Em 2019 a Comissão Europeia apresentou como um dos alicerces da política europeia o Green New Deal. O objetivo central era reduzir pelo menos em 55% as emissões de carbono até 2030 e alcançar a neutralidade climática até 2050. Para concretizar este plano, apresentou no verão passado o pacote legislativo Fit-for-55 (ou em português, “Preparados para os 55”).
O reforço da aposta nos mercados de carbono, que têm garantido lucros especulativos aos maiores poluidores, e a presença nada discreta de elementos com ligações à indústria dos combustíveis fósseis no aparelho de Bruxelas e dentro da própria Comissão, não fazem antever bons resultados desta política e muito menos alcançar o objetivo pretendido, já de si insuficiente para atingir a meta de limitar o aumento da temperatura média a 1,5°C até ao fim do século. Por outro lado, como alertam ecossocialistas como Daniel Tanuro, o plano traz “uma acentuação dos mecanismos coloniais de dominação, a mercantilização da natureza e as políticas neoliberais em detrimento das classes trabalhadoras”.
O Fit for 55 inclui 13 propostas legislativas, sendo 8 uma revisão de atos legislativos já existentes e 5 novas iniciativas. São variadas e incluem regulamentos ligados às energias renováveis, ao uso do solo, à eficiência energética, etc. Pelo seu impacto económico e social, olharemos para três pontos chave.
1. Diretiva da Tributação da Energia
O que é?
A diretiva atual estabelece as taxas mínimas de imposto que os países da UE têm de aplicar aos diferentes produtos energéticos. As taxas mínimas variam em função do volume (em litros). A proposta apresentada pela Comissão Europeia tem um propósito essencial: alterar a diretiva e passar a diferenciar a tributação da energia não em função do seu volume, mas sim em função da sua origem. O que isto significa é que os países passariam a aplicar taxas de imposto mais elevadas à energia proveniente de combustíveis fósseis como o petróleo ou o carvão, e taxas mais baixas a eletricidade produzida a partir de fontes renováveis.
Qual é o objetivo?
O objetivo é alinhar a política fiscal com os objetivos climáticos. Hoje em dia, a tributação baseada no volume não garante uma penalização das fontes de energia mais poluentes e prejudiciais para o ambiente – os combustíveis fósseis. A própria Comissão reconhece que “a diretiva não promove adequadamente a redução das emissões de gases com efeito de estufa, a eficiência energética e a adoção da eletricidade e dos combustíveis alternativos”. Ao alterar a diretiva, pretende-se emendar esta situação e eliminar a vasta gama de isenções e benefícios fiscais concedidos à indústria fóssil.
Em que detalhes é que pode estar o diabo?
Os principais problemas desta proposta estão nas isenções que a diretiva continua a permitir e nas que quer eliminar.
Por um lado, a Comissão quer que os voos de carga dentro da União Europeia continuem a estar isentos de impostos, em vez de aproveitar esta proposta para promover o recurso a meios de transporte mais sustentáveis, como a ferrovia. Por outro, defende isenções ou reduções de impostos para as indústrias que têm uma utilização intensiva de energia – precisamente aquelas onde o esforço de transição para fontes renováveis é mais necessário.
Em sentido contrário, a Comissão quer eliminar progressivamente a possibilidade de os países isentarem de impostos as famílias mais vulneráveis. A transição energética não pode ser feita impondo os custos aos mais pobres. Isto é ainda mais relevante num país como Portugal, com elevados índices de pobreza energética.
2. Comércio Europeu de Licenças de Emissão
Como funciona?
É emitido um número limitado de licenças de emissão de Gases com Efeito de Estufa (uma espécie de “permissões para poluir”), que são distribuídas às empresas através de leilão ou atribuição. Se uma empresa tiver um excedente poderá reservar ou vender licenças. O preço das licenças, e assim da tonelada de carbono, depende destas trocas. A ideia é que o número máximo de licenças emitidas vá diminuindo ao longo do tempo para que seja progressivamente mais caro poluir, passando a compensar investir em formas de produção verdes. Atualmente os setores abrangidos são a produção de eletricidade e calor, os setores industriais com utilização intensiva de energia e a aviação no espaço europeu.
Qual é o principal problema?
