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“É ao nível da prevenção e da intervenção pós-fogo que o Governo tem sido mais negligente”

Em entrevista ao Esquerda.net, o engenheiro agrónomo e ex-deputado do Bloco de Esquerda Ricardo Vicente fala, entre outras matérias, sobre a política de prevenção e combate a incêndios em Portugal e as preocupações a ter no rescaldo do incêndio na Serra da Estrela. Por Mariana Carneiro.
Foto Rádio Brigantia

Os incêndios de Pedrógão Grande em 2017 vieram comprovar que as alterações climáticas trazem desafios adicionais ao setor florestal. A política de prevenção e combate a incêndios em Portugal que tem vindo a ser seguida pelo atual governo reflete uma maior valorização do seu impacto?

Regra geral, não. Houve algumas melhorias ao nível do combate e da proteção das populações contra incêndios, nomeadamente na revisão dos períodos de risco que estão hoje melhor avaliados e na mobilização dos meios de combate e salvamento que estão agora disponíveis durante períodos mais largos, estendendo-se a junho e outubro, meses em que decorreram os megaincêndios de 2017. Este ano por exemplo foi visível o esforço acrescido na evacuação de povoações em risco. Continua, contudo, a haver uma enorme carência de formação profissional entre os vários agentes que o Governo insiste em tratar mal: bombeiros, sapadores florestais e vigilantes da natureza. O Governo julga que os incêndios e as alterações climáticas se podem prevenir e combater com base em trabalho precário, mal pago e tantas vezes com défice de qualificações e de equipamentos de proteção individual. Como se pode admitir que um sapador florestal, que diariamente carrega moto-roçadoras e moto-serras às suas costas, que trabalham na prevenção todo o ano e tantas vezes são a primeira linha de ação nas primeiras ignições, estejam a receber o salários mínimo?

Além de políticas desadequadas no combate, é ao nível da prevenção e da intervenção pós-fogo que o Governo tem sido mais negligente. Maioritariamente, as áreas ardidas desde 2017 estão atualmente abandonadas e entregues ao surgimento de espécies invasoras, ou foram replantadas de eucalipto em mancha contígua. O Governo não se empenhou seriamente na mudança da estrutura florestal apesar da adaptação às alterações climáticas exigir um forte combate às monoculturas paisagísticas de espécies de crescimento rápido e ao abandono das terras agrícolas. Esta mudança é essencial para prevenir mega-incêndios, mas também para proteger recursos hídricos e responder às secas meteorológicas.

Sobre o atual Plano de Ação Nacional para prevenir e combater incêndios, o Observatório Técnico Independente emitiu um relatório no ano passado onde deram conta que o mesmo não considerava a influência das alterações climáticas. Não é por falta de assessoria nem de suporte científico na formulação de políticas que o Governo é negligente nesta matéria.

Que recomendações foram elaboradas ao longo dos últimos anos no que concerne à adaptação dos territórios rurais às alterações climáticas?

Foram muitas e não vou certamente elencar todas, mas destaco algumas das que me parecem mais relevantes. A) Para responder às alterações climáticas e para lidar com eventos extremos é necessário planear e executar políticas com elevadíssimo grau de rigor, pois aqui não existem segundas oportunidades e os erros pagam-se muito caro. Para que isto seja possível, é necessário em primeiro lugar ter o suporte de dados atualizados e fidedignos e há muitas lacunas neste campo. Dou dois exemplos: 1) há um mapa nacional de perigosidade de incêndios que é determinante para a aplicação de várias políticas e devia ser revisto, pois aquando da sua formulação ignoraram a variável “concentração de combustíveis”, pelo que no essencial a perigosidade é atribuída em função do histórico de incêndios nos últimos anos, deixando de fora áreas onde o risco é muito elevado apesar de não arderem há alguns anos. 2) O último inventário florestal nacional data de 2015 e é suportado por estatísticas anteriores. Assim, todas as transformações em território florestal ocorridas desde então estão ausentes das estatísticas e das políticas de planeamento atuais.

B) Da recomendação anterior resulta a necessidade de rever os Planos Regionais de Ordenamento Florestal, que foram revistos em 2019 com base em estatísticas e pressupostos desatualizados e inapropriados.

C) É necessário avaliar os sucessos e insucessos das ferramentas de política pública implementadas no passado face aos seus objetivos estabelecidos ao nível do combate, da gestão e do ordenamento florestal, para poder melhorar as políticas atuais e futuras. Não é sério anunciar novas medidas após cada novo incêndio sem o suporte desta análise e aprendizagem.

D) Promover a gestão coletiva da floresta, com especial destaque para os pequenos proprietários do centro e norte do país, onde há maior vulnerabilidade aos incêndios e maiores necessidades de capacitação.

E) Transformar a paisagem, garantindo não só a descontinuidade dos combustíveis mas também a heterogeneidade da floresta e a construção de paisagens funcionais.

F) Aproveitar a transposição do novo quadro comunitário e os 10 mil milhões de euros da Política Agrícola Comum (2021-2027) para corrigir as regras de atribuição destes apoios públicos, através de maior equidade social e territorial, deixando de excluir metade dos agricultores do país e evitando o abandono da agricultura em territórios mais vulneráveis.

Todas as recomendações acima referidas foram lançadas por organismos institucionais, criados pela Assembleia da República ou pelo próprio Governo.

