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Irlanda do Norte – “Chegará o Nosso Dia”

Na Irlanda, esperámos 100 anos por uma vitória desta importância, com o envolvimento popular que só esta teve. Depois das guerras civis, das prisões, das mortes, o povo irlandês decidiu não se deixar engaiolar. Artigo de Frederico Mira George.
Bandeira da Irlanda. Ilustração de Frederico Mira George. 2019
Bandeira da Irlanda. Ilustração de Frederico Mira George. 2019.

Por uma terra sem amos
Belfast, Irlanda do Norte
Campanha eleitoral para as eleições gerais, dois mil e vinte.

Nas televisões transmitem em «loop» campanhas britânicas de júbilo pela saída do Reino Unido da União Europeia. Nos cafés, nos jardins, sedes comunitárias, salões paroquiais, dezenas de reformados (muitos deles antigos combatentes republicanos durante os «troubles» dos anos 80 e 90 do século XX) falam, incrédulos e tristes, sobre o futuro da Irlanda do Norte: «¿Outra vez a Ilha dentro da Ilha, como Thatcher nos queria, prisioneiros entre fronteiras? — diz Sean S., velho activista republicano, socialista, enfermeiro, ex-comandante das unidades de emergência do IRA, 84 anos, refractário das incorporações britânicas durante a guerra das Malvinas.

Hoje, Sean, apesar da sua idade, garante a segurança do perímetro edificado da escola pública do primeiro ciclo do bairro onde vive. Desde 2018 que a escola voltou a ser alvo de ameaças e vandalismo das milícias unionistas, como sempre perante a indiferença da polícia. Todos os dias, Sean organiza uma escala de turnos composta por familiares, professores e vizinhos que desejam ajudar, para acompanhar a entrada e a saída das crianças, telefonar para a polícia escolar todas as manhãs para os «lembrar» que estão requisitados para garantir a segurança da escola (costumam chegar a meio da tarde, dão uma volta de carro à escola e nem param). Várias vezes por semana carros passam à frente da escola, exibindo bandeiras unionistas da Irlanda do Norte. Gritam, buzinam, as crianças assustam-se.

«Tudo isto tinha acalmado. O Tratado de Belfast, a supressão das fronteiras, o corredor viário e ferroviário para Dublin e a pressão da União Europeia, conseguiu acalmar a violência, as provocações, as ameaças, os espancamentos, os assaltos às igrejas com párocos republicanos. Continuámos sempre a nossa luta pela República Irlandesa (como proclamada em 1919 e esmagada pelas forças repressivas britânicas e mercenários unionistas).

No meu caso, além da luta por uma Irlanda una, livre, soberana, republicana, laica, também socialista (no verdadeiro sentido do termo). E continuamos a lutar por um referendo que permita os norte-irlandeses escolher a integração na República da Irlanda (que não é o mesmo do que a República Irlandesa que foi proclamada legitimamente em todas as capitais do norte ao sul do país em 1919), ou a continuidade no Reino Unido. O medo que o nosso SIM à integração na RdI ganhe de forma esmagadora, tem impedido qualquer negociação para a realização do referendo.

Não temos o dinheiro nem os interesses estabelecidos dos Escoceses. E contudo falamos num território talvez menor do que a Galiza no Estado Espanhol. Mas tínhamos conquistado a paz possível, a nossa luta pôde finalmente fixar-se no plano político. E fizemos muito, sem nunca tomarmos posse na Casa dos Comuns que não reconhecemos, e sem integrar qualquer instituição que implique o reconhecimento de Isabel Windsor como soberana da Irlanda.

Trabalhámos sempre com base nas estruturas do poder local, e dissemos que governaríamos se um dia ganhássemos as eleições legislativas, mas jamais faríamos alianças com unionistas. O Brexit veio pôr tudo em causa e coisas que julgávamos ultrapassadas, estão a voltar. A Violência está a voltar. Até a censura britânica aos jornais republicanos irlandeses. A extrema-direita encontrou um nicho para se revelar, é claro que os mercenários unionistas ganharam aliados na extrema-direita. Estamos preparados para esse combate, mais uma vez, se for necessário, mas é o que temos de evitar a todo o custo.

A Irlanda do Norte tem de conquistar o seu direito à auto-determinação pela via política. Mas é preciso entender que o Brexit é um retrocesso poderoso. Até porque a estratégia que está a ser usada pelos britânicos é a de nos isolarem perante a República da Irlanda. A isso nós responderemos sempre que não existem duas irlandas. Independentemente dos estudos formais da administração territorial, somos só uma Irlanda. A nossa bandeira é a mesma, a nossa cultura, a nossa história e o futuro que nós queremos poder decidir com a soberania que a violência britânica, os interesses capitalistas, o desvanecer da solidariedade internacionalista (vejam o caso da Catalunha e do País Basco), jamais conseguiram quebrar».

Dublin, República da Irlanda
(Dia das eleições gerais 2020 no Reino Unido)

Com a vitória do «SIM ao Brexit», os contactos..., digamos,... oficiosos, entre os governos do Partido Conservador de Cameron e Teresa May, e os governos de direita de Edna Kenny e Leo Varadkar, eleitos pelo Fine Gael, tinham já a intenção de criar um ambiente de hostilidade entre os Irlandeses do Sul perante a possibilidade uma eventual reunificação de Toda a Irlanda.

Na prática, semear a ideia que a unidade territorial e cultural da Irlanda, ficaria manchada com o abraço aos compatriotas do Norte sob jugo britânico. Situação a que, por exemplo, Corbyn não foi especialmente sensível até à intervenção do Presidente Michael Higgins com a sua declaração de apoio incondicional à «criação de condições políticas» para a integralidade da República da Irlanda.

