Cinema

Emilia Pérez, o grande mal-amado dos nomeados para os Óscares

16 de fevereiro 2025 - 16:23

Apesar das críticas díspares de Emilia Pérez e das fracas reações do público, Hollywood atribuiu ao musical 13 nomeações para os Óscares na esperança de provar a sua boa fé progressista. Em seguida, vieram à tona tweets antigos da sua estrela.

por

Eileen Jones

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Imagem do filme "Emilia Pérez"
Imagem do filme "Emilia Pérez"

Se está atento ao cinema, provavelmente já viu Emilia Pérez ou, pelo menos, já ouviu falar muito dele. O tão elogiado filme está a ser notícia por causa do escândalo que envolve uma das suas estrelas, Karla Sofía Gascón, cujos tweets controversos de 2020-21 sobre muçulmanos, George Floyd e diversidade nos Óscares voltaram a circular. A reação é tal que perguntam a Gascón se tenciona “renunciar” à sua nomeação para o Óscar de Melhor Atriz por Emilia Pérez.

Aqui estão os tweets mais polémicos de que se fala:

“Desculpem, mas é impressão minha ou há mais muçulmanos em Espanha? Sempre que vou buscar a minha filha à escola, há mais mulheres com o cabelo tapado e as saias até aos calcanhares. No próximo ano, em vez de inglês, vamos ter de ensinar árabe”.

“Estou tão farta desta merda, do Islão, do cristianismo, do catolicismo e de todas as crenças de idiotas que violam os direitos humanos.”

“Acho que muito pouca gente se importava com George Floyd, um vigarista toxicodependente, mas a sua morte serviu para demonstrar mais uma vez que há pessoas que ainda consideram os negros como macacos sem direitos e consideram os polícias como assassinos. . . Estão todos errados”.

“Cada vez mais os #Oscars parecem uma cerimónia para filmes independentes e de protesto, não sabia se estava a assistir a um festival afro-coreano, a uma manifestação do Black Lives Matter ou ao 8M. De resto, uma gala feia, feia”.

“A vacina chinesa, para além do chip obrigatório, vem com dois rolinhos primavera, um gato que mexe a mão, 2 flores de plástico, uma lanterna pop-up, 3 linhas telefónicas e um euro para a sua primeira compra controlada.”

Gascón pediu desculpas em lágrimas em entrevistas e, ao mesmo tempo, negou ser racista ou preconceituosa, argumentando que os seus tweets estão a ser mal interpretados ou retirados do contexto. Desativou a sua conta X e recusa-se a renunciar à sua nomeação para o Óscar.

Mas, mesmo antes deste escândalo mais recente, não havia dúvida de que Emilia Pérez estava a perder cada vez mais brilho. Os comentadores mexicanos e os críticos de cinema trans denunciaram com indignação as representações estereotipadas do filme. E houve também uma reação estética, já que os espetadores recentes de Emilia Pérez ficaram espantados nas redes sociais com o facto de o filme ter sido recebido como uma obra-prima.

Partilho desse espanto.

Se bem se lembram, depois da estreia nas salas de cinema, o filme passou a ser exibido na Netflix com grande alarido. Já tinha ganho muitos prémios importantes no Festival de Cannes e nos Globos de Ouro. E foi nomeado para treze prémios da Academia (tantos como os que Oppenheimer recebeu), para Melhor Filme, Melhor Longa-Metragem Internacional, Melhor Realizador para Jacques Audiard, Melhor Atriz para Karla Sofía Gascón, Melhor Atriz Secundária para Zoe Saldana, Melhor Argumento Adaptado, Melhor Fotografia, Melhor Montagem, Melhor Som, Melhor Banda Sonora Original e Melhor Penteado e Maquilhagem.

A nossa pergunta, certamente anual, é: O que é que a Academia tem na cabeça?

