A crise ambiental e climática não é uma consequência inesperada ou casual do modo de produção capitalista, mas sim uma característica intrínseca deste modo de produção e da mundivisão capitalista, positivista e globalizada. A produção de mais-valia baseada na expansão das forças produtivas exige a criação permanente de novos consumos, a expansão das consumos existentes, a extensão de novas “necessidades” para círculos crescentes, a criação de novas necessidades e a criação de novos valores de “uso”. Isto implica a exploração integral da natureza e a criação de novos valores de uso e de troca, à escala universal, de produtos feitos em todos os climas, todos os ecossistemas e todos os países. A precedência do valor de troca sobre o valor de uso e sobre valores de uso essenciais (tais como o alimento, a água, o abrigo ou um ambiente salubre) permitiu ao capitalismo “distanciar” a humanidade da natureza e dos seus limites, trocando o concreto pelo abstrato, mas a realidade apanhou-nos. A mercantilização e a fetichização da mercadoria degradou as relações humanas e a relação das pessoas com a natureza, uma vez que o capitalismo apenas valoriza e satisfaz necessidades reais que sejam necessárias para manter a força de trabalho viva. Fora isto, o capitalismo cria um corpo de necessidades determinado estritamente pela lucratividade e pela expansão, sendo unilateral e compulsório na criação de “necessidades”. Os mercados, isto é, os capitalistas, não se destinam a satisfazer necessidades, mas sim em procurá-las e criá-las.
A natureza extrativista do capitalismo está em conflito directo com qualquer espécie de relação harmoniosa entre os seres humanos e a natureza. A lógica linear do capitalismo e a redução de todos os aspetos da vida à acumulação de valor de troca é incompatível com os ciclos naturais e com os sistemas complexos da natureza. A rutura metabólica teórica definida vagamente por Marx como «a rutura irreparável no processo interdependente do metabolismo social» está a ser atingida a nível global e a crise climática é a expressão mais proeminente desta rutura. Recentemente as piores previsões foram novamente ultrapassadas, com os cientistas a assinalarem nove possíveis pontos sem retorno a ser atingidos no sistema climático, nomeadamente o derretimento do gelo marítimo do Ártico, o degelo da Gronelândia, o colapso das florestas boreais, o derretimento do permafrost na Sibéria e da camada de gelo da Antártida Ocidental e de partes da Antártida Oriental, o colapso dos corais de temperaturas médias, o colapso da floresta tropical da Amazónia e a desaceleração da Circulação Termoalina Meridional do Atlântico. Actualmente já vivemos num clima global com uma temperatura média mais alta do que em qualquer outro período nos últimos 125 mil anos, desde o período interglacial do Eemiano. O capitalismo já destruiu o Holoceno através das emissões de gases com efeito de estufa e auto-congratulou-se nomeando esta nova era climática de perigo sem precedentes de Antropoceno. Mas acelera rumo à catástrofe. Entrámos nas décadas finais para travá-la.
Açao do Extinction Rebellion em Londres. Foto Markus Spiske/Unsplash
A crise climática e a crise capitalista não vão ocorrer à moda de Hollywood, já que o colapso não é um evento de um dia, mas sim uma cascata inclemente de eventos, que já se estão a desenvolver há décadas em várias regiões e países, sob a forma de colapso ambiental, social e económico. A nível global, a ascensão de governos de extrema-direita racista e autoritária é uma sequência previsível após uma década de crise orgânica da forma neoliberal do capitalismo.
Ou derrubamos o capitalismo ou o novo clima derrubará a civilização humana. É inequívoco: as crises gerais do sistema capitalista, cujas expressões mais claras são a crise financeira e a austeridade, estão a evoluir no sentido de uma crise orgânica, com o desprezo pelas instituições a partidos políticos a corroer a estabilidade social sob o domínio da burguesia capitalista. A crise climática e a crise capitalista não vão ocorrer à moda de Hollywood, já que o colapso não é um evento de um dia, mas sim uma cascata inclemente de eventos, que já se estão a desenvolver há décadas em várias regiões e países, sob a forma de colapso ambiental, social e económico. A nível global, a ascensão de governos de extrema-direita racista e autoritária é uma sequência previsível após uma década de crise orgânica da forma neoliberal do capitalismo.
Nenhuma ameaça ou risco convencerá o sistema capitalista e os capitalistas a parar de acumular lucro e de extrair crescentemente mais-valia. Não há qualquer arranjo institucional que negue a sede de expansão e de poder do capitalismo. Além da sua violência coerciva e das suas ferramentas de hegemonia cultural para constituir-se como ideologia orgânica, o capitalismo é a grande metanarrativa do nosso tempo, ‘“naturalizada” e invisível em muitos dos seus aspetos, a maior parte dos quais ultrapassa em muito as questões da produção, tal como o seu caráter positivista e a sua natureza global. Esta realidade ajuda-nos a pensar em questões centrais na crise climática, nomeadamente do porquê das elites capitalistas estarem a escavar a sua própria tumba e do porquê de mesmo as forças anticapitalistas não conseguirem sequer formular uma resposta adequada ao atual momento histórico. As metanarrativas baseiam-se no facto de sermos animais sociais: é-nos confortável partilhar visões do mundo explícitas ou implícitas. Uma metanarrativa corresponde a um elevado nível de naturalização, fazendo com que a mesma possa ser simplesmente esquecida e assumida como “natureza humana”. Os promotores de uma metanarrativa muitas vezes estão sujeitos a esta própria naturalização – e esta é uma das características mais relevantes num contexto de crise climática. Uma metanarrativa vai além daquilo que Antonio Gramsci chamou de ideologia orgânica, já que não é apenas uma ferramenta através da qual as classes dominantes dominam o aparelho produtivo e articulam o discurso ideológico da classes subordinadas, mas ao tornar-se naturalizada, a metanarrativa articula o discurso ideológico de todas as classes (incluindo as classes dominantes, fixando-as numa mundivisão que pode até ser prejudicial a essas próprias classes). Não é uma grande conspiração: a metanarrativa capitalista é uma jaula para as mentes e é na “segurança” dessas jaulas que capitalistas e anticapitalistas caminham para a ruína.
Crise climática: colapso do institucionalismo e um acordo para o futuro
Para a vitória da metanarrativa capitalista foi essencial a pulverização das narrativas, deixando a disputa do poder real fora do alcance e a enunciação de alternativas no campo das extravagâncias e de memórias de inocência. O pós-modernismo ajudou a privar os movimentos de massas de ferramentas contra-hegemónicas, abdicando também da ideia de derrubar o capitalismo para simplesmente sobreviver-lhe. As redes sociais estão a suplantar os média tradicionais como as maiores ferramentas de hegemonia, sendo usadas como a melhor ferramenta de mercado para disseminar a confusão, a barbárie e os corpos políticos mais reacionários. A violência do Estado intensifica-se para enfrentar quaisquer desafios ao capitalismo, em particular no Sul Global: a fachada democrática do sistema capitalista colapsa quando enfrenta as suas contradições crescentes, com os problemas sociais a tornarem-se problemas ambientais e vice-versa.
As instituições de poder foram construídas para amenizar a luta de classes pela força, para manter a ordem burguesa intacta e garantir o status quo, pelo que focar-se nelas como o objectivo principal para a disputa do poder hegemónico é um erro político de primeira ordem, em particular se se considerar o prazo otimista de termos uma década para travar a entrada em marcha de fenómenos climáticos de escala global que põe em causa a sobrevivência da civilização humana. A rigidez atual do modelo de partido político indica que em outro momento histórico este foi considerado adequado às condições materiais dessa fase de desenvolvimento do capitalismo, mas este modelo não é adequado à atual fase de capitalismo suicida, fóssil, globalizado, financeirizado e do mercado sombra. Este modelo de partido é particularmente inadequado para as novas tarefas: derrubar o sistema capitalista, criar uma nova forma de Estado não capitalista para travar o colapso do sistema climático e recuperar sistemas naturais degradados, planificar a economia para a satisfação das necessidades reais e cortar massivamente as emissões de gases com efeito de estufa. Estas tarefas são também incompatíveis com o dogma do crescimento económico permanente, pelo que o decrescimento planificado a partir de um Estado não-capitalista não pode ser uma miragem, mas um imperativo de sobrevivência coletiva. Esta revolução tem de responder às necessidades reais, abolindo a máquina de publicidade e propaganda que inventa novas necessidades para criar mais mais-valia e lucro à escala global. O decrescimento planificado e satisfazendo as necessidades reais não é possível dentro do capitalismo, pelo que é um exercício fútil teorizar ou formulá-lo sob essa premissa.
