COP26: O que está em jogo na cimeira do clima

O combate às alterações climáticas é uma luta contra o tempo, mas os governos e a indústria poluente continuam sem pressa em cortar as emissões que a ciência exige para evitar a catástrofe. A cimeira de Glasgow será mais uma da longa lista de oportunidades perdidas. Dossier organizado por Luís Branco.

30 de outubro 2021 - 16:02
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Seis anos após o Acordo de Paris e a aprovação de metas para o limite do aumento da temperatura que muitos consideraram demasiado tímidas para a emergência com que o planeta se depara, a situação agravou-se com o aumento das emissões de gases com efeito de estufa.

Apesar de todos os repetidos alertas dos cientistas, as decisões políticas à escala nacional e internacional continuam a ser influenciadas pelos lóbis da indústria poluente e a Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, a COP26 em Glasgow, não irá mudar essa tradição.

Prevista para 2020 e adiada por um ano por causa da pandemia, é nesta conferência que os países devem apresentar os seus planos de redução de emissões, mas a verdade é que, à exceção do ano da pandemia, elas têm aumentado em vez de diminuir. Sabe-se já que alguns dos países que mais emissões poluentes enviam para a atmosfera não se farão representar a alto nível nesta cimeira, como é o caso da China, Brasil, India e Rússia. Ainda sem se conhecerem os seus compromissos concretos, já há uma ideia do que preparam os maiores poluidores do mundo. As Nações Unidas dizem que com o atual ritmo, o aumento da temperatura média global no fim deste século em relação aos níveis pré-industriais será de 2.7ºC, quase o dobro da meta de 1.5ºC que já traria problemas muito graves à vida no planeta. Além do fracasso na redução de emissões, também a prometida ajuda aos países pobres para enfrentarem os efeitos das alterações climáticas - 100 mil milhões de dólares por ano - ficou sempre muito longe de ser atingida e esperam-se desta cimeira mais promessas de que no futuro será diferente. Outro dos pontos na agenda, seguido com especial interesse por parte da indústria poluente, é o do funcionamento do mercado de carbono, que tem permitido a esta indústria continuar a poluir enquanto lucra milhares de milhões no comércio especulativo das licenças de emissões.

Neste dossier, entrevistámos o deputado José Maria Cardoso, que acompanhará os trabalhos da cimeira enquanto presidente da Comissão Parlamentar de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território. “As perspetivas sobre os resultados práticos desta cimeira não são animadoras”, reconhece o deputado do Bloco, acrescentando que nem a crise climática nem a crise energética se poderão resolver sem transformações profundas no atual sistema socioeconómico. Transformações que “passam pela proteção da natureza e pelo combate a todas as formas de extrativismo e de desproteção social”.

A par da cimeira oficial, reunirão também em Glasgow os ativistas na Cimeira dos Povos pela Justiça Climática, de 7 a 10 de novembro. Mas não é preciso ir à Escócia para assistir a muitos dos debates e conferências desta contracimeira e por isso selecionámos para este dossier 10 iniciativas que terão transmissão online. Na véspera do início da Cimeira dos Povos, realiza-se um Dia de Ação Global com manifestações em muitas cidades do mundo, incluindo Glasgow. Em Portugal, a manifestação prevista para esse dia em Lisboa foi adiada para dia 7, às 15h, do Martim Moniz em direção à Alameda. A organização solidarizou-se com o protesto convocado para dia 6 a exigir justiça para Danijoy Pontes, cuja morte no Estabelecimento Prisional de Lisboa tem causas ainda por esclarecer.

“A COP26 será sempre um falhanço porque, como as suas antecessoras, foi construída para falhar”, afirma neste dossier o investigador em Alterações Climáticas João Camargo. Na realidade, “não há qualquer plano realista para cortar as emissões de gases com efeito de estufa para cumprir sequer o Acordo de Paris", aponta o investigador. E caso existisse, “faltaria depois a árdua tarefa de passar do plano para a realidade”. Enquanto isso, o investimento público em projetos de combustíveis fósseis não dá sinais de abrandar, mostrando que os governos insistem em correr na direção contrária à que os cientistas apontam. E a indústria poluente, com a ajuda de alguns bilionários, voltará a apresentar promessas de tecnologias salvadoras que ainda estão por inventar. “O capitalismo é hoje um culto da morte e a COP é uma das suas principais celebrações”, conclui Camargo.

