Imagine-se uma Escola Básica. Sendo um lugar fantástico, o exercício permite grande liberdade. Oito horas da noite, mais uma reunião de professores directores de turma, os presentes são informados que, terminadas as aulas, devem estar atentos à sua caixa de correio. Até 28 de Dezembro irão receber um email da Direcção da Escola com informação, de seguida, devem proceder ao envio das avaliações aos Encarregados de Educação.
Um dos presentes pede a palavra. Expõe a sua peculiar situação: de 25 de Dezembro a 2 de Janeiro estará num local sem rede, impossibilitado de aceder ao email. A coordenadora da reunião propõe-se levar a questão à direcção. Uma professora esclarecida apressa-se a clarificar, não há férias mas apenas interrupção lectiva, as aulas terminam e os professores continuam ao serviço da escola. Uma outra professora irritada sentencia, isso é um problema pessoal a resolver pelo colega. Quem pediu a palavra apresenta, encarecidamente, as suas desculpas pela interrupção. A reunião prossegue.
Há professores tontos. Afinal, haverá algum lugar neste país sem rede? Impertinente! Há gente que melhor seria estar calada, fechar a boca, remeter-se ao silêncio, desligar a ficha da corrente. Façam-lhe o favor. E ele agradece.
Todos sabem, antes de Agosto não há férias, apenas interrupções lectivas, findas as aulas, o trabalho continua. Sempre. E prolonga-se pelos feriados até aos fins-de-semana. Em boa verdade, não há um tempo de trabalho estipulado e circunscrito. Aliás, a definição da componente não lectiva do horário permanece objecto de contenda entre ministério e sindicatos.
Seria interessante uma análise da relação laboral dos professores. Possivelmente, haverá poucas relações tão… desreguladas. Não é de agora, sempre assim foi. A Escola Pública sempre funcionou com base num “código consensual” não escrito que os professores foram gerindo e permitia o funcionamento equilibrado da instituição. Por exemplo, a seguir a um período intenso e desgastante como são as avaliações do 1º período estava implícita uma pausa para descanso durante o período do Natal/Ano Novo. Longe de ser vista como uma benesse, era entendida como um momento necessário ao regresso revigorado em Janeiro. Ao pedir a palavra para expor a sua peculiar impossibilidade de aceder ao email, o professor impertinente está, simplesmente, a dar conta da sua surpresa. O “código consensual” não escrito foi quebrado. A regra foi alterada.
Talvez ele não tenha sido avisado. Palerma! A imposição de Directores na Escola Pública mudou tudo. Detentores de um cargo unipessoal autoritário e não escrutinável, têm sabido fazer da burocracia uma ferramenta eficaz na proletarização dos docentes, diga-se, com apreciável dissimulação. Os professores deixaram de ter qualquer capacidade de intervenção nas Escolas, de forma contínua e sistemática vão sendo subjugados por uma burocracia esmagadora e, sobretudo, por um quotidiano disruptivo. A deslocação do trabalho para o espaço doméstico, paralela à pandemia, veio acelerar o processo de desregulação.
Nos últimos anos, todas as revindicações laborais apresentadas à tutela resultaram em derrotas. Entre os professores, Maria de Lurdes Rodrigues é uma figura marcante. Personifica, na perfeição, a figura do carrasco. Depois dela foi o que temos visto, uma contínua desqualificação, imparável! Há quem se queixe da passividade dos sindicatos ou da negligência dos partidos políticos. Com razão. Todavia, a acção dos agentes externos não explica tudo. A divisão na carreira só foi possível porque foram muitos os profissionais interessados. Agora, parecem continuar apostados numa luta fratricida. Abundam os masoquistas! Talvez por isso, de quando em vez, lá fazem o seu queixume e ficam satisfeitos. Equacionar uma forma de luta consequente está fora de questão, não se podem prejudicar os alunos, as famílias ou a comunidade. Estão atados de pés, mãos e cabeça.
Seja como for, a situação laboral está resolvida. Nem há contestação. Os professores serão sempre bons cumpridores de ordens. O palerma do impertinente ainda não o percebeu. Nada a obstar… a questão é que a resolução se fez à conta de uma inegável degradação da Escola Pública. Essa é a questão fulcral. Quando temos professores resignados – não importa se por oportunismo ou sobrevivência…- ao cumprimento de tarefas burocráticas insanas, sem tempo devido para descansar e, muito menos, para ler ou reflectir, como podem eles leccionar? Podem. Fazendo da aula um espaço formatado e repetitivo. Paulatinamente, a Escola pública converteu-se num espaço maquinal, falho de espírito crítico, avesso à reflexão. Incapaz de ensinar a pensar. Importa manter o armazém a funcionar. E, sobretudo, afastar a consciência da “banalidade do mal”. Resta saber se esta Escola Pública nos serve. Ou, melhor, a quem serve.
Texto de Luís Miguel Pereira