Os eleitores da Índia fizeram pela democracia indiana o que a comissão eleitoral e o poder judicial do país não conseguiram fazer: sancionar e repreender o primeiro-ministro Narendra Modi por tentar colocar hindus e muçulmanos uns contra os outros e pelas suas ligações privilegiadas com as grandes empresas - cujos donativos suspeitos alimentaram políticas governamentais que aumentaram a desigualdade e as dificuldades.
Após dez anos no poder [desde 26 de maio de 2014], Modi perdeu a maioria parlamentar de que dispunha o seu partido, o Bharatiya Janata Party [BJP - Partido do Povo Indiano, a ala política da organização fascizante Rashtriya Swayamsevak Sangh, RSS - Organização Nacional Voluntária criada em 1925], e tem agora de liderar um governo minoritário com o apoio dos seus parceiros de coligação, alguns dos quais são notoriamente inconstantes. O facto de nunca ter liderado uma coligação real - e não teórica - não o ajudará. Há três anos, quando o partido sikh indiano Shiromani Akali Dal o desafiou por causa das suas controversas leis agrícolas, Modi manteve-se impassível e foram os Akalis [sikhs] que tiveram de se retirar da coligação Aliança Democrática Nacional (NDA). Mas os aliados - o Telugu Desam Party-TDP, presente em Andhra Pradesh, com 16 deputados, e o Janata Dal-United, presente em Bihar, com 12 deputados - que os eleitores indianos lhe deram agora não vão pegar na sua jhola (bagagem) e sair. [Estes dois partidos aliados têm em vista o lugar de presidente da Câmara baixa; as negociatas entre os partidos da coligação remontam a antes de 2014]. Eles terão a capacidade de derrubar o seu governo [1].
Com um ar valente, Modi saudou o seu regresso ao poder pela terceira vez como um “feito histórico”. Na realidade, o resultado representa um amargo revés pessoal para um homem tão convencido da sua invencibilidade que até começou a reivindicar origens divinas. “Enquanto a minha mãe foi viva”, disse numa entrevista no auge da campanha eleitoral, “tive a impressão de que talvez tivesse nascido biologicamente. Mas depois da sua morte, quando examinei todas as minhas experiências, convenci-me de que foi Deus que me enviou. A energia [que tenho] não vem de um corpo biológico". O eleitorado fez cair por terra este autoproclamado mensageiro de Deus.
Índia
Com a democracia ameaçada por Modi, será que as eleições podem ser justas?
Priya Chacko | The Conversation
Além disso, a reivindicação de Modi à divindade surgiu na mesma entrevista em que mentiu sobre um discurso eleitoral que tinha feito no início da campanha. Em Banswara [sul do Rajastão], descreveu inequivocamente os muçulmanos da Índia como “infiltrados” [implicando a sua exclusão] e pessoas que têm “mais filhos”. Modi não só insultou os muçulmanos, como tentou alimentar as ansiedades irracionais dos eleitores hindus da Índia, mostrando-lhes que era o único líder capaz de impedir a oposição de confiscar as suas propriedades e bens e de os entregar aos muçulmanos.
Modi repetiu depois esta acusação, com pequenas variações, em todos os comícios. O seu partido criou vídeos de animação repugnantes destinados a assustar os hindus e a fazê-los acreditar nesta afirmação absurda. Noutra entrevista, distorceu as conclusões duvidosas de um estudo amplamente difundido por investigadores do seu próprio instituto - publicado para coincidir com a retórica eleitoral anti-muçulmana que estava a promover - para convencer os hindus de que a população muçulmana da Índia estava a crescer tão rapidamente que os hindus seriam em breve ultrapassados.
Porque é que Modi está tão obcecado com os muçulmanos? Antes de mais, faz parte do seu ADN político. A sua carreira começou na organização-mãe do BJP, o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), e foi construída em torno da crença do RSS de que a Índia é uma nação hindu que foi escravizada pelos muçulmanos durante 800 anos. Modi argumenta que os muçulmanos indianos de hoje - estatisticamente um dos grupos mais pobres do país - são de facto “privilegiados” e gozam de mais direitos e benefícios do que os hindus, e que a Índia não pode alcançar a glória enquanto continuar a “conciliação” com os muçulmanos.
