A fundação da LCI, há cinquenta anos

19 de dezembro 2023 - 14:35

Fundada em dezembro de 1973, a Liga Comunista Internacionalista fez parte de um movimento mais vasto de transformação da esquerda e trouxe novas energias, acrescentou reflexão estratégica e foi uma das porta-vozes, se não a principal, da vaga do Maio de 68 e da sua rejeição do estalinismo e do campismo. Por Francisco Louçã.

PARTILHAR
Comício da LCI
Comício da LCI no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa (1976)

Este artigo pode também ser ouvido no Alta Voz, o podcast de leitura de artigos longos do Esquerda.net. Para isso basta carregar nesta ligação.

No fim de semana de 15 e 16 de dezembro de 1973 juntaram-se em Coimbra, na casa de um militante, Vítor Fernandes, os representantes de três organizações regionais dos Grupos de Acção Comunista para prepararem a conferência de fundação de uma nova organização revolucionária. No fim de semana seguinte, dias 22 e 23, essa conferência decorreu em Peniche, na casa de outro militante, Manuel Cavaco. Estiveram presentes, pela organização do Porto, Francisco Sardo (entretanto falecido) e José Ferreira dos Santos; pela de Lisboa, João Cabral Fernandes e João Alcântara; pela de Coimbra, Carlos Queiróz. Participaram ainda Manuel Faustino, militante em Lisboa e membro do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, e dois representantes da IVª Internacional, Paco Robs e Michael Lowy. Os GAC já tinham contacto com a Internacional, através quer de viagens de militantes portugueses a Paris, quer da vinda a Lisboa de um dirigente da LCR do Estado Espanhol, o catalão Joan Font, uns meses antes daquela conferência.

capa da ata da reunião fundadora da LCIFerreira dos Santos foi encarregue de escrever uma ata, de que se reproduz (ao lado) a primeira página, e que descreve detalhadamente os debates ocorridos. Foi aprovado por unanimidade um texto sobre a situação económica e política naqueles que seriam os últimos meses da ditadura; escrito por um militante do Porto, Manuel Resende (também já falecido). Nas outras questões tratadas na conferência, nomeadamente sobre como organizar a luta anti-colonial e como definir os movimentos de libertação e a relação dos revolucionários da metrópole com a sua luta, diferenças de opinião levaram à demarcação de duas tendências, que representavam as organizações de Lisboa e do Porto. Com um ponto de vista próprio, a de Coimbra votou com a do Porto, o que deu a maioria na direção eleita a Francisco Sardo. O Iiº Congresso só decorreu em agosto de 1975, tendo havido então uma mudança de direção.

Os GAC já tinham em 1973 um pequeno aparelho clandestino e distribuíam vários órgãos de imprensa (Luta Proletária, Acção Comunista, Toupeira Vermelha); depois da fundação da LCI, multiplicaram a intervenção com vários panfletos sobre lutas sociais (por exemplo sobre a greve na Marinha Grande e a tentativa de golpe spinolista a partir das Caldas da Rainha). Sendo um quadro reduzido de militantes com estritas regras de clandestinidade (nenhuma das detenções em distribuições ou na sequência de manifestações de rua permitiu à Pide conhecer a estrutura da organização), a LCI mobilizava círculos alargados de simpatizantes, que vieram a ser integrados rapidamente na nova organização. Foi o meu caso, passando a fazer parte de uma célula estudantil em fevereiro de 1974. Depois do 25 de Abril, a LCI cresceu tanto pela incorporação desses ativistas quanto pela fusão com a União Operária Revolucionária, uma organização com implantação em Braga e no Porto e que resultava de uma dissidência precoce dos GAC, assim sanada.

cartaz primeiro comício da LCI
Cartaz a anunciar o primeiro comício da LCI, em junho de 1974, em Almada.

Olhando para trás, não há dúvida de que, limitada como era a sua implantação, a LCI fez parte de um movimento mais vasto de transformação da esquerda e trouxe novas energias, acrescentou reflexão estratégica e foi uma das porta-vozes, se não a principal, da vaga do Maio de 68 e da sua rejeição do estalinismo e do campismo. A esperança na luta revolucionária mundial era então percebida nesse movimento de radicalização de jovens e de movimentos populares na Europa, mas também nos países de leste (a invasão da Checoslováquia foi em agosto de 1968), ou em África e no que então se chamou o Terceiro Mundo (a luta pela independência nacional das colónias portuguesas, Che Guevara na Bolívia, o Chile massacrado por Pinochet em 1973), assim como em novas ou renovadas dimensões políticas, como o feminismo. A LCI fez dessa esperança o seu programa.

cartaz da LCI

O que se seguiu importa menos para esta evocação. Houve o PREC e o 25 de novembro, houve um longo período de recuo e desalento, foi criado o PSR em 1979, na década seguinte virou-se para uma política unitária que fez do jornal Combate um exemplo de criatividade, juntando personalidades independentes que marcaram o pensamento político ou a atividade cultural (João Martins Pereira, Eduarda Dionísio, João Mesquita, Jorge de Silva Melo, todos já desaparecidos) e, em 1999, deu lugar ao Bloco de Esquerda. São cinquenta anos de atividade militante e de fidelidade à raiz, que por isso lembram com ternura o entusiasmo, a verdade, o empenho e as ilusões daqueles e daquelas que se juntaram para criar a LCI.