Em entrevista ao Esquerda.net, o cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda pelo círculo eleitoral do Algarve fala sobre uma economia de turismo que dificulta a vida a quem trabalha, os interesses instalados na política algarvia e a importância da defesa de quem trabalha por turnos.
Legislativas 2025
No Algarve, “quem trabalha para alimentar o turismo não consegue ter casa”
Estivemos numa ação de campanha com pessoas que estão em risco de ver as suas casas demolidas. Isto é um exemplo de um Estado que só serve para atacar quem trabalha, e dificultar a vida das pessoas que não têm capacidade de comprar ou de alugar uma casa?
Sim, é muito impressionante. A própria Câmara diz que há, só no Concelho de Loulé, 700 famílias nesta situação. Isso significa que no Algarve estamos a falar de vários milhares de famílias, sem contabilizar todas as pessoas que têm necessidades de alojamento, que estão a viver em carros, que estão a viver em parques de campismo. E as mesmas forças políticas e instituições públicas que não se mobilizaram para construir habitação pública, que não querem regular o mercado de arrendamento, que não querem proibir a compra de habitações por não-residentes, só se mobilizam para demolir casas e pôr famílias na rua com argumentos sobre legalidade que no Algarve seriam engraçados se não fossem tão graves.
Porque é que dizes isso?
No Algarve não há nada que não se faça por não ser legal. Sobretudo se houver dinheiro por trás. Há empreendimentos turísticos em áreas protegidas, há campos de golfe em cima de dunas. No Algarve quem tem dinheiro pode fazer tudo. A lei nunca é um problema, só é um problema para quem tem salários baixos. E o Algarve tem o salário médio mais baixo de todo o país, incluindo regiões autónomas, Para essas pessoas, a lei é impiedosa, mesmo em violação de um direito constitucional, que é o direito de ter uma casa para viver.
Estamos a falar de um Estado que, em todos os níveis, está ao serviço de quem tem mais dinheiro?
Aqui em Loulé existe um grande consenso. O PS, o PSD e o Chega já exprimiram o seu apoio à demolição destas casas e a colocar estas famílias na rua. É um grande consenso político dos três partidos que têm representação parlamentar aqui no Algarve. Todos consideram que o grande problema urbanístico e de território aqui no Algarve são umas quantas casas construídas em zonas onde já há casas, casas que ainda por cima, na maior parte dos casos, nem sequer impermeabilizam os solos, portanto têm um impacto territorial nulo. Que já têm condições para serem espaços dignos para as pessoas viverem. São casas simples, são casas pequenas, mas são casas que para estas famílias chegam. São casas em que estas famílias podem viver numa região onde a habitação é incomportável para muitas das pessoas que aqui trabalham, que aqui pagam impostos e que aqui querem viver. E temos uma região que continua a ser feita mais para quem quer vir cá passar um fim de semana e tem uma casa vazia 90% do tempo, mas que não cuida das pessoas que inclusive tornam a indústria do turismo possível.
É um problema do modelo económico da região?
A grande ironia do Algarve é que é uma região que dá um enorme contributo à economia do nosso país, é a região mais virada para as exportações que nós temos, mas as pessoas que tornam essa indústria possível não têm sítio para viver. No verão, quando há mais trabalho, as casas não estão disponíveis, porque há contratos de arrendamento que só duram os meses da época baixa. E depois durante a época baixa já há mais casas, mas não há trabalho para as pessoas. Este modelo é um modelo que tem de ser combatido e é nisso que o Governo e as câmaras municipais deviam estar empenhadas e não em demolir casas onde vivem famílias, onde vivem crianças que não têm nenhuma alternativa.
É por isso que o Algarve é das regiões mais afetadas pela crise de habitação nacional?
Sim. Nós falamos de um problema nacional que tem uma expressão particular no Algarve. A economia do Algarve assenta em setores com salários muito baixos, e no que diz respeito ao turismo, também em setores que retiram casas do mercado de arrendamento para habitação. Ou seja, nós temos muita compra por não residentes no Algarve, temos muito alojamento local e não existem limites, mesmo nas áreas de enorme pressão urbanística. Há muitas casas vazias, muitas casas que não estão a servir para habitação, e todos estes fatores se conjugam para criar uma região onde muita gente que trabalha a tempo inteiro e muita gente que tem mais do que um emprego não consegue ganhar rendimento suficiente para poder pagar uma renda e muito menos para poder comprar uma casa. São essas pessoas que compõem este movimento e que estão nesta situação.
Uma economia de turismo também significa muito trabalho por turnos nos restaurantes, nos bares, nos hotéis, As propostas do Bloco nesse sentido também vêm responder às necessidades da população?
Nós aqui no Algarve temos dado muita atenção à questão dos trabalhadores por turnos no setor do turismo, mas também nos setores do comércio, sobretudo nos centros comerciais. É muito impressionante a recetividade que existe, até de pessoas que não trabalham por turnos mas que conhecem o que é a realidade do trabalho por turnos. O turismo é um setor violentíssimo desse ponto de vista, em que ainda por cima existe muita informalidade, existe muita violação da lei, existem pessoas a trabalhar em condições desumanas, Isso cria uma grande preocupação com a realidade do trabalho por turnos, que toca muita gente no Algarve e que tem muito pouca resposta política, sobretudo dos três partidos que têm eleito aqui pelo Algarve.
Como é que o Bloco de Esquerda vê o futuro da economia no Algarve? Onde é que se investe? Como é que se constrói uma alternativa a essa economia de turismo que tem todos os problemas que já falaste?
Uma das injustiças do Algarve é que apesar do contributo que dá para a economia nacional e das consequências que esse contributo específico tem para a região, do ponto de vista territorial, ambiental, social, económico, tem muito pouco retorno do poder central. Há um conjunto de investimentos infraestruturais que são sistematicamente anunciados nas campanhas e depois sistematicamente adiados sempre pelos mesmos partidos. Ou seja, o Algarve dá muito ao país e recebe muito pouco em troca. O Hospital Central do Algarve é prometido há não sei quantas campanhas eleitorais. Nas acessibilidades, o Bloco conseguiu a vitória do fim das portagens, mas o problema da mobilidade continua a ser um problema gravíssimo e há muito poucas redes de transportes coletivos. E todos estes problemas contribuem para que o Algarve tenha uma muito pouca capacidade para fixar, por exemplo, os jovens qualificados que saem da Universidade do Algarve. Muitos deles investem na sua formação, dão muitos anos à sua própria aprendizagem e formação e depois não encontram no Algarve a possibilidade de construir uma vida e isso é fundamental para mudar o padrão da economia do Algarve, inclusive o tipo de turismo que fazemos.
Em que sentido?
Nós precisamos de transformações no conjunto das atividades económicas aqui no Algarve e há muitos setores que têm muito potencial, por exemplo, ao nível das energias renováveis, Mas também precisamos de mudar a própria atividade turística, torná-la menos sazonal, torná-la menos turismo de sol e praia e mais turismo ambiental, turismo cultural, turismo gastronómico, onde o Algarve tem um potencial infinito e que são ofertas turísticas menos sazonais, não existem só 3 ou 4 meses por ano, podem existir durante todo o ano. Isso ajudaria a tornar o emprego menos sazonal no Algarve e até a aproveitar a capacidade instalada que existe do ponto de vista da oferta da hotelaria. E se assim fosse, talvez não fosse necessário ter tantas casas para habitação a servir para o turismo.