Quais dessas recomendações foram, efetivamente, implementadas no terreno? E o que tem vindo a ficar por fazer?

A produção de dados atualizados e fidedignos e a avaliação dos sucessos e insucessos ao nível do delineamento e aplicação de políticas públicas de prevenção e combate a incêndios tem sido consecutivamente recusada pelo Governo, sendo que o Plano de Ação lançado há pouco mais de um ano – apesar de prometido logo após os incêndios de 2017 – não teve este suporte e rigor. Os Planos Regionais de ordenamento Florestal continuam a contemplar o povoamento puro de eucalipto como prioritário em todo o país e o Governo recusa-se a fazer a sua revisão. Ao nível da gestão coletiva da floresta, o Governo deitou por terra toda a mobilização gerada em torno da criação das Zonas de Intervenção Florestal até ao momento e as Unidades de Gestão Florestal como forma de capacitar os pequenos proprietários para a gestão coletiva nunca passaram de uma Lei. Também os baldios continuam quase abandonados pela política pública, com uma imensa escassez de meios para possibilitar uma gestão adequada.

O anunciado programa de transformação da paisagem tem pouco de transformação e limita-se essencialmente à gestão de combustíveis, através da criação de mosaicos e de faixas de gestão de combustível. Tem contudo uma dimensão essencial para travar o abandono de pequenas explorações agrícolas em territórios vulneráveis, as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), mas o Governo já demonstrou não estar interessado em alocar o necessário investimento público a esta medida. Parece preferir ter uma despesa maior no combate e no suporte de prejuízos… Não há medidas relevantes para promover florestas mistas, recuperar as vastas áreas de pinhal onde esta é a única espécie florestal que se pode manter naqueles solos (ex: altitude e cordões dunares) e que tem atualmente o seu património genético em risco .

Consideras que as atuais políticas são formuladas com vista a responder ao interesse público ou estas acabam por ser feitas à medida dos grandes interesses económicos e fundiários?

No que diz respeito aos territórios rurais, a resposta ao interesse público para o Governo serve apenas para fazer anúncios, em especial quando o país está em chamas ou se aproximam eleições. A programação da aplicação dos subsídios da PAC até 2027 é um exemplo disso. O dinheiro está a ser quase todo canalizado para grandes proprietários a sul do Tejo, muitos que colocam gado em condições indignas em milhares de hectares para justificar subsídios, e para o grande agronegócio em forma de sobrelucro. As medidas agroambientais continuam a ser entregues sem depender de resultados e em função das áreas declaradas, trancadas aos beneficiários que têm históricos com décadas. Estas decisões estão desprovidas de qualquer diagnóstico sério das necessidades do país. Quando as alterações climáticas obrigam a uma enorme e urgente transformação, o Governo quer manter tudo como sempre esteve e satisfazer as suas clientelas habituais.

O recente incêndio na Serra da Estrela deu azo a críticas sobre, nomeadamente, a coordenação dos meios de combate. Que lições devem ser tomadas sobre este evento, que se traduziu numa perda ambiental, social e económica incalculável?

Há uma lição que não é nova e que parece difícil de se encaixar na cabeça dos decisores políticos, do Governo à Assembleia da República: os incêndios e os eventos extremos não se adaptam às decisões orçamentais e às prioridades politico-partidárias que relegam a política agroflorestal para último plano. As perdas ocorridas este ano na Serra da Estrela são irreparáveis, pelo menos para as gerações atuais e para as próximas duas gerações. Teria de ser assim? Não. Ao nível do combate, o Governo atual e os governos passados maltrataram muitos agentes da proteção civil, com condições de trabalho desadequadas, os prejuízos gerados pelos incêndios são certamente bem mais avultados do que os custos de eliminação destas fragilidades que delapidam a base do sistema. Ao nível da coordenação está bem relatada a necessidade de criação de uma interagência, tal como recomendado nos últimos anos, mas o Governo criou a Agência de Gestão Integrada de Fogos Rurais subvertendo a lógica da recomendação e concentrando nela um excesso de responsabilidades que só dificultam em vez de tornar o sistema mais ágil.

Que preocupações devem estar na ordem do dia, e que medidas devem ser acionadas no imediato, para reparar os danos causados à biodiversidade da Serra da Estrela?

Segundo dados do Observatório Técnico Independente, o país demora em média três anos a concretizar medidas de estabilização pós-incêndio. Estas intervenções que visam a salvaguarda dos solos, da água e da biodiversidade, impedindo a erosão e o arrastamento de cinzas tóxicas até às linhas de água, deviam ocorrer antes das primeiras chuvas. Para já o mais importante do ponto de vista ambiental é evitar que este erro se repita mais uma vez. Importante também é a identificação de espécies ameaçadas (vegetais e animais) e o delineamento de medidas urgentes que visem a sua proteção (ex: garantia de abastecimento de água, alimento e abrigo aos animais que sobreviveram ao incêndio; desobstrução de linhas de água; recolha e preparação de sementes e plantas para garantir reflorestação em áreas onde não seja possível a regeneração natural). Planeamento e alocação de meios para monitorização e concretização da recuperação.

O incêndio na Serra da Estrela traz à memória o incêndio no Pinhal de Leiria, que ocorreu há cinco anos. Qