Essequibo: as motivações político-eleitorais por trás da disputa da Venezuela com a Guiana

09 de dezembro 2023 - 14:38

Maduro procura mobilizar a sua base e unificar o país, num momento em que a oposição, dividida, tenta ganhar musculatura. Por Julio Adamor.

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Essequibo. Foto de Ian Mackenzie/Flickr.
Essequibo. Foto de Ian Mackenzie/Flickr.

A discussão sobre incorporar o território de Essequibo, disputado com a Guiana, serve para o governo venezuelano mobilizar as suas bases políticas e trazer à tona uma pretensa união nacional em torno de um tema histórico e estratégico, personalizada na figura do presidente Nicolás Maduro. Serviu também para iluminar as divergências na oposição e enfraquecer o seu processo de articulação política para tentar chegar ao poder nas eleições de 2024.

Essa é a opinião de analistas e outras fontes consultadas pelo Brasil de Fato a respeito do resultado do referendo sobre o território Essequibo, em que a população da Venezuela expressou o desejo de incorporá-lo no país.

Num país fortemente polarizado entre governo e oposição, entre os defensores do legado do ex-presidente Hugo Chávez e os seus críticos, Essequibo é um tema no qual existe um consenso parcial. Dos dois lados do espectro ideológico, existe amplo apoio à ideia de que aquele pedaço de terra, farto em petróleo, gás e minérios, pertence à Venezuela e deve voltar aos seus domínios, uma vez que a incorporação à Guiana, definida em 1899, foi um equívoco que deve ser reparado.

O consenso é parcial porque existem distintos pontos de vista sobre como essa anexação deve ser feita. Há quem diga – especialmente opositores de Maduro – que não havia motivo para fazer referendo porque, quando se trata de cumprir o que é de direito, a decisão deve ser simplesmente tomada, sem consultar a população.

“Soberania se exerce, não se consulta”, publicou no X (antigo Twitter) a oposicionista María Corina Machado, candidata mais bem cotada da oposição à presidência em 2024, embora impedida judicialmente. “Agora devemos apresentar uma defesa impecável dos nossos direitos perante o Tribunal Internacional de Justiça, com participação dos nossos melhores especialistas e demonstrar que o Essequibo é da Venezuela”.

O TIJ, órgão judiciário da ONU em Haia, decidiu, dois dias antes do referendo, que a Venezuela “deverá abster-se de tomar qualquer ação que possa modificar a situação que prevalece atualmente no território em disputa” e que as partes envolvidas devem abdicar de “qualquer ação que possa agravar ou prolongar o litígio perante o tribunal ou torná-lo mais difícil de resolver”. A sentença é resultado de um requerimento da Guiana mas o governo venezuelano não reconhece a jurisdição do tribunal sobre esta disputa.

A disputa nos tribunais internacionais do caso Essequibo movimenta o tabuleiro da corrida eleitoral venezuelana. Por um lado, Machado chama o referendo de “fracasso”, embora a afluência de cerca de metade dos eleitores venezuelanos tenha sido maior do que a registada nas eleições regionais de 2021. Por outro, Maduro destaca a união dos venezuelanos, “por cima das diferenças”, o “exercício generoso de amor pela Venezuela” e diz que o país agora tem “uma só voz: o Essequibo é nosso!”.

Falam os analistas

“Maduro, como presidente do país, acaba por ser quem capitaliza as vitórias ou assume as derrotas, dependendo do caso, dos temas que dizem respeito ao Estado venezuelano. No caso do Essequibo, que obviamente requer união nacional dada a importância do assunto, ele também está a posicionar-se como o arquiteto do encontro ou reencontro de diversos setores, não apenas partidários, mas políticos num sentido mais amplo”, analisa a jornalista e escritora venezuelana Jéssica dos Santos.

“Isto poderia servir para elevar a sua reputação nas eleições de 2024? Sim, é provável. Mas não significa que o processo de conciliação em torno do tema Essequibo não seja necessário.”

Para o professor Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais, a estratégia do governo venezuelano é “por um lado, demonstrar união nacional por um Essequibo venezuelano, e por outro, que esta união seja personalizada pela figura do Maduro”. Ele acha que o presidente pode sair fortalecido se souber dosear com sabedoria os próximos passos, “sem frustrar o seu eleitorado ou provocar reações violentas dos seus adversários no exterior”. Trocando por miúdos, levar a vitória interna do referendo até as eleições “sem provocar conflito armado, somente exercendo o verbo e a pressão”.

Vai ser difícil conseguir isso, na opinião de Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC. Ele acha que Maduro vive uma situação complicada porque o argumento usado para bloquear a candidatura de Machado foi uma “sentença judicial duvidosa” e agora arranjou uma “Malvinas particular” para melhorar a sua imagem.

Embora peça cuidado com essa comparação, já que Leopoldo Galtieri, o presidente argentino que entrou em guerra com a Grã-Bretanha por causa das Ilhas Malvinas, era um “ditador assassino, algo que o Maduro não é”, Maringoni acha que Maduro pode estar a armar uma “armadilha para si próprio”, dependendo de como conduzir a questão. “Se partir para a guerra dá um problema enorme porque fornece aos EUA o argumento para aceder à exigência da Guiana de ter uma base militar lá. Se recuar, deslegitima-se.”

E a oposição, que há tanto tempo tem vindo a tentat tirar o chavismo do poder, como fica, uma vez que o governo aborda o tema Essequibo numa perspetiva de união nacional? Continua a apoiar a incorporação do território em disputa ou vai criticar a iniciativa de Maduro? Isso pode provocar uma divisão?

Jéssica dos Santos vê uma cisão na oposição mas essa divisão existia antes da polémica sobre Essequibo. A jornalista observa duas vertentes: a parte da oposição que convocou o povo a participar do referendo e a que não convocou. Aqueles que convocaram “estão a mostrar-se abertamente como políticos ou grupos políticos que não estão dispostos a renunciar ao voto num sentido mais amplo, ao caminho eleitoral, a participar das próximas eleições presidenciais”. Os demais, segundo ela, apoiam “a abstenção ou mesmo os caminhos violentos”.

María Corina Machado, que está inabilitada e não votou no referendo, pertence ao segundo grupo. “Quando se observa quais opositores de peso se opuseram ao referendo, vê-se que, em boa medida (com exceção de Henrique Capriles), são os mesmos que estão inabilitados politicamente”, constata a jornalista.

A oposição, diz ela, já está dividida há muito tempo, e este tema “apenas veio reafirmar a posição de cada um desses atores e também mostrar como seriam, de uma forma ou de outra, as suas políticas exteriores caso chegassem ao poder”.

Rafael Araujo, professor de História da América da UERJ, vê dois trunfos de Maduro com o referendo. Um deles é mobilizar as bases do PSUV, o partido do governo, e unificá-lo para “preparar as bases políticas e sociais que apoiam o presidente para a eleição do ano que vem”. O outro é “tirar o foco da reorganização das oposições para a eleição, visto que houve ampla mobilização do eleitorado venezuelano nas primárias da oposição”.

Sobre o paralelo com as Malvinas, ele acha válido no sentido de que se trata de uma reparação pela “usurpação de um território por parte da coroa inglesa e também como elemento de unificação nacional”. Mas não a ponto de desencadear um conflito armado. “Não acho que o Maduro embarcaria numa guerra, à revelia dos países sul-americanos, especialmente o Brasil, que o recebeu com pompa”.


Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.