A trajetória da esquerda palestiniana nas suas diversas manifestações constitui parte crucial da história palestina mais ampla. No último quarto de século, a rivalidade entre a Fatah e o Hamas tem dominado o cenário político na Palestina à sombra da ocupação israelita. Porém, até à Primeira Intifada, no final da década de 1980, o principal desafio à liderança do Fatah no movimento nacional palestiniano provinha da esquerda – e não de grupos como o Hamas ou a Jihad Islâmica.
Além da sua influência o sobre o movimento nacional palestiniano, as organizações de esquerda influenciaram o desenvolvimento da vida cultural palestina. Alguns dos maiores escritores palestinos, tais como Emile Habibi, Ghassan Kanafani e Mahmoud Darwish, são oriundos deste meio político.
Duas tradições
Devemos falar sobre as histórias e não sobre a história da esquerda palestiniana, porque não existe um movimento ou partido único que tenha conseguido canalizar todas estas energias. Tal fragmentação reflete a divisão mais ampla do povo palestiniano em espaços políticos e geográficos distintos: a minoria palestiniana dentro de Israel; a população dos territórios ocupados, por sua vez dividida entre Gaza e Cisjordânia; e a diáspora em países como a Jordânia, a Síria e o Líbano.
O movimento comunista palestiniano formou-se na década de 1920 sob o domínio colonial britânico. O Partido Comunista da Palestina tinha uma militância mista de judeus e árabes, apesar de ter se dividido sob a pressão das divergências comunitárias durante a década de 1940 em dois grupos separados.
Após a Nakba e a fundação do Estado de Israel em 1948, os comunistas no interior do que agora era Israel reorganizaram-se como o Partido Comunista de Israel, conhecido como Maki, segundo a sua sigla em hebraico. Os comunistas conquistaram adesão expressiva entre a minoria palestiniana em Israel, sendo o único partido a opor-se ao regime de lei marcial a que foram submetidos até à década de 1960.
O grupo parlamentar do Maki incluía o romancista Emile Habibi, que inicialmente aderiu ao Partido Comunista durante o mandato britânico. Habibi foi uma das diversas figuras literárias importantes que pertenceu ao movimento, incluindo o homem amplamente reconhecido como o poeta nacional palestiniano, Mahmoud Darwish.
Com a guerra de 1967 e a ocupação de Gaza e da Cisjordânia por Israel, uma nova configuração da política de esquerda palestiniana emergiu, com a sua base mais forte na diáspora. Desenvolve-se uma corrente declaradamente socialista dentro do movimento guerrilheiro palestiniano, que ganhou destaque a partir do final da década de 1960.
Memória
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Esta corrente desenvolveu-se a partir do Movimento de Árabes Nacionalistas, um grupo formado em Beirute (Líbano) durante a década de 1950, cujos membros influenciaram a história de diversos países árabes, do Kuwait ao Iémene. Embora o MAN inicialmente se tenha oposto firmemente ao comunismo e ao marxismo, o seu líder palestiniano, Georde Habash, e os seus aliados formaram um grupo declaradamente marxista-leninista em 1967, chamado de Frente Popular pela Libertação da Palestina.
Enquanto a Fatah, o partido de Yasser Arafat, tinha uma política de não interferência nos assuntos dos Estados árabes, a FPLP argumentou que a luta nacional palestinina deveria ser parte de uma revolução árabe mais ampla. O seu líder falou em transformar a capital jordana, Amã, numa “Hanói árabe” ao destituir o seu governante, o rei Hussein.
Ao mesmo tempo, a Jordânia foi a principal base para as guerrilhas da Organização para a Libertação da Palestina que conduziu ataques em Israel. O rei e os seus conselheiros estavam naturalmente determinados a evitar o derrube do governo monárquico de Hashemite e ordenaram a repressão violenta em 1970, que se tornou conhecida como o Setembro Negro.