Mas há uma segunda razão para o recente recrudescimento da sua retórica anti-muçulmana. Quando se vai para uma eleição com pouco para apresentar em termos de realizações concretas - o desemprego [42,3% dos licenciados indianos com menos de 25 anos estavam desempregados em 2021-22, enquanto as pessoas com menos de 35 anos constituem 66% da população] e o desespero rural são generalizados e 800 milhões de indianos subsistem com os cereais gratuitos fornecidos pelo governo - ajuda a desviar a atenção dos eleitores com uma série de ataques aos muçulmanos. Foi o que Modi e o seu partido fizeram.
É segredo de Polichinelo que fazer campanha eleitoral apelando direta ou indiretamente à religião é ilegal ao abrigo da nossa lei eleitoral (a história do país é secularista) e pode resultar na proibição de um político se candidatar a eleições durante seis anos. No entanto, Modi calculou corretamente que os três comissários eleitorais encarregados de aplicar esta lei (e escolhidos por ele para o cargo) não dirão nada [2]. Quando os cidadãos se dirigiram ao Supremo Tribunal de Deli para pedir à Comissão Eleitoral que apresentasse uma queixa contra Modi pelos seus discursos de ódio, foi-lhes dito que tinham de confiar na Comissão Eleitoral. Esta, como é óbvio, não fez nada, e quando perguntaram ao Comissário Chefe das Eleições (depois de terminadas as eleições) porque não tinha atuado, respondeu que os tribunais tinham rejeitado as petições que pediam à CE para atuar.
Os tribunais e a Comissão Eleitoral podem ter passado a batata quente e não ter feito nada, mas, para grande desgosto de Modi, um número suficiente de eleitores hindus percebeu o seu jogo e decidiu que não ia trocar a sua preocupação com o presente pelo conflito civil que Modi, o Primeiro-Ministro, estava claramente a tentar provocar. Em Uttar Pradesh e Maharashtra, a percentagem de votos do BJP caiu. Até mesmo Ayodhya [Uttar Pradesh], que ocupa um lugar especial na política chauvinista de Modi [3], decidiu desiludi-lo. No Rajastão e em Haryana, os eleitores rurais zangados com as políticas anti-agrícolas de Modi apoiaram a oposição. Em toda a Índia, nada menos do que 22 ministros em funções, cerca de um quarto do seu gabinete, perderam os seus assentos.
Graças a um campo de batalha eleitoral enviesado pelo poder financeiro do BJP, pelo facciosismo dos principais meios de comunicação social e pela sua própria vontade de usar a coerção do Estado contra a oposição, Modi conseguiu limitar as suas perdas e passar a linha de chegada coxeando, com a ajuda de uma coligação.
No sábado, 8 de junho, Modi prestará juramento pela terceira vez. O facto de ter sido enfraquecido é uma boa notícia para a democracia indiana, mas, na medida em que não foi derrotado, podemos perguntar-nos quais serão as suas prioridades desta vez.
Será que o seu revés eleitoral significa que já não poderá prosseguir a sua agenda chauvinista hindu? Terá ele agora de abrandar as suas tentativas de sufocar a dissidência e minar a liberdade de imprensa? Decidirá que é altura de ser menos permissivo com as grandes empresas? Ou poderá, de facto, redobrar os seus esforços para cumprir o seu programa atual?
Um amigo turco lembra-me que as coisas podem tornar-se particularmente perigosas quando um homem forte se sente mais fraco. Foi o que aconteceu com Recep Tayyip Erdogan na Turquia e não há razão para esperar que Modi seja diferente. No seu segundo mandato, Modi começou a apertar o cerco aos meios de comunicação digitais da Índia, que até agora conseguiram funcionar e chegar a milhões de leitores e telespectadores, apesar das ameaças e do assédio que transformaram os meios de comunicação tradicionais da Índia numa vergonha nacional. No seu terceiro mandato, é provável que Modi seja mais agressivo na utilização da lei contra os meios de comunicação social. Da mesma forma, tentará mais uma vez utilizar as agências governamentais responsáveis pela aplicação da lei para paralisar a oposição, atacando líderes individuais.
