O deputado bloquista José Maria Cardoso vai participar, enquanto presidente da Comissão Parlamentar de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território, nos trabalhos da COP26 em Glasgow. Nesta entrevista, que também contou com a participação do investigador João Garcia Rodrigues, que acompanha a área do Ambiente no grupo parlamentar do Bloco, José Maria Cardoso diz não ter perspetivas animadoras quanto aos resultados práticos desta cimeira que tem agora início. E volta a criticar as falsas soluções adotadas em cimeiras anteriores, como a dos mercados de carbono que não só não diminuem as emissões como criam um instrumento financeiro especulativo que permite aos poluidores - incluindo as portuguesas Cimpor, Secil e Galp - lucrarem muitos milhões de euros.
Os alertas do IPCC indicam que o mundo está praticamente num caminho sem retorno para rebentar todas as metas de aumento da temperatura neste século. Com as atuais lideranças mundiais, ainda é possível fazer marcha-atrás nesse caminho?
As atuais lideranças têm demonstrado serem incapazes de levar a cabo as transformações necessárias para reduzir drasticamente as emissões de gases com efeito de estufa que permitiriam não ultrapassarmos o aumento da temperatura média de 1,5 graus Celsius até ao final do século, face aos níveis pré-industriais – um limite que a comunidade científica considera que não deve ser ultrapassado sob pena de muitas regiões do planeta se tornarem inabitáveis, com tudo o que isso implica para muitos milhões de pessoas.
As conclusões do recente Emissions Gap Report 2021, o 12º relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, publicado em 26 de outubro, demonstram a falta de ambição das lideranças de muitos países, que estão a fazer muito pouco para responder à crise climática. O relatório mostra que os compromissos que os países vão enviar para a COP26 apenas permitem reduzir em 7,5 por cento as emissões de gases com efeito de estufa até 2030. Esta redução é irrisória já que temos de reduzir as emissões em cerca de 50 por cento para que sejam compatíveis com níveis de 1,5 graus Celsius. A comunidade científica diz-nos que os atuais compromissos dos países nos levam para um aumento de 2,7 graus Celsius até ao final do século, o que será desastroso para o planeta.
É revelador que alguns dos países que ocupam lugares de topo nas atuais emissões de gases com efeito de estufa, como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China tenham anunciado que não vão estar presentes na COP26.
Estas cimeiras do clima são conhecidas por produzirem grandes anúncios, que na prática não são concretizados. O que seriam boas notícias saídas desta COP26? E quais as expetativas realistas sobre o resultado prático da cimeira?
Boas notícias seriam compromissos credíveis sobretudo dos países do G20 – responsáveis por cerca de 80 por cento das emissões de gases com efeito de estufa – para reduzirem drasticamente as suas emissões, em linha com o que a comunidade científica considera seguro para toda a população, ou seja não ultrapassar os 1,5 graus Celsius de aumento da temperatura média no planeta.
Sabemos que os países e as populações que menos contribuíram para a crise climática são as que mais têm sofrido com os seus efeitos. Por isso é absolutamente fundamental repor justiça neste processo, fazendo com que quem mais contribuiu – e beneficiou – ao longo dos últimos séculos e décadas dos lucros dos combustíveis fósseis e deste modelo extrativista e colonialista redistribua ganhos e recursos pelos países e populações usurpadas.
Uma boa notícia saída da COP26 seriam, portanto, compromissos credíveis e robustos para repor justiça social através da redistribuição de recursos dos países do Norte Global, que mais beneficiaram do capitalismo fóssil, para os do Sul Global que mais foram prejudicados. É também fundamental que a nível nacional, em cada país, quem mais contribuiu e beneficiou desta crise, contribua também mais para a sua resolução.
Apesar da justiça destes mecanismos de redistribuição da riqueza, somos realistas e sabemos que nada de significativo a este respeito está em cima da mesa das negociações da COP26. Portanto, as perspetivas sobre os resultados práticos desta cimeira não são animadoras.
A COP26 realiza-se numa altura em que à crise climática se junta a crise energética, que certamente servirá de desculpa para voltar a adiar medidas necessárias. Como se pode responder às duas crises ao mesmo tempo?
