Metade dos presidentes brasileiros desde o fim da ditadura. Quase metade dos atuais governadores dos estados brasileiros. E um quinto dos senadores do país em exercício.
O que todos estes políticos têm em comum? Todos eles têm antepassados diretos que teriam pessoas escravizadas, utilizaram mão de obra escravizada ou atuaram para conter revoltas de pessoas negras e pobres durante o Brasil colonial e no Império.
Os 33 políticos com antepassados ligados à escravatura
Por Bianca Muniz, Bruno Fonseca e Mariama Correia
Ex-presidentes do Brasil, senadores da República e governadores de estados brasileiros. Todos estes importantes cargos têm algo em comum: foram e são ocupados por pessoas que descendem de homens e mulheres que teriam alguma relação com pessoas escravizadas no país.
Esta é a conclusão principal do Projeto Escravizadores, investigação inédita feita pela Agência Pública que mapeou os antepassados de mais de cem autoridades brasileiras do Executivo e Legislativo para identificar se havia casos de uso de mão de obra escravizada.
O resultado do mapeamento é que, dos 116 investigados, pelo menos 33 teriam antepassados que tiveram relação com pessoas escravizadas. Muitos dos políticos nem sequer conheciam os seus antepassados ou mantêm relação próxima com a sua linhagem.
Dos oito presidentes da República após o fim da ditadura de 1964, metade entra nessa lista: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Dos 81 senadores, 16, um quinto, também se enquadram nessa situação. São eles: Augusta Brito (PT-CE), Carlos Portinho (PL-RJ), Carlos Viana (Podemos-MG), Cid Ferreira Gomes (PSB-CE), Ciro Nogueira (PP-PI), Efraim Filho (União-PB), Fernando Dueire (MDB-PE), Jader Barbalho (MDB-PA), Jayme Campos (União-MT), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Marcos do Val (Podemos-ES), Marcos Pontes (PL-SP), Rogério Marinho (PL-RN), Soraya Thronicke (Podemos-MS), Tereza Cristina (PP-MS) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PP).
Dos 27 governadores, quase metade, 13, também entraram no levantamento: Carlos Brandão Júnior (PSB-MA), Cláudio Castro (PL-RJ), Eduardo Riedel (PSDB-MS), Fátima Bezerra (PT-RN), Gladson Camelli (PP-AC), Helder Barbalho (MDB-PA), João Azevêdo (PSB-PB), Jorginho Mello (PL-SC), Rafael Fonteles (PT-PI), Raquel Lyra (PSDB-PE), Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União-GO), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP).
Escravizados nas plantações, nas casas e no comércio
São várias as relações dos antepassados das autoridades brasileiras com a escravidão. O tataravô do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, era o coronel José Manoel da Silva e Oliveira, nascido por volta de 1771, em Minas Gerais. O militar foi uma importante figura a comandar a exploração de ouro nas antigas capitanias de Minas e Goiás. Segundo registos históricos, numa dessas empreitadas para tentar achar novos pontos de mineração, teria usado pessoas escravizadas, que morreram no caminho de forma trágica devido a doenças.
A investigação encontrou diversos casos de antepassados de políticos atuais que teriam usado pessoas escravizadas em fazendas, no plantio e colheita de cana-de-açúcar, para produção de algodão e em fazendas de fumo, no Recôncavo Baiano.
Também há casos de pessoas escravizadas que viveriam nas casas dos senhores, acompanhando e cuidando de idosos, conforme mencionam testamentos, e outras que viajavam em companhia dos seus escravizadores. Encontrámos também registos de compra a venda de escravizados e até mesmo de aluguer destas pessoas.
“Não eram só os grandes proprietários de terra que tinham escravizados, mas [também] comerciantes, pessoas com pequenas propriedades e que muitas vezes tinham propriedades de plantio só para consumo próprio ou no máximo para venda local, mas não necessariamente para exportação e que tinham um, dois escravizados ali que faziam esse trabalho”, comenta a historiadora e educadora social Joana Rezende.