Da Jordânia ao Líbano
Ghassan Kanafani e Leila Khaled foram duas das figuras mais proeminentes associadas à FPLP. Como Habibi, Kanafani foi uma figura literária importante e o seu romance de 1963, Homens ao sol, foi outro marco histórico na cultura palestiniana do século XX. Kanafani também escreveu ensaios políticos e editou o jornal Al-Hadaf da PFLP antes do seu assassinato por um carro-bomba de Israel em 1972.
Khaled tornou-se mundialmente famosa por um período no final da década de 1960, após participar de duas tomadas de controle de aviões por membros da FPLP. A FPLP defendeu o uso de sequestros de avião como um modo de publicitar a causa palestina, mas enfrentou forte crítica de outros grupos palestinianos, especialmente do Fatah. A segunda operação de controle de aeronave da qual Khaled participou contribuiu de maneira decisiva para o desencadeamento da crise do Setembro Negro de 1970, após a qual os guerrilheiros palestinianos transferiram a maior parte das suas forças para o Líbano.
Durante a década de 1970, as disputas ideológicas e os desacordos sobre a liderança de Habash na FPLP resultaram numa cisão e na formação de um novo grupo que se auto-denominou de Frente Democrática para a Libertação da Palestina, dirigida por Nayef Hawatmeh. A FDLP passou a formar uma aliança com a Fatah no interior do OLP em torno da ideia de estabelecer um Estado palestiniano nos territórios ocupados desde 1967 – um passo em direção ao que ficou conhecido como o modelo de dois Estados para a resolução do conflito.
Enquanto isso, a presença das guerrilhas palestinianas no Líbano foi um dos principais fatores que contribuíram para uma crise política importante, já que os líderes maronitas de direita que dominavam o país desde a independência enfrentaram um desafio da esquerda. Os grupos palestinianos alinharam-se com o Movimento Nacional Libanês liderado por Kamal Jumblatt, que procurou a refundação do sistema político libanês. Quando a crise eclodiu na Guerra Civil de 1975, os relatos dos meios de comunicação social ocidental frequentemente apresentaram-na como um conflito sectário entre cristãos e muçulmanos, mas questões de classe e ideologia política também desempenharam um papel importante.
Sobre o movimento comunista dentro de Israel na década de 1970, pode-se abordar que, em 1975, o político comunista Tawfiq Zayyad foi eleito como presidente da Câmara de Nazaré, que tinha ampla população palestiniana. No ano seguinte, Zayyad e os seus camaradas lideraram os protestos do Dia da Terra Palestiniana, que revelou ser um momento decisivo para os cidadãos palestinianos de Israel. A experiência do Dia da Terra Palestiniana estimulou os comunistas a estabelecerem uma aliança ampla de esquerda que ainda hoje tem uma base de apoio no Knesset [parlamento israelita]: a Frente Democrática pela Paz e Igualdade, ou Hadash, como é conhecida em hebraico.
Intifada
Em 1982, Israel iniciou uma invasão em larga escala ao Líbano para expulsar a OLP do seu reduto em Beirute. Isto provocou uma reorientação do centro da vida política palestiniana para os territórios ocupados, o que levou à Primeira Intifada [1987-1993]. A Intifada assumiu a forma de uma insurreição popular de massa, com greves, manifestações e outras formas de protesto. Ela colocou a ocupação israelita de Gaza e da Cisjordânia sob forte pressão.
A Intifada apoiou-se em anos de trabalho organizativo nos territórios ocupados. Os comunistas na Cisjordânia foram os pioneiros desse ativismo na década de 1970, Em 1982, eles separaram-se do movimento comunista jordano para formar um novo Partido Comunista Palestiniano que integrou a OLP cinco anos mais tarde. O PCP, a FPLP e a FDLP estavam todos representados, ao lado do Fatah, na Liderança Nacional Unificada da Revolta, aliança que deu direção política à Intifada.
De muitas maneiras, a Primeira Intifada foi o ápice da influência da esquerda na política palestiniana, com as duas tradições distintas do comunismo e do nacionalismo de esquerda agora a trabalhar juntas na mesma estrutura organizativa. Porém, esse período também foi marcado pela emergência de um novo desafio aos grupos de esquerda e à Fatah: a ascensão do Hamas, o partido islâmico formado por Ahmed Yassin e os seus seguidores em 1987.