Atualmente só há dois partidos: o partido do capitalismo e o partido da sobrevivência. Mascaram-se de várias maneiras, com muitos nomes e sob a forma de vários partidos políticos, como grupos de media ou redes sociais, como exércitos, milícias ou movimentos sociais, mas quando a crescente crise orgânica do capitalismo (acompanhando ou suplantando a atual crise do neoliberalismo) se agrava, a disputa pelo futuro será determinada pelo desfecho da luta entre estes dois campos. O partido do capitalismo irá, como sempre, rearranjar as suas táticas na direção do fascismo, do oportunismo ou da revolução passiva, rearranjando os seus quadros e programas para reafirmar a sua dominação. Mas tanto o fascismo como a revolução passiva, as reformas, os arranjos cosméticos ou a contabilidade criativa são apenas ferramentas do colapso ambiental e social. O partido da sobrevivência não pode assumir a forma do partido tradicional, e se tarefas novas e claras estão a desenhar-se para a crise orgânica do capitalismo global, também novas formas de partido têm de ser desenvolvidas, porque a tarefa principal só pode ser derrubar o sistema. Uma revolução ecossocialista é necessária para derrubar o capitalismo, não por romantismo ou por uma visão mecânica da História, mas por ser uma necessidade assegurar a sobrevivência e a manutenção de pelo menos algumas das condições materiais que garantam a continuação das civilizações humanas. O Palácio de Inverno era e é só um símbolo, a verdadeira revolução acontece na combinação de crise orgânica, de ferramentas contra-hegemónicas e da organização de um partido para quem trabalha e para o povo, que hoje é o partido da sobrevivência.
Marcha das Mulheres Indígenas, Brasil. Foto Apib Comunicação/Flickr
O clima e a natureza são insensíveis a lisonja, a ofertas, adoração ou negociação. Uma metanarrativa para o momento que estamos a viver, para lidar com as alterações climáticas, dando novo significado à humanidade, é uma possibilidade e uma necessidade.
Há um corpo crítico social e político a desenvolver-se no calor das lutas climáticas, com dezenas de milhares de organizadoras políticas por todo o mundo. Puxar o travão de emergência do capitalismo fóssil é uma característica fundacional deste movimento. Possui além disso o apelo à rutura histórica e social e às reparações intergeracionais e regionais. A explosão do movimento pela justiça climática gerou uma imensa dinâmica de massas, mas este movimento ainda não possui uma estratégia revolucionária. O tempo tenderá a empurrá-lo para a revolução, com a degradação social e climática a manifestarem-se crescentemente face ao capitalismo do adiamento, da inação e do negacionismo reacionário e autoritário. Outros grupos também empurrarão o movimento na direção da impotência, das pequenas adaptações e do capitalismo “verde”, mas a indicação direta da necessidade de um corte de 50% das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030 empurra para um choque sistémico e para um caminho revolucionário, cortando com o capitalismo fóssil. Os movimentos de trabalhadores e anticapitalistas não se podem afastar mas têm sim de aproximar-se deste movimento, porque ele é atualmente a espinha dorsal do partido da sobrevivência.