“Muitas pessoas tinham escravizados que, por exemplo, alugavam para outras pessoas, para outras propriedades […] Haviam essas várias formas de, digamos assim, usar um escravizado, não só para plantação, não só nas lavouras”, completa.
Como a investigação foi feita
Para chegar a estas conclusões, a Pública definiu uma metodologia de investigação com os pesquisadores de genealogia do Núcleo de Estudos Paranaenses da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenados pelo sociólogo e professor Ricardo Oliveira. Segundo o investigador, estas estruturas de poder e parentesco são um fenómeno genealógico, de modo que “ocorrem transmissões de heranças, de renda, património, escolaridade, e este temas são decisivos para entendermos o status quo”.
Ele cita que famílias ricas no século XXI são formadas, em boa parte, pelos mesmos grupos familiares ricos do século XX – uma estrutura originada através de casamentos e alianças no período imperial e no colonial. “Com isso há um núcleo duro de continuidade social da classe dominante”, conclui.
Ao investigar o período da escravatura e a classe dominante tradicional, o investigador comenta que a presença no poder de pessoas com antepassados escravizadores está ligada a uma estrutura agrária, com grandes fazendeiros esclavagistas que surgiram com a distribuição das primeiras sesmarias. E, para investigar estas relações, a genealogia utiliza documentos que surgiram com o período republicano (registos civis, de casamento e nascimento e óbito), e, antes disso, no século XIX, a igreja controlava a demografia com registos de batismo e matrimónio, entre outros.
A partir daí, investigámos cerca de 500 documentos, entre registos paroquiais e de cartórios, jornais antigos em hemerotecas e arquivos públicos, e trabalhos académicos de diversas universidades brasileiras. Ao todo, foram documentados mais de 200 parentescos.
Todos os 33 políticos cujos antepassados teriam relações com a escravidão foram procurados pela Pública e tiveram tempo para avaliar a genealogia e os documentos apresentados e responder à reportagem.
A metodologia pode ser lida aqui.
É importante ressaltar que os demais políticos que não entraram no grupo dos 33 podem ter tido familiares com relação com a escravatura. A carência de documentos e a dificuldade de acesso a registos históricos impedem que se levantem, com precisão, todas as relações esclavagistas da genealogia das autoridades.
A investigação tem inspiração em iniciativas similares que foram realizadas nos Estados Unidos, pela Reuters, que revelou que mais de 110 membros da alta classe política americana são descendentes de escravizadores, e no Reino Unido, pelo Guardian, cujo conselho financiou uma pesquisa sobre as ligações do fundador do jornal e os seus financiadores com o tráfico negreiro.
O projeto escravizadores quer continuar a investigar estas conexões. O nosso objetivo é investigar ainda o Poder Judicial e outras autoridades do Executivo e Legislativo, como os deputados.
A dívida do Estado brasileiro pela escravatura
A escravatura foi utilizada na colonização do Brasil desde os princípios das atividades económicas, gerando riquezas para os portugueses e, em seguida, para os donos de escravizados nascidos aqui. Como pontua Danilo Marques, doutor em História e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), existem registos de tráfico de pessoas escravizadas já no primeiro século de colonização do Brasil e, com isso, também histórias da resistência dessas pessoas.
“A gente tem os primeiros navios negreiros datados da década de 1550, o início dos engenhos de açúcar no Nordeste, como destino final destes africanos e africanas que seriam escravizados e escravizadas. Existem , portanto, as primeiras informações de quilombos já por volta de 1570, na Bahia, uma revolta escrava em Porto Calvo [Alagoas] por volta de 1590, que provavelmente seria o início do quilombo dos Palmares”, comenta.
O doutor em história e professor do Universidade de São Paulo (USP) Alain El Youssef, ressalta que a escravidão não é uma prática que foi criada com o imperialismo das Américas, mas foi aqui que ganhou contornos de uma atividade comercial, que fazia a engrenagem económica da produção colonial girar, mas também era em si uma fonte de lucro para quem traficava essas pessoas.