O filme é uma confusão. Apesar de ter algumas interpretações convincentes, é um melodrama musical incoerente, de uma implausibilidade imensa e alienante, sobre um chefe de um cartel de droga (Gascón) que contrata uma advogada desgastada (Zoe Saldana) para o ajudar a escapar à sua antiga vida através do processo de transição de género. Quando o antigo chefe da droga se transforma em Emilia Pérez e vive uma vida autêntica e redentora como mulher, ela e a advogada ajudam famílias a descobrir o destino dos familiares desaparecidos pelos cartéis de droga, incluindo aqueles que ela mandou “desaparecer” na sua antiga vida de homem. Colocando ainda mais em risco a sua nova identidade, arranja uma forma de coabitar com a ex-mulher (Selena Gomez) e os filhos, que não a reconhecem.

É uma produção francesa filmada em França pelo arrogantemente sem noção argumentista e realizador francês Jacques Audiard, que representa uma fantasia dolorosamente estereotipada do México e da cultura mexicana - a reação nesse país tem sido particularmente intensa. Em resposta, o realizador Audiard redobrou a sua insensibilidade presunçosa com esta réplica: “Será que Shakespeare precisou de ir até Verona para escrever uma história sobre esse lugar?”

Aqui está uma boa resposta para o Sr. Audiard: Não estamos em 1595 e o senhor não é Shakespeare.

Emilia Pérez é também odiado pela comunidade transgénero pela sua imagem errada e insultuosa em todos os sentidos do processo de transição do género masculino para o feminino.  Dado que a bolha da comunidade cinematográfica abraçou Emilia Pérez de todo o coração, pode ser uma surpresa saber que a adoração do filme não se estende muito mais. De acordo com os sistemas de classificação apresentados pelo Screen Rant aqui, a reação da crítica a Emilia Pérez tem sido, para ser simpática, “dividida”, e o público em geral odeia o filme.

É claro que houve filmes que não agradaram aos críticos e aos espetadores aquando da sua estreia e que foram posteriormente considerados obras-primas. O filme francês de 1939, A Regra do Jogo, realizado por Jean Renoir, é um que me vem imediatamente à cabeça. Veio do Outro Mundo (1982), de John Carpenter, é outro. Será Emilia Pérez outro A Regra do Jogo ou Veio do Outro Mundo? O tempo dirá. E dir-nos-á que a resposta é não.

Há muita especulação sobre se este último escândalo irá arruinar não só as hipóteses de Oscar de Gascón, mas também todos os potenciais Oscars para Emilia Pérez. Depende do facto de os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas optarem por desafiar as críticas inflamadas e continuarem a apoiar o filme. É claro que este órgão representativo da indústria cinematográfica de Hollywood tem uma tendência liberal e vota nos Democratas, no que diz respeito à política, e está sempre a tentar desajeitadamente apresentar a sua boa fé progressista. As tentativas desajeitadas de inclusão têm sido muitas vezes embaraçosas, como refere o crítico David Opie do Yahoo ao chamar a Emilia Pérez um “desastre inovador”.

Mais estranho ainda é o facto de Emilia Pérez ter sido acarinhado por tantos cineastas talentosos. Guillermo del Toro liderou o coro de elogios ao filme, seguido por realizadores de renome como Denis Villeneuve, Michael Mann, Paul Schrader, Nicole Holofcener, James Cameron, Jason Reitman, Reinaldo Marcus Green, Oliver Stone e Taylor Hackford. Certamente que isto nos deve fazer ponderar - os realizadores de topo deveriam ser capazes de reconhecer um bom filme quando o veem, certo?

Mas quando se pensa em confiar nas opiniões dos profissionais do cinema, é preciso ter em conta como funciona a votação para os Óscares. Geralmente, os profissionais estabelecidos nomeiam os seus colegas profissionais - os atores votam nos atores, os diretores de fotografia nos diretores de fotografia, os montadores nos montadores e, obviamente, os realizadores nos realizadores.

No entanto, quantas vezes é que você se agarrou à cabeça com horror, ou riu histericamente, quando viu a lista dos nomeados deste ano?

Emilia Pérez já teve uma boa hipótese de se juntar a Green Book - Um Guia Para a Vida na vergonhosamente grande categoria de Prémios Mais Embaraçosos de Melhor Filme atribuídos pela Academia. Mas talvez agora essa possibilidade esteja a diminuir.


Eileen Jones é crítica de cinema na Jacobin, apresentadora do podcast Filmsuck e autora de Filmsuck, USA. rtigo publicado na Jacobin. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net