O clima e a natureza são insensíveis a lisonja, a ofertas, adoração ou negociação. Uma metanarrativa para o momento que estamos a viver, para lidar com as alterações climáticas, dando novo significado à humanidade, é uma possibilidade e uma necessidade. O aparecimento de uma metanarrativa de justiça climática, um novo grande futuro para a humanidade, focando-se nas relações cooperativas dos humanos num clima em mutação, com uma natureza degradada e com outros humanos, em contraste direto com a metanarrativa atual de positivismo globalizado capitalista, é uma necessidade. A atual situação de iminente colapso social e económico, associado com um despertar humano para a realidade de que não há fuga de um clima ameaçador, é uma porta semi-aberta para um ímpeto educacional e uma reorganização social em favor da redistribuição do poder, pela procura do bem-estar coletivo e pela cooperação com base numa nova metanarrativa de justiça. Essa metanarrativa incluirá uma nova noção de prosperidade, respeitando os limites naturais e a distribuição justa de recursos. O bem-estar baseado na partilha sempre foi uma caraterística dos movimentos pela justiça social através da história, mas a necessidade de adicionar uma visão de equilíbrios naturais é nova. Estas caraterísticas são ambições que estiveram na frente de anteriores vagas de fundo históricas. São descendentes diretas do humanismo, do marxismo e da social-democracia, com ideias como a redistribuição socialista e a transição justa. O campo de batalha das alterações climáticas é um campo de batalha de mundivisões, com uma forte divisão entre as tradicionais direita e esquerda políticas, entre capital e social, entre mudança e status quo (apesar da força da metanarrativa capitalista, positivista e globalizada triunfante ter influenciado grandemente e empurrado as correntes históricas da esquerda para o gradualismo e para a normalização do capitalismo).
Walter Benjamin interpretou nos anos 20 do século passado a degradação ambiental como uma questão central no modo de produção capitalista e como uma rutura na relação entre a humanidade e a natureza. Sendo um crítico dos perigos colocados pelas ameaças do progresso e do desenvolvimento tecnológico organizados sob o capital, Benjamin concebeu uma revolução como uma interrupção de uma evolução histórica que levava à catástrofe, um travão de emergência. Ao rejeitar as narrativas hegemónicas do progresso e do percurso linear da História, Benjamin propunha uma alternativa radical ao desastre iminente do seu tempo: uma utopia revolucionária para abrir caminho para uma nova harmonia entre a humanidade e o meio ambiente. As alterações climáticas são e serão crescentemente um grande desestabilizador, um “multiplicador de ameaças” tal como são hoje identificadas por aparelhos de segurança de Estados por todo o mundo, já que forçarão pessoas e comunidades a mover-se, desestabilizando governos fracos, virando populações contra os poderes que forem incapazes ou que não queiram responder às suas necessidades crescentes.
Qualquer gatilho climático irá sempre queimar através das relações sociais a caminho de uma explosão. As contradições subjacentes nas relações sociais e produtivas serão exacerbadas pela crise climática, fazendo dela um acelerador das contradições sociais. O impacto da crise climática articula-se com o regime capitalista, acrescentando às suas iniquidades e produzindo uma força desestabilizadora em relação às mesmas, o que produz conflitos inevitáveis. A degradação da situação ligada à crise climática sob o capitalismo agravará a maneira como trabalhadores e populações experimentam choques climáticos e quando estes choques reduzirem a sua capacidade de produzir e de se reproduzirem, se a extração de mais-valia sobre o trabalho continuar ou acelerar, enviando cada vez mais recursos para o topo, a probabilidade de os de baixo se levantarem aumentará. O resultado de tais situações poderá ser uma revolução ou contra-revolução como sintoma dos efeitos das alterações climáticas. Com outra configuração, é possível um processo revolucionário para tratar os sintomas das alterações climáticas e as causas das mesmas. Este é o processo necessário para travar os piores efeitos da crise climática e garantir uma perspetiva de futuro para a civilização humana. Esta revolução terá muitos e fortes inimigos, tais como as forças hoje identificadas no poder que estão a bloquear quaisquer soluções para a crise climática, assim como muitos daqueles que vivem na alienação da metanarrativa capitalista.
Ou nos lançamos para as revoluções internacionais que permitam derrubar o capitalismo ou o terror capitalista autoritário combinar-se-á com um clima cruel para condenar-nos à escassez e à decomposição social sem precedentes. Ninguém escolheu viver isto, mas como tudo irá mudar, é uma época emocionante para se estar vivo, e num processo revolucionário em plena crise climática, nenhuma metanarrativa ou mundivisão ficará inalterada. Não há mais desculpas e não há mais tempo. Temos de lutar para ganhar e transformar esta na última crise orgânica do capitalismo, abrindo as portas para uma nova história para a Humanidade.
João Camargo é investigador em Alterações Climáticas. Artigo publicado na revista Esquerda, março de 2020.