“Havia, por exemplo, escravatura em África, como havia em muitos outros continentes, em muitas outras sociedades. A questão é que essa escravatura não era comercial, como a gente está acostumado a ver no processo de colonização do Brasil, e depois no próprio século XIX, quando o Brasil já é um país independente. Ou seja, ninguém escravizava uma pessoa nas sociedades africanas para vendê-la. O que havia, na verdade, era uma escravatura que era resquício, que era fruto de conflitos entre duas ou mais comunidades”, comenta.
Para a doutora em história e professora de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Valéria Gomes Costa, a escravatura – e a forma como foi abolida, sem compensações ou direitos para os escravizados – deixou uma dívida com os descendentes das pessoas privadas de liberdade. “O Estado republicano tem uma dívida imensa e impagável com a população negra. Prometeu e não cumpriu, com a cidadania, com habitação digna, educação, saúde”, avalia.
Iniciativas de reparação, que responsabilizam o Estado e instituições ligadas ao governo brasileiro, já se estão a tornar realidade no Brasil. Um caso recente é o que envolve o Banco do Brasil, que teve as relações de financiamento do tráfico de pessoas escravizadas expostas por um grupo de investigadores o ano passado. O levantamento já levou à abertura de um inquérito civil contra a instituição.
A historiadora Joana Rezende defende que esta reparação deve acontecer inclusive na forma de preservação, investigação e divulgação dos registos que documentam a escravatura no Brasil, que devem ser acompanhados de uma reflexão sobre como as pessoas sem liberdade eram retratadas.
“Boa parte dos documentos que a gente tem desse período são documentos institucionais, de cartórios, processos legais, legislativos, até mesmo jornais. Estamos a falar de um momento que dificilmente as pessoas escravizadas teriam acesso a produzir esses documentos ou serem representadas como personagens ativos. Muitas vezes, a apreensão que nós temos da vida, da experiência dos escravizados, é mediada por um escrivão, um político, algum representante que não necessariamente colocava aquela pessoa como pessoa, até porque elas não eram vistas dessa forma”, pondera.
A historiadora defende que esse trabalho de resgate e reflexão crítica sobre o período esclavagista deve ser uma política pública do Estado brasileiro. “Cabe ao governo, não somente através dos arquivos nacionais, da preservação dos arquivos, das políticas de resgate à documentação, mas também a partir do incentivo à pesquisa, com linhas específicas voltadas para a recuperação dessa memória”, afirma.
Bianca Muniz é jornalista, especialista em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.
Bruno Fonsece é chefe de redação da Agência Pública com certificação em Data Storytelling pelo Insper e curso de jornalismo multimédia pela Thomson Reuters.
Mariama Correia é jornalista. Foi repórter do coletivo de jornalismo investigativo e independente Marco Zero Conteúdo e da editoria de Economia do jornal Folha de Pernambuco.
Texto publicado originalmente na Agência Pública. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.
Famílias que teriam origem escravocrata mantêm poder regional há 200 anos
Por Amanda Audi.
Pelo menos seis autoridades que constam no levantamento da Agência Pública sobre descendentes de escravizadores na época dos períodos colonial e imperial brasileiros são integrantes de clãs familiares que, ainda hoje, controlam e influenciam politicamente as suas regiões.
A governadora Raquel Lyra (PSDB - Pernambuco) e os senadores Cid Gomes (PSB - Ceará), Ciro Nogueira (PP - Piauí), Efraim Filho (União Brasil - Paraíba), Tereza Cristina (PP - Mato Grosso do Sul) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB - Paraíba) vêm de famílias antigas com representantes na política local e nacional.
Baseámo-nos em registos em cartórios, jornais e investigações académicas que mostram que alguns dos antepassados de políticos de agora teriam sido proprietários de pessoas escravizadas – o que colaborou para o aumento dos seus patrimónios.
Estas são as suas histórias.