Se Modi continuar no caminho que tem seguido até agora, caberá aos seus parceiros de coligação e ao poder judicial intervir. O facto de Modi ser “numericamente” [maioria relativa] vulnerável aumenta a probabilidade de vir a enfrentar alguma resistência por parte destes quadrantes, mas não há garantias de que assim seja.
Nos seus dois primeiros mandatos, Modi utilizou o apoio e a boa vontade das potências estrangeiras, nomeadamente dos EUA e da Europa, como um amplificador de forças para se fortalecer politicamente. Também isto não vai necessariamente mudar. Uma vez de volta ao poder, Modi irá certamente aproveitar as oportunidades comerciais oferecidas às empresas ocidentais e o fosso cada vez maior entre os Estados Unidos e a China para dissipar as reticências suscitadas pela sua islamofobia declarada e pelas suas tendências autoritárias.
Os indianos respiram hoje mais aliviados, convencidos de que conseguiram fazer regressar a democracia indiana da beira do abismo em que se encontrava. Também sabem que não vai demorar muito para Modi voltar às suas opções programadas de forma divina. O apoio às políticas anti-muçulmanas do BJP pode ter atingido o seu auge no norte e no oeste da Índia, mas Modi está ansioso por alargar o seu alcance ao sul e ao leste. O homem gaba-se de ter um plano milenar para a Índia - uma variante tecno-corporativa da visão destrutiva do RSS - e não vai desistir dele tão facilmente. Os eleitores indianos deram um golpe fatal nessa visão, mas a verdade é que Modi está de volta. Os indianos que amam e valorizam a sua Constituição - os seus direitos, a civilização e a fraternidade - terão de se preparar para uma ronda mais decisiva, que está mesmo ao virar da esquina. Chale chalo [Vá em frente, vá em frente], como Faiz escreveu sobre a procura de um novo amanhecer, ki voh manzil abhi nahin aayi [esse destino ainda não foi alcançado]. Um porto seguro está ainda muito longe.
Siddharth Varadarajan, editor do The Wire, foi professor na Universidade de Nova Iorque e em Berkeley. Artigo publicado em The Wire em 6 de junho de 2024 e republicado por A l'encontre
Notas:
[1] O BJP, que tinha gozado de uma forte maioria nas duas legislaturas anteriores, obteve apenas 240 lugares (uma perda de 63 lugares), muito aquém dos 272 necessários para formar um governo de pleno direito. A coligação NDA obteve 293 dos 543 lugares da Câmara Baixa do Parlamento. A aliança INDIA-Indian National Developmental Inclusive Alliance - que inclui 26 partidos - é liderada pelo Partido do Congresso Nacional de Rahul Gandhi, com 99 lugares, um ganho de 47 lugares. A aliança obteve 236 lugares, mais do que o esperado, com vitórias regionais maioritárias em estados como Uttar Pradesh, Maharashtra e Bengala Ocidental (Red. A l’Encontre).
[2] Na véspera das eleições, no início de março, “o Governo indiano anunciou a aplicação de uma lei que estigmatiza os muçulmanos, negando-lhes os direitos concedidos às outras religiões. Esta pretensa reforma da cidadania tinha sido aprovada pelo Parlamento em dezembro de 2019, mas nunca tinha sido aplicada. Na altura, desencadeou a maior mobilização do país e três meses de manifestações que terminaram em derramamento de sangue, com pogroms anti-muçulmanos desencadeados por fanáticos hindus no norte de Deli. Cinquenta e três pessoas foram mortas". (Le Monde, 13 de março de 2024) Esta lei introduz um critério religioso para a obtenção da nacionalidade. (Red. A l’Encontre)
[3] Uma cidade em Uttar Pradesh onde o templo de Ram - o 7º avatar do deus Vishnu - foi inaugurado por Modi em 22 de janeiro de 2024, ocupando o lugar de uma mesquita histórica, com o objetivo, segundo Modi, de estimular o “nacionalismo cultural hindu”. (Red. A l’Encontre)