesmo tempo, novas pontes, ruas, parques e passeios impulsionaram a reorganização arquitetónica da cidade.

Desmercantilizar o abrigo

No século XIX, Viena, como capital do Império Austro-Húngaro e residência da monarquia dos Habsburgos, cresceu e tornou-se uma metrópole com mais de dois milhões de habitantes. Em 1910, foi classificada como a quinta maior cidade do mundo, depois de Londres, Nova York, Paris e Chicago. A mão de obra migrante de diferentes partes do império permitiu a expansão do centro industrial da cidade.

Grande parte da população vivia em antigos prédios de apartamentos sobrelotados, sem iluminação e ventilação adequadas. Várias gerações amontoavam-se em blocos de apartamentos com preços especulativos nos subúrbios proletários da cidade. Os preços do arrendamento dispararam, e muitos moradores alugavam apenas uma cama entre os turnos das fábricas. A tuberculose e o raquitismo, doenças típicas da classe trabalhadora vienense, espalharam-se pelos bairros mais pobres.

A terrível crise de habitação após a guerra levou o governo a organizar moradias de emergência, às vezes através da desapropriação de prédios vagos. Opunha-se à especulação imobiliária e foram sendo sucessivamente compradas cada vez mais propriedades, de modo que, em 1924, o governo vienense era o maior proprietário de imóveis da cidade.

Entre 1923 e 1934, construiu mais de sessenta mil novos apartamentos, que também serviram como criadores de empregos. Além disso, a administração apoiou o movimento de assentamentos, no qual veteranos de guerra sem-teto e outros indivíduos destituídos se apossaram de terrenos não utilizados e construíram casas neles.

Os condomínios tornaram-se o estilo de construção preferido, provocando a ira das elites, que condenaram a quantidade de dinheiro que estava a ser gasta em “fortalezas vermelhas” – um rótulo que aponta para a suspeita de que elas poderiam um dia servir a funções militares.

Quando foi iniciada a construção do Karl-Marx-Hof, um enorme complexo habitacional com cerca de 1.400 unidades, muitos críticos afirmaram que era estruturalmente insalubre. Quando o famoso Amalienbad (uma piscina pública num bairro operário) foi inaugurado, a imprensa burguesa temia que os visitantes proletários roubassem as suas belas decorações.

Esses complexos habitacionais geralmente eram blocos de apartamentos de vários andares com pátios internos verdes que forneciam luz natural aos residentes e fortaleciam os laços comunitários e a solidariedade. A cidade conectou esses blocos à infraestrutura local, como cooperativas de consumo e escolas, facilitando a vida quotidiana dos moradores ao reduzir o tempo de deslocamento e de compras.

Os apartamentos em si tinham, em geral, cerca de 125 a 150 pés quadrados e consistiam numa cozinha em plano aberto, um quarto e, às vezes, um armário adicional. Todos tinham água canalizada e casas de banho.

Os arquitetos integraram as reivindicações dos movimentos feministas e de trabalhadores nos layouts dos edifícios, e as discussões sobre a racionalização e centralização da economia doméstica apareceram na construção das cozinhas, creches, lavandarias e no Einküchenhaus – uma série de unidades atendidos por uma cozinha central.

Os planeadores pretendiam que o Estado assumisse as tarefas reprodutivas tradicionalmente femininas e aliviasse as trabalhadoras, já stressadas pelo triplo fardo do trabalho assalariado, das tarefas domésticas e da criação dos filhos.

Nem os complexos nem as várias empresas e serviços estabelecidos para apoiá-los tinham a intenção de obter lucro. A autarquia continuou a administrar os serviços públicos, como gás, água, fábricas de energia e transporte público, e fez pressão para assumir o controle de indústrias privadas, incluindo a recolha de lixo e os canais.

As rendas eram calculados para cobrir esses custos operacionais e nada mais; em 1926, representavam, em média, cerca de 4% do salário mensal de um trabalhador. A locação de apartamentos era conduzida de acordo com um sistema de pontos; além da necessidade, da situação atual da habitação, do estatuto de emprego e dos ferimentos de guerra, a cidade privilegiava os candidatos nascidos em Viena, que contavam quatro vezes mais pontos do que a cidadania austríaca.

Isso demonstra o compromisso da cidade em ajudar qualquer pessoa que morasse na cidade a permanecer nela. No entanto, a partir da eclosão da crise económica global em 1929, a Viena Vermelha ficou sob crescente pressão, tanto económica quanto política.

A cidade socialista num estado conservador

A Primeira República Austríaca reagiu à crise económica adotando uma política de austeridade. Para salvar o Estado da crise, foram pedidos empréstimos à Liga das Nações que vieram, é claro, com condições rigorosas.

Os representantes financeiros da Liga das Nações viajaram para a Áustria e desenvolveram um “programa de reestruturação”, que exigia o desmantelamento da infraestrutura social, o corte de empregos e a redução dos direitos dos trabalhadores. Essas políticas eram geralmente aplicadas através de decretos de emergência para evitar o parlamento e a tomada de decisões democráticas em geral.