Um dos episódios mais sombrios da história da escravatura brasileira, na visão do escritor Laurentino Gomes, que escreveu a trilogia Escravidão, teve lugar numa fazenda de Remígio, cidade da região de Campina Grande, na Paraíba. Quem passa por ali, no meio aos pacatos campos típicos do semiárido, provavelmente não desconfia que as ruínas de mais de 200 anos hoje abertas a visitação abrigaram um sistema de reprodução sistemática de pessoas escravizadas para venda – como se fossem animais.
O dono da propriedade e responsável pelo comércio de pessoas é um antepassado de uma das famílias mais poderosas do estado, a Vital do Rêgo.
A história começa no início do século XIX, quando o português Francisco Jorge Torres aportou no Brasil e deu início ao negócio de produção e venda de pessoas. Além da fazenda, ele construiu um casarão no centro de Areia, cidade vizinha, onde teria mantido uma senzala quase maior que a casa principal. Dos 19 quartos, 12 seriam de escravizados.
As mulheres escravizadas que moravam na propriedade eram obrigadas a dormir com alguns homens escravizados que eram “reprodutores escolhidos a dedo”, segundo o historiador Raimundo Melo em entrevista ao Bom Dia Paraíba. Elas ficavam grávidas e, quando estavam prestes a parir, eram levadas para a fazenda, onde havia a chamada “maternidade das negras”.
Lá, outras escravizadas mais velhas ajudavam no parto e nos cuidados com o bebé. As mães podiam ficar com os filhos apenas nos primeiros dias, depois eram levadas de volta para a cidade, onde tornavam a engravidar. Os bebés eram cuidados “para que crescessem fortes e depois fossem vendidos no comércio local”, continua Melo. Torres teria comercializado pelo menos uma centena de escravizados.
“Pelas leis da escravidão, cabia ao senhor o controle da reprodução física dos cativos, cujos filhos não lhes pertenciam. A própria sexualidade, portanto, estava sob domínio senhorial. Há notícias de recém-nascidos arrematados em leilões ou oferecidos em anúncios de jornais. No Brasil há pouca documentação sobre reprodução de escravos para venda, ao contrário dos Estados Unidos, onde essa prática é bem documentada”, disse o escritor Laurentino Gomes num vídeo gravado quando estava a visitar a fazenda em Remígio.
A investigadora Eleonora Félix encontrou alguns registos de cartório de transações relacionadas aos escravizados de Torres. Há a anotação da venda de um homem de 23 anos: “João, solteiro, foi vendido por Francisco Jorge Torres pelo preço de 620S000”. Isso daria aproximadamente 91 mil reais em valores de hoje, de acordo com a conta utilizada por Laurentino Gomes no livro 1822, que considerou que uma libra esterlina valia cerca de 5 mil-réis.
O comerciante registou também que “dera carta de liberdade à sua escrava Maria Angola”, em 1855, em “observância aos seus bons serviços”, mas com a condição de permanecer com ele enquanto ele vivesse. Com isso, Maria Angola ficou livre apenas um ano e meio depois, quando já tinha 50 anos de idade.
Numa das salas do casarão de Torres em Areia, que hoje é aberto ao público, há uma homenagem com o nome das 18 pessoas escravizadas de Maria Franca Torres, filha do patriarca, que constavam no seu inventário, registado em 1871. Os escravizados tinham entre 1 e 54 anos de idade. Seis eram crianças com menos de 10 anos.
O casarão exibe a reprodução de bilhetes de rifa cujo prémio era a compra da alforria de escravizados. Pois Areia, apesar de abrigar o horror da “produção de escravos”, também foi uma das primeiras cidades brasileiras a ter um forte movimento abolicionista – tanto que libertou os seus escravizados dias antes da promulgação da Lei Áurea, de 1888.
Torres foi o primeiro do ramo familiar que há séculos é um dos mais influentes da Paraíba. Ele é o quinto avô do hoje senador Veneziano Vital do Rêgo. Veneziano, por sua vez, é filho da ex-senadora Nilda Gondim e do ex-deputado Antônio Vital do Rêgo, irmão do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo Filho, neto do ex-governador Pedro Gondim e sobrinho-neto do ex-governador, ex-deputado federal e ex-senador Argemiro de Figueiredo.