É importante dizer que até 1968 Higgins foi activista do Fianna Fianna Fáil, partido que sendo de direita ainda hoje é defensor da unidade irlandesa. Mais tarde, guinando à esquerda, integra o Labour até 2011, momento em que pede a suspensão da sua condição de militante trabalhista em consequência da eleição para a Presidência da República. Mas se Higgins é um partidário convicto da unidade republicana irlandesa, é certamente um adversário de qualquer activismo anti-capitalista, socialista, internacionalista. Higgins não é um independentista, é um nacionalista; na prática, isso significa que apesar das suas posições contra a hostilização do Sul Irlandeses face aos Norte Irlandeses, jamais apoiaria um processo de integração por via referendária, por exemplo (desejaria sempre uma negociação com contrapartidas com o Reino Unido e com a União Europeia).
No processo «Brexit», quer a presidência da República da Irlanda, quer o governo de Varadkar, passam a um regime de salvação da pele dentro da União Europeia e apoiantes sub-reptícios da direita norte-irlandesa de inspiração nacionalista.
Com a direita unionista, violenta e mercenária (ao lado de Boris Johnson até ao fim na Casa dos Comuns), por um lado e com a direita nacionalista num jogo de interesses liberais, essencialmente preocupados com a garantia da continuidade da especulação capitalista no terreno europeu, aspirando a um estatuto de intermediários entre o Reino Unido e a União Europeia, os irlandeses do Norte estão mais isolados do que alguma vez poderiam esperar. Os irlandeses do Sul, cativos de uma chantagem permanente, como se nenhuma alternativa possível existisse à obediência diária às política da direita de um Partido Conservador sem escrúpulos de pressão: Levantam-se os papões da Grécia, de Portugal, da Espanha, e um Partido Trabalhista enrolado nos novelos de Corbyn.
E é este o contexto em que a esquerda radical norte-irlandesa chega a estas eleições gerais. As alternativas não eram muitas: ou se deixava diluir em reformismos de pequena salvaguarda, cada vez menos direitos, hipotecados a acordos que significariam um retrocesso de gerações com o perigo real de um regresso à hostilidade bélica de uma nova guerra civil que ninguém entenderia ou entrava nesta campanha para vencer as eleições, convocar os norte-irlandeses a virar o tabuleiro das relações de força, a abrir rupturas com o poder britânico, fracturar as estruturas de corrupção política que tem liderado os governos da Irlanda do Norte.

Esta vitória teria de ser assumida pelo Sein Féin, reactivando as redes de trabalho local que são a mais valiosa arma do partido, estar na rua e na rua colocar o rumo da campanha, criando estruturas de trabalho e de intervenção política que permaneçam depois das eleições. Chamar velhos combatentes independentistas, jovens activistas de movimentos sociais que já poderiam desenvolver um trabalho de intervenção pública no contexto de paz conquistada à custa de tanta luta. Trabalhar para fora das sedes do partido, trabalhar para dentro de uma radicalidade renovada. Sem moderações de conveniência, sem mitigar propósitos.

Assim vimos acontecer a convenção eleitoral aberta a todos e todas os que nela quisessem participar, até à distância, nas transmissões em directo de cada plenário pela internet, por onde também se podia participar. Urgência Climática, Resposta à Extrema-Direita, Radicalização da intervenção LGBT+, Marxismo, Independência versus Nacionalismo, Internacionalismo, Anti-fascismo, Criação de Comissões de Trabalho com autonomia funcional: sobre todos estes temas se realizaram plenários e discussões aprofundadas. Também no Cairde, a estrutura internacional do Sinn Féin, na maioria dos plenários estavam presentes jovens que ainda não poderiam votar mas que intensificaram um movimento que implicava a vitória eleitoral, mas que não se podia esgotar na eleição de Mary Lou MacDonalds como presidente do governo norte-irlandês. Durante meses, num trabalho de ligação directa, «bolchevique» na forma de agir, discutir e cooptar, recuperou uma dinâmica que Sinn Féin perdera há umas décadas, a favor da paz, de uma Irlanda Unida, do Socialismo, da descentralização política.

Hoje é o dia.


Em Dublin, na República da Irlanda, assistimos às televisões francesas que estão a fazer a cobertura do acto eleitoral na Irlanda do Norte a censura britânica vai insinuando uma derrota do Sinn Féin. Estamos na mais antiga sede do partido, no muro da fachada um grande mural com o rosto de Robert Gerald Sands, nosso Camarada Bobby Sands, que morreu em greve de fome na sinistra Her Magesty Prison Maze, com 27 anos.
Na rua, marcham em solidariedade com o connosco, um grupo de homens e mulheres de idade avançada, empunhando bandeiras verdes com o lírio da independência, bandeira da proclamada República Irlandesa em 19, derrubada pelas forças militares britânicas em 21. Param junto à sede e cantam o hino do IRB, Irish Republican Brotherwood.
À meia noite a France Press anuncia a vitória do «do partido de esquerda radical Sinn Féin» e acrescentam: «Aquele que foi o braço político do grupo armado IRA». Sabemos que os comentários são depreciativos. Pena não lhes podermos responder de imediato: “Não é o Grupo Armado IRA, É o Exército Republicano Irlandês»
Esperámos 100 anos por uma vitória desta importância, com o envolvimento popular que só esta teve. Depois das guerras civis, das prisões, das mortes, o povo irlandês decidiu não se deixar engaiolar. Mas as revoluções não se fazem com eleições; este pode ser um momento fundador, radical, da história da Irlanda se o soubermos continuar e «aprender, aprender, aprender, sempre».

Frederico Mira George é ativista do Sinn Féin (Belfast) e do Cairde - Rede de apoio ao Sinn Féin em Portugal. Artigo publicado nas redes sociais.

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