Essas tecnologias cuja eficácia está por provar e que chegam a causar mais emissões do que as que pretendem remover são uma das componentes da estratégia “net zero” com que a indústria poluente se apresenta a estas cimeiras. E que mais não é do que uma forma de os poluidores fugirem às suas responsabilidades e lucrarem ainda mais com a crise climática. Neste dossier apresentamos o relatório do Corporate Accountability, Global Forest Coalition e Friends of the Earth, em colaboração com dezenas de associações e ONG de todo o mundo, incluindo a portuguesa Zero. Ele apresenta os mecanismos que servem de cortina de fumo para dar a imagem de que estão a reduzir as suas emissões poluentes quando na verdade não o fazem e em muitos casos até as aumentam, enquanto lucram no mercado especulativo das emissões de carbono ou com os créditos fiscais criados à sua medida. O investimento em lóbi junto dos decisores políticos - os principais poluentes são também patrocinadores oficiais destas cimeiras - e o financiamento da investigação académica que depois valida as pretensas soluções da estratégia “net zero” são outras peças do sistema que serve os interesses da poderosa indústria poluente.

Por outro lado, as portas giratórias entre governantes e indústria poluente nunca pararam de girar, apesar das promessas de regras mais apertadas para a passagem entre cargos decisores das políticas e a administração ou aconselhamento às empresas. Um levantamento desses casos na União Europeia, envolvendo só meia dúzia das maiores empresas de energia e apenas desde 2015, quando foi assinado o Acordo de Paris, encontrou 71 casos de pessoas que passaram de cargos públicos para estas empresas ou os seus lóbis e vice-versa. A investigação do Corporate Europe Observatory, Friends of the Earth Europe e Food & Water Action Europe contabilizou também 568 reuniões de lóbis e empresas com altos funcionários da Comissão Europeia durante estes anos, uma média de 1,5 reuniões por semana.  

Como a jovem ativista climática Greta Thunberg escreveu num artigo em vésperas da cimeira, a sociedade continua em estado de negação da crise climática, apesar do “alerta vermelho” lançado por António Guterres a seguir à divulgação das conclusões dos cientistas do IPCC. “Os factos são cristalinos, mas apenas nos recusamos a aceitá-los. Recusamo-nos a reconhecer que agora temos de escolher entre salvar o planeta vivo ou salvar o nosso modo de vida insustentável”. A ativista aponta o dedo às décadas de inação e de “blá, blá, blá” dos decisores políticos e lamenta que não exista ainda nenhum país ou governante que se afirme como um “líder climático” disposto a protagonizar essa mudança. Uma ausência que atribui à falta de consciência das pessoas em relação à crise que os cientistas apontam e a consequente falta de pressão dos media para criar as condições do surgimento dessa liderança.

As conclusões alarmantes reveladas pelas recentes fugas de informação do próximo relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas - que basicamente afirmam que o sistema capitalista é insustentável para a vida no planeta - vão colocar a humanidade numa encruzilhada em meados de 2022, quando o relatório definitivo e o seu resumo para os decisores políticos for publicado. No seu artigo neste dossier, o ativista galego Manuel Casal Lodeiro argumenta que caso essas conclusões sejam censuradas no documento final, isso equivalerá a uma declaração de guerra que quebrará o contrato social que liga governantes e governados.

Finalmente, publicamos uma reflexão do ativista sul-africano Patrick Bond sobre as análises, estratégias, táticas e alianças do movimento pela Justiça Climática nos últimos anos. Ele propõe uma estratégia para “deslegitimar Paris e os seus negociadores de elite, e em vez disso recorrer a ações diretas imediatas, escalas mais flexíveis de envolvimento internacional, e estratégias mais criativas para o ativismo de baixo para cima”. Refere-se também ao Acordo de Glasgow, subscrito em 2020 por organizações de base que lutam pela justiça climática, apontando as suas virtudes e as suas lacunas.

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