O senador Cid Gomes e seu irmão Ciro Gomes, ex-ministro, ex-deputado e ex-presidenciável por quatro vezes, têm um histórico antigo com a cidade de Sobral, no Ceará – que hoje é presidida por outro irmão deles, Ivo Gomes.
“Ao abaixo assignado fugió de Sobral, um escravo mulato, de nome Delmiro, com os signaes seguintes: idade de 22 annos, estatura baixa, cheio de corpo, cabello crespo arruivascado, olhos grandes, sobrancelhas fechadas, nariz grosso e um tanto arrebitado, bocca regular, faltão-lhe dois dentes na frente, pouca barba, rosto redondo, pouco cabello no peito, pés grandes, tem uma pequena cicatriz no nariz, em um lado da cabeça tem uma grande brecha que o cabelo cobre, e várias cicatrizes nas costes”, diz o anúncio.
Procurado pela Agência Pública sobre o parentesco, Cid Gomes afirmou: “Abomino a escravidão. A humanidade nunca deveria ter feito isso na história. Um humano ser proprietário de outro humano atenta contra qualquer princípio humano, ético e moral. Isso é a coisa maior horrível que existe. Não faço a menor ideia se é meu trisavô e nunca soube disso.”
Raquel Lyra é filha de João Lyra Neto, ex-governador de Pernambuco – ele foi vice de Eduardo Campos e assumiu o cargo quando este se demitiu para concorrer à Presidência – e ex-prefeito de Caruaru. O avô também foi prefeito de Caruaru. O tio Fernando Lyra foi ministro da Justiça.
O poder da família é antigo: o capitão Manoel Monteiro Paes da Rocha Lira, sexto avô de Raquel, recebeu uma sesmaria (terra inexplorada para ser colonizada) da coroa portuguesa em 1816, na região de Recife. Desde então, os seus descendentes são influentes na região.
José Soares da Silva Lyra, trisavô de Raquel, é descrito como esclavagista no livro História da Lagoa dos Gatos, do historiador João Pereira Callado. O autor cita que ele seria “dono de uma porção dessa desgraçada gente”, em referência aos escravizados. “Era daqueles bons senhores estimados. Depois da alforria, ficaram todos seus cativos consigo, numa honrosa demonstração de bom caráter”, continua o texto.
Noutro trecho do livro, o historiador diz que o quinto avô de Raquel, José Paes de Lira, foi “ajudado ainda pelo braço dos seus numerosos cativos” na venda de algodão produzido na sua propriedade.
O pesquisador José Eduardo da Silva levantou que Paes de Lira seria dono de 23 pessoas, de acordo com o inventário deixado por ele em 1844 em Garanhuns. Os escravizados correspondiam a 34% do seu património, ainda segundo o estudo.
A senadora e ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias vem de uma longa linhagem de políticos mato-grossenses. Um dos seus avôs foi duas vezes senador e duas vezes governador. O seu bisavô também foi governador duas vezes. E o seu tataravô foi Quintino Bocaiuva, primeiro ministro das Relações Exteriores e da Agricultura da República.
Quintino Bocaiuva foi um dos mais importantes abolicionistas da história do Brasil. Ele defendia a causa em seu jornal, O Paiz, junto com Joaquim Nabuco, uma das principais vozes contra a escravidão.
Já o quinto avô de Tereza Cristina, Francisco Corrêa da Costa, foi descrito como “um médio proprietário de escravos” num estudo de Maria Amélia Alves Crivelente, mestre em história pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Corrêa da Costa foi presidente da província de Mato Grosso, deputado estadual e dono de engenho. Noutro estudo, a mesma autora cita que o seu filho Antonio assumiu o engenho do pai e adquiriu outros, multiplicando o património da família e também teria posse de dezenas de escravos.
