A polémica alteração à lei dos solos, que permite valorizar solos rústicos convertidos em urbanos por simples decisão camarária, colocou sob os holofotes mediáticos a participação de governantes em sociedades cujo objeto inclui a compra e venda de imóveis. Os responsáveis políticos pela lei foram os primeiros visados, mas tiveram destinos diferentes: o secretário de Estado Hernâni Dias teve de abandonar o Governo por ter constituído duas empresas imobiliárias após ter ido para o Governo e o ministro Castro Almeida, após criticar a “imprudência” do seu secretário de Estado, acabou por vender a sua quota na empresa do mesmo ramo que também detinha há vários anos, para assim poder defender mais à vontade a alteração que efetuou à lei dos solos. Castro Almeida terá agora de se explicar aos deputados, após o requerimento do Bloco para a audição do ministro ter sido aprovado na Comissão de Poder Local e Coesão Territorial.
Caso da imobiliária do ministro mostra que a lei dos solos “está ferida de morte”
Posição diferente de Castro Almeida assumiu a ministra da Justiça, Rita Júdice, que veio a público afirmar que “não tem qualquer intenção de se desfazer do seu património pessoal, construído com o seu trabalho e o dos seus familiares”, nomeadamente as quatro sociedades com negócios imobiliários de que é sócia.
Secretária de Estado da Habitação geriu imobiliária durante cinco anos e vendeu quota em 2019
Mas o apetite pelos negócios imobiliários no executivo de Luís Montenegro não se esgota nestes governantes e até a responsável pela pasta da Habitação no Ministério de Miguel Pinto Luz foi sócia de uma empresa que se dedica à compra e venda de bens imobiliários. Trata-se da Promobuilding - Serviços Imobiliários Lda. A empresa onde Patrícia Gonçalves da Costa foi gerente entre 2010 e 2015 e sócia minoritária até 2019 detém ainda 50% da Urbanquestion, Lda, outra empresa criada em 2023 com o mesmo objeto que inclui a compra e venda de imóveis, construção de empreendimentos próprios para comercialização e promoção de estudos de urbanização.
Em comunicado enviado às redações, Patrícia Gonçalves da Costa diz que vendeu a sua quota na Promobuilding há mais de cinco anos, embora essa transmissão não conste do portal do Ministério da Justiça para os atos societários. "Trabalho todos os dias com vista ao bem comum, colocando o meu conhecimento e experiência ao serviço da defesa do interesse público. Faço-o sempre com respeito pelas minhas convicções e pela minha condição de secretária de Estado, de arquiteta, de mulher e de mãe. Faço-o com a humildade de quem serve uma causa maior, mas sempre com a honra de quem nada tem a esconder", refere a nota.
Da Cultura ao Trabalho, passando pela Defesa e Presidência do Conselho de Ministros, vários Ministérios empregam atuais e antigos sócios de empresas do setor imobiliário
Prosseguindo a pesquisa pelos serviços que dão acesso aos dados públicos sobre as sociedades comerciais, neste caso do ramo imobiliário, encontramos os dois secretários de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, sob tutela de Leitão Amaro. O secretário de Estado Paulo Marcelo é sócio da Lidemar, Sociedade de Administração de Imóveis Lda., que tem por objeto a administração, valorização, compra, venda e troca de bens imóveis. E o secretário de Estado adjunto Rui Freitas acumula participações em várias empresas, como a Filipa Guimarães - Arquitetura e Reabilitação Lda ou a Zafgest - Imobiliária, Unipessoal Lda. Esta empresa não tem atividade declarada desde 2022 mas tem participações em empresas dedicadas à compra e venda de imóveis que ainda estão ativas, como a Relevant Shadows ou a Rota Própria, Hotelaria e Imobiliária Lda, das quais Rui Freitas abandonou a gerência quando entrou no Governo.
No Ministério da Defesa, o antigo deputado do CDS Álvaro Castelo Branco, agora secretário de Estado Adjunto, é sócio da Rent 4 You - Sociedade Imobiliária, Lda. Desta sociedade também faz parte o antigo deputado do PSD e atual membro do Conselho de Administração do AICEP Paulo Rios de Oliveira.
Conflito de interesses
Nova lei dos solos teve “ajuda” de advogado com interesses imobiliários
Passando ao Ministério da Economia, onde os interesses imobiliários estão aparentemente ausentes da carteira de investimentos dos governantes, o lóbi está presente através de João Gomes Ferreira, o secretário de Estado da Economia que foi vogal suplente da Confederação Portuguesa da Construção e Imobiliário. Em comunicado divulgado na quarta-feira, o governante diz que essa presença decorria exclusivamente do seu cargo na direção executiva da APCOR (Associação Portuguesa de Cortiça), funções que cessaram antes da sua tomada de posse como membro do Governo.
No Ministério do Trabalho, já é público que a própria ministra Maria do Rosário Palma Ramalho inclui a gestão de património imobiliário na sua empresa Palma Ramalho, Lda. Mas não é a única: o secretário de Estado do Trabalho Adriano Rafael Moreira também inclui no objeto da sua empresa de consultoria a “gestão de património, podendo para o efeito, alienar, adquirir e arrendar imóveis e proceder à revenda dos adquiridos”. A empresa chama-se agora Orbis Terra - Consultoria e Gestão Lda, um nome mais discreto do que o anterior no que diz respeito à ligação ao imobiliário. Antes a empresa de que o governante é sócio único chamava-se Lousaconstroi - Investimentos Imobiliários Lda.
O historial de atividades empresariais do ramo imobiliário estende-se ao Ministério da Cultura. O recém-nomeado secretário de Estado Alberto Santos deteve 90% da sociedade Villa Gallaecia - Mediação Imobiliária, Lda, dedicada à mediação e angariação imobiliária, mas também à avaliação de imóveis e consultadorias várias. E a própria ministra Dalila Rodrigues teve quota numa empresa da família: trata-se da Rita Aguiar Rodrigues Arquitectos Lda, que como o nome indica presta serviços de arquitetura, mas também inclui no seu objeto a construção e remodelação de edifícios e a compra, venda e revenda de bens imóveis. Em comunicado divulgado na noite de terça-feira, tanto a ministra como o secretário de Estado confirmaram que detiveram aquelas quotas em sociedades, mas que as cederam antes de tomarem posse no Governo.
E no Parlamento? Aguiar-Branco dá o exemplo
No Parlamento, também não faltam deputados com empresas no ramo imobiliário. Além dos quatro parlamentares do Chega, o partido que viabilizou e tem adiado a votação que pode chumbar a lei dos solos, encontram-se muitos exemplos nas bancadas do PS e sobretudo do PSD, como o Esquerda.net dará conta esta quarta-feira.
A dar o exemplo de empreendedorismo imobiliário num país onde o preço das casas e das rendas é incomportável para quem vive com salários nacionais está o próprio presidente da Assembleia da República. José Pedro Aguiar Branco é sócio da Portocovi - Gestão e Administração de Bens Lda, que tem por objeto a compra e venda de bens móveis e imóveis, arrendamento, gestão e administração de bens próprios ou alheios e prestação de serviços.
Confrontado com a divulgação pública sobre a sua empresa, Aguiar-Branco respondeu aos jornalistas queixando-se de “voyeurismo” sobre os titulares de cargos políticos, onde “tudo é escarrapachado: o seu património, a sua situação do ponto de vista financeiro, tudo o que tem a ver com um acervo particular, ainda que não exista alguma suspeita”.
“Desta forma, pessoas de bem não estão disponíveis para participar” na vida política, acrescentou Aguiar-Branco.
Notícia atualizada: às 20h com o comunicado da Secretária de Estado da Habitação, onde afirma ter vendido a sua quota da empresa Promobuilding em 2019; às 23h40 com o comunicado da ministra e do secretário de Estado da Cultura a informar que cederam as respetivas quotas nas empresas com objeto imobiliário antes de tomarem posse no Governo; e às 12h40 de dia 26/2 com o comunicado do sec. Estado da Economia a explicar a sua posição enquanto vogal suplente da Confederação Portuguesa da Construção e Imobiliário, a qual cessou com a entrada no Governo.