A liderança exilada da OLP em torno de Arafat empregou a Intifada como plataforma de lançamento para uma nova estratégia diplomática fundamentada no reconhecimento de Israel em 1988 e na defesa de um acordo de estabelecimento de dois Estados. No entanto, o fruto concreto desses esforços foi o Acordo de Oslo de 1993, que deixou as questões básicas sobre a soberania palestiniana e o futuro dos colonatos nos territórios ocupados para serem tratadas numa etapa posterior. Arafat ignorou as críticas de figuras como Haidar Abdel-Shafi e Edward Said, que argumentaram que Oslo era um mau negócio para o seu povo.
Apesar da FPLP e da FDLP se terem oposto aos Acordos de Oslo, enfrentaram dificuldades para se apresentar como uma alternativa viável à Fatah durante a década de 1990. Muitos dos seus ativistas foram atraídos para atuar em ONGs apoiadas pelo Ocidente, realizando trabalhos importantes no terreno, mas tendo que seguir a agenda dos seus financiadores. Com o Islão político em ascensão em todo o Oriente Médio, enquanto os partidos de esquerda estavam em declínio, o Hamas parecia cada vez mais o rival mais eficaz da Fatah.
Após o fracasso das negociações no Camp David em 2000, estoura a Segunda Intifada [2000-2005] e os grupos de esquerda experienciaram uma maior marginalização à medida que a competição entre a Fatah e o Hamas se tornava a dinâmica central da política palestiniana. Nas eleições para o Conselho Legislativo Palestiniano em 2006, as forças de esquerda conquistaram aproximadamente 10% dos votos na lista proporcional. Mas a sua votação foi dividida em três partes e o seu desempenho foi completamente ofuscado pela vitória do Hamas. Nos dois anos seguintes, a polarização entre Hamas e Fatah resultou em confrontos violentos, fomentados pelos Estados Unidos, culminando na tomada de Gaza pelo Hamas.
Outro aspeto relevante é o desenvolvimento do ativismo de solidariedade com a Palestina no Egito sob a ditadura de Hosni Mubarak, após 2000, e o modo como os ativistas egípcios se valeram da experiência adquirida nesses protestos para impulsionar a renúncia de Mubarak em 2011. Após a sua queda, manifestações em apoio aos palestinianos tornaram-se frequentes e até parecia possível que o estado egípcio pudesse adotar uma nova política em relação a Israel. O golpe de Abdel Fattah el-Sisi, em 2013, encerrou essa janela de possibilidades, instaurando uma repressão ainda mais severa a todas as formas de protesto do que a observada sob Mubarak.
Solidariedade e sobrevivência
Embora o declínio da influência da esquerda na política palestiniana desde a década de 1990 certamente tenha as suas próprias características particulares, encaixa-se num padrão mais amplo no Médio Oriente e em todo o mundo, que se revela em todo o lado, da Itália à Índia. Neste contexto, não surpreende que os ativistas e as organizações de esquerda na Palestina tenham lutado para se manter em condições políticas extremamente desafiadoras, mesmo antes do ataque genocida que Israel lançou contra Gaza desde outubro de 2023.
Contudo, ainda podemos encontrar herdeiros desta tradição política assumindo uma posição decisiva contra os horrores que estão a ser infligidos sobre o povo de Gaza hoje, desde o líder do Hadash, Ayman Odeh, até Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestina, que começou a sua carreira no Partido Comunista.
A solidariedade com o povo da Palestina contra a ameaça da genocídio tornou-se uma questão decisiva para a esquerda internacional e essa solidariedade aplica-se a todos os palestinianos, quaisquer que sejam as suas visões políticas. Porém, existem boas razões para ter um interesse especial nas histórias da esquerda palestiniana.
Daniel Finn é editor da Jacobin. É autor de One Man’s Terrorist: A Political History of the IRA.
Texto publicado originalmente na Jacobin. Traduzido por Paulo Duque para o Esquerda Online. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.