“Com perspicácia, audácia e experiência na convivência com o pai, em 1855 os seus bens somavam considerável património em sesmarias onde cultivava milho, arroz e feijão, além do engenho de açúcar e aguardente, tinha ainda 8.000 cabeças de gado, bestas, cavalos, 10 casas em Cuiabá e 194 escravos, sendo 81 deles africanos”, cita a investigadora.
O avô paterno do senador Ciro Nogueira (PP-PI) foi prefeito de Pedro II, o pai foi deputado federal duas vezes e um tio também foi deputado federal. Nogueira foi casado com a ex-deputada federal Iracema Portella (PP-PI). A história deles está intrinsecamente ligada à política do Piauí há mais de 300 anos.
Quinto avô de Nogueira, o tenente-coronel Antonio Sousa Mendes embarcou num navio saído do Rio de Janeiro em 7 de maio de 1853 junto com dois escravos, Antonio e Raimundo, de acordo com registo no jornal O Constitucional. Sousa Mendes participou como militar da guerra da independência e da repressão à Balaiada, revolta da população pobre do Maranhão.
Um dos filhos de Sousa Mendes foi Simplício Mendes, que foi presidente da província do Piauí quatro vezes e nomeou a cidade de mesmo nome. Outro filho foi juiz do Supremo Tribunal Federal (STF). O filho de Simplício, Álvaro de Assis Osório Mendes, foi senador e governador do Piauí.
A família é descendente de Valério Correia Rodrigues, português que foi um dos primeiros povoadores do Piauí, em meados do século 18. Rodrigues colecionou dezenas de fazendas e teria sido dono de vários escravos, como constataram investigadores da Associação dos Descendentes de Valério Coelho, que montaram uma árvore genealógica desde o patriarca.
“Foram encontrados vários assentos de batismos de familiares e escravos de Valério Coelho”, diz o site que compila a pesquisa genealógica do patriarca. De acordo com os registos, Coelho batizava os filhos das suas escravizadas. “Aos dezasete de dezembro de mil e sete centos e setenta e quatro na fazenda do Paulista Baptizei solemne mente e pus os santos oleos a Ignacia filha de digo Baptizei e et cetra a Luiza filha de Quiteria preta solteira de Nascam Angolla Escrava de Vallerio Coelho Rodrigues morador na dita fazenda”, diz um deles.
Ciro Nogueira não aparece como descendente direto de Valério Coelho nos registos oficiais porque tudo indica que o seu bisavô, Pedro da Silva Mendes, não foi um filho legítimo do trisavô Álvaro de Assis Osório Mendes. O seu registo de falecimento, inclusive, diz que a sua mãe era Luiza de França Vilarinho, “doméstica”.
O senador fez parte da Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo em 2010. Três anos antes, ele foi um dos parlamentares que votaram para aprovar uma regra que dificultava o combate ao trabalho escravo – ela estipulava que auditores fiscais do trabalho não poderiam apontar vínculo de emprego entre patrões e funcionários quando constatassem irregularidades.
Filho do ex-senador paraibano Efraim Morais e neto dos ex-deputados estaduais João Feitosa e Inácio Bento de Morais, o senador Efraim Filho já reconheceu que “ter sobrenome conhecido na política ajuda a abrir portas”.
O seu tataravô, Manoel de Araújo Pereira II, aparece numa relação de senhores de escravos em Santa Luzia do Sabugy, antigo nome de Santa Luzia, na Paraíba, no período de 1858 a 1888, de acordo com a dissertação de Joselito Eulâmpio da Nóbrega, “Comunidade Talhado – um grupo étnico de remanescência quilombola: um identidade construída de fora?”, sobre a comunidade com remanescentes de quilombolas dessa cidade. O registo não cita o número de escravizados que ele teria tido.
A reportagem procurou os políticos citados para esclarecer os achados de suas genealogias, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores, mas não recebemos respostas até à publicação.
Amanda Audi é repórter da Agência Pública especializada nas áreas de política, direitos humanos e género. Publicou o seu trabalho em órgãos de comunicação social como o The Intercept Brasil, Folha de São Paulo, Congresso em Foco e The Brazilian Report.
Texto publicado originalmente na Agência Pública. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.