Na época, a imprensa do movimento dos trabalhadores fazia aos seus leitores uma pergunta que soa estranhamente familiar mais de oitenta anos depois: “quem pagará pela crise?”

“A crise! Os empresários exigem reduções de impostos, os donos de fábricas pedem a eliminação de “encargos sociais”… Mas a crise não é sentida… em primeiro lugar por aqueles de quem ninguém fala – pelos trabalhadores, funcionários e funcionários públicos? Agora mais do que nunca! Porque são os seus salários que querem cortar, os seus custos da Segurança Social, deviam ser eles a pagar mais impostos, de modo que a tributação direta possa ser eliminada… Em tempos de crise, todos são supostamente protegidos, mas apenas os trabalhadores, especialmente as mulheres e os jovens, ainda são obrigados a pagar.”

O governo e o comité financeiro da Liga das Nações não escondiam o facto de que consideravam a democracia como algo perturbador e que poderia colocar em risco o sucesso do programa. Por isso, estabeleceram estruturas mais autoritárias, justificando-as com a terrível necessidade económica do país.

O SDAPÖ criticou as políticas de austeridade, mas ainda assim tolerou-as a nível federal, pelo menos em alguns casos. A destruição da Viena Vermelha assemelha-se muito às medidas neoliberais autoritárias que foram implementadas na senda da crise mais recente. Ao mesmo tempo, destaca o poder limitado que os governos municipais têm quando confrontados com tetos de dívida impostos externamente.

No decorrer da crise, o governo federal austríaco, conservador e burguês, aumentou a pressão sobre a administração de Viena para cortar despesas e aumentar as receitas. Enquanto a austeridade era imposta em nível federal, a cidade tentou continuar com os seus programas de investimento, principalmente no que dizia respeito à construção de apartamentos, embora agora em menor escala. As sessões do conselho da cidade foram realizadas “sob o signo da frugalidade”.

O Partido Comunista – não representado no parlamento nem no conselho da cidade – acompanhou criticamente o projeto da Viena Vermelha desde o seu início e protestou contra esses cortes, acusando o “Conselho da Cidade Vermelha” de aliviar a economia “doente” às custas da “classe trabalhadora doente”. A nível federal, o SDAPÖ propôs programas de criação de empregos e investimentos, bem como a redistribuição da riqueza através de impostos, mas as suas sugestões foram ignoradas.

Em fevereiro de 1934, o governo austro-fascista destituiu o governo de Viena no decurso da sua evisceração militar do movimento dos trabalhadores como um todo, e nomeou comissários para governar a cidade.

Uma das primeiras medidas do governo provisório foi o desmantelamento do sistema tributário progressivo. A redistribuição da riqueza de cima para baixo foi revertida, os projetos de habitação pública foram em grande parte abandonados, as rendas aumentaram e a segurança social e a infraestrutura foram desmantelados.

História esquecida, lições esquecidas

Reconsiderar a Viena Vermelha permite que a esquerda contemporânea se baseie nessas experiências e estratégias. Embora a esquerda de hoje tenha um caráter muito diferente e exista numa constelação política muito diferente, as lutas urbanas continuam.

Os movimentos contra despejos (que incluem moradores de habitações públicas) e as exigências de uso produtivo de espaços vazios para recém-chegados, como os refugiados, mobilizam a esquerda por toda a Europa.

A Viena Vermelha mostra que ideias de longo alcance e transformadoras se podem tornar realidade, embora numa situação específica em que a pressão em massa vinda de baixo fez com que as reformas fossem aprovadas.

Embora a Viena de hoje sinta os efeitos da gentrificação e do aumento das rendas, a cidade mantém um orçamento de habitação pública relativamente alto em comparação com metrópoles de tamanho semelhante. Vital para o projeto de reforma do período entre guerras foi uma força política apoiada por grandes segmentos das classes subalternas que abriu espaço para outras mudanças e transformações.

Ao mesmo tempo, a Viena Vermelha lembra-nos como é importante abordar o poder do Estado nos níveis local, nacional e multi-regional. Embora a autonomia tributária tenha dado à Viena Vermelha mais espaço de manobra, o governo progressista da cidade não conseguiu derrotar as forças combinadas do governo nacional e da Liga das Nações.

Na época, a esquerda austríaca dissecou a estratégia do SDAPÖ. A socialista, ativista e cientista social Käthe Leichter, mais tarde assassinada pelos nazis, argumentou que a relutância do partido em abordar o poder do Estado foi o seu erro fatal. A esquerda tinha perdido “a sua fé no poder criativo do próprio movimento dos trabalhadores, a autoconfiança na sua própria capacidade de agir e moldar a sociedade”.

Devemos levar estas lições a sério, ao mesmo tempo que celebramos e defendemos as conquistas reais do governo socialista em Viena.


Veronika Duma é historiadora e investigadora no Departamento de História da Universidade de Viena.

Hanna Lichtenberger é cientista política e historiadora no Departamento de Ciência Política da Universidade de Viena.

Texto originalmente publicado na Jacobin. Traduzido por Gercyane Oliveira para a Jacobin. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.