Para evitar o que se chama a “fuga de carbono”, isto é, que as empresas se desloquem para países com uma legislação climática menos pesada, uma parte substancial das licenças de carbono é atribuída gratuitamente. Em 2019, 43% das licenças em circulação tinham sido atribuídas gratuitamente, o que equivalia a um valor de mercado nesse ano de 17,8 mil milhões de euros. O problema é triplo: compromete a eficácia na redução de emissões, reduz as receitas dos Estados-Membros e promove lucros extraordinários às empresas que delas usufruem, tornando o sistema socialmente injusto. Entre 2008 e 2019, a indústria intensiva em energia gerou mais de 50 mil milhões de euros de lucros extraordinários através destas licenças. Nesse período, em Portugal, os lucros extraordinários deste tipo ascenderam a 975 milhões de euros. As empresas que lucraram mais foram a Cimpor (315 milhões de euros), a Petrogal (236 milhões de euros) e a Secil (102 milhões de euros).
Quais são as principais revisões?
A Comissão propõe uma revisão em três frentes. Primeiro, aumenta a chamada Reserva de Estabilização do Mercado para absorver o excedente de licenças em circulação e reduz o número máximo de licenças emitidas anualmente. As duas medidas têm o propósito de garantir que não há quebras no preço de carbono e um aumento deste.
Segundo, incluí o transporte marítimo no mercado de carbono e cria o Regime de Compensação e Redução das Emissões de Carbono da Aviação Internacional (CORSIA) para aplicar aos voos extra-europeus.
Por fim, propõe a criação separada de um segundo sistema de licenças de emissão aos transportes rodoviários e ao setor dos edifícios.
Contudo, fica por fazer a revisão mais importante: a eliminação imediata da atribuição gratuita de licenças de emissão de carbono. Para o setor da aviação interna, que usufrui da maior quantidade e na qual as emissões se agravaram, a atribuição gratuita será reduzida progressivamente até ser nula em 2026. Para o resto dos setores, este tipo de licenças será mantido até, pelo menos, 2030.
3. Fundo Social Climático
Porque foi criado?
A Comissão justificou a criação de um segundo mercado de carbono para os setores rodoviário e da construção civil por em conjunto serem responsáveis por cerca de metade das emissões de carbono europeias. Sublinhou que as licenças seriam aplicadas aos fornecedores de combustíveis a montante e não aos consumidores finais. No entanto, face às críticas de que estes custos seriam suportados em última análise pelas famílias com o aumento generalizado da energia, anunciou depois a criação do Fundo Social Climático.
Como funciona?
Cada Estado-Membro apresenta um Plano Social Climático em que detalha as várias medidas que atenuem o impacto social deste alargamento - por exemplo, apoio direto ao rendimento das famílias, investimentos para melhorar a eficiência energética dos edifícios, investimentos de melhoria da rede pública de transportes, etc.
25% das receitas que cada Estado-Membro auferir das licenças atribuídas no CELE 2 serão convertidas em recursos próprios do orçamento comum da União Europeia. Mediante avaliação e aprovação da Comissão dos respetivos planos nacionais, serão desembolsados os valores correspondentes a cada país. Para além deste valor, a Comissão adverte cada país a reverter pelo menos 50% das suas receitas para complementar o Fundo.
O orçamento do Fundo é suficiente?
O Fundo funciona no período de 2025-2032 e ascenderá a 72,3 mil milhões de euros, consoante o preço corrente do carbono. No entanto, a Comissão estima que são necessários 350 mil milhões de euros anuais até 2030 para atingir as novas metas climáticas, sendo 130 mil milhões de euros para o setor dos transportes e 110 mil milhões de euros para edifícios. Mais, avança que anualmente mais de 34 milhões de pessoas são afetadas por pobreza energética na UE.
Para além disso, o método de cálculo utilizado pela Comissão para a distribuição do financiamento entre os Estados-Membros não consegue captar com justiça o tipo de pobreza energética vivida. Por exemplo, utiliza como fatores de ponderação a população em zona rural e a população com faturas em atraso. No caso português, grande parte da população em pobreza energética vive nas zonas urbanas/suburbanas e não chega a entrar em incumprimento, uma vez que os serviços seriam cortados.
O atual mercado de carbono continua a ter um montante significativo de receitas que não é alocado para fins relacionados com o clima e a energia - em média, cerca de 30% em cada Estado-Membro. Estas receitas deveriam ser alocadas a este apoio, a par das receitas geradas pelo segundo mercado que a UE quer abrir.