A crise climática e a crise energética são resultado do sistema socioeconómico em que vivemos, o capitalismo. Não podemos, por isso, esperar que o sistema que originou estas crises seja o detentor das soluções para as resolver. Sabemos que são necessárias transformações profundas no atual sistema socioeconómico. Algumas dessas transformações passam por deixar os combustíveis fósseis debaixo do chão, passam pela proteção da natureza e passam também pelo combate a todas as formas de extrativismo e de desproteção social.
Não é com mercados especulativos e liberalizados, como os que temos agora, que combatemos as crises climática e energética, porque os preços de bens essenciais continuam a subir – tal como as emissões – ao mesmo tempo que quem menos tem passa frio nos meses de inverno, fica restringido na sua mobilidade, ou perde o seu emprego.
Precisamos de um setor da energia público, assente em energias renováveis, que responda às necessidades das pessoas e que as proteja da escalada de preços. Precisamos de transportes coletivos públicos, progressivamente gratuitos, de qualidade e de emissões zero, que chegam a toda a gente, bem como mobilidade ciclável e pedonal segura nas cidades. Precisamos também de proteger intransigentemente a biodiversidade e de recuperá-la em vastas áreas do território porque os ecossistemas são a base da vida e ajudam-nos a combater a crise climática, absorvendo carbono da atmosfera.
Outra medida fundamental passa por assegurar a transição justa para uma sociedade descarbonizada, identificando os grupos sociais e os territórios mais vulneráveis a uma economia de baixas emissões de gases com efeito de estufa, assegurando que essas pessoas e territórios não ficam desprotegidos e beneficiam de medidas de adaptação. Neste sentido, também temos de proteger o emprego decorrente das indústrias mais poluentes para que os trabalhadores e as trabalhadoras possam transitar para setores descarbonizados, evitando situações como, por exemplo, a da refinaria da GALP em Matosinhos.
São cada vez mais as vozes a defender que é impossível travar a crise climática no quadro do atual sistema capitalista. Mas rapidamente os países criaram mecanismos como o mercado de créditos de carbono, que também será discutido na COP26, para financiarizar a questão climática. Quem beneficia realmente destes mecanismos?
Quem beneficia são as grandes empresas poluidoras. Um estudo recente divulgado pela organização não governamental Carbon Market Watch estimou que as grandes empresas beneficiárias do Comércio Europeu de Licenças de Emissão, que concede licenças gratuitas de emissão de gases com efeito de estufa, permitiu lucros especulativos de 50 mil milhões de euros a essas empresas, entre 2008 e 2019.
Portanto, com este mercado europeu de carbono, as empresas não só não pagam pelo que poluem, como obtêm lucros adicionais à sua atividade. Só em Portugal este regime permitiu que grandes empresas como a Cimpor, a Petrogal e a Secil, obtivessem lucros suplementares na ordem dos 1.000 milhões de euros no mesmo período, o que por unidade de PIB faz de Portugal o 3.º país onde as empresas geraram mais lucro especulativo com este mercado de carbono.
Há dias, a Comissão Europeia veio dizer que existem suspeitas de especulação no mercado europeu de carbono e que vai investigar, o que é curioso, porque este mercado foi desenhado precisamente para permitir a especulação. Para isso e para a obtenção de lucro fácil e autorização para poluir.
Os mercados de carbono não devem existir. Ao invés, quem mais polui não pode continuar a lucrar com a poluição. Tem de ser responsabilizado e contribuir para a transformação que precisamos no setor da energia, na mobilidade, na agricultura e pescas, na preservação e recuperação de biodiversidade, e na proteção do emprego.
Urge ter consciência de que o clima é um bem comum da humanidade e fazer sentir que as preocupações ambientais e/ou climáticas são um problema global que exige uma ação coletiva. Não basta enunciar um recomendatório em forma de manual de boas práticas como angustiante resposta às calamidades naturais, cada vez mais frequentes. Temos mesmo que agir pela transição de paradigma que altere comportamentos, que inverta prioridades, que equilibre necessidades com limites, que defina compromissos pela salvaguarda dos ecossistemas. Precisamos de inspirar a esperança na defesa da biodiversidade e na vivência conciliatória entre a humanidade e a sua casa comum. Até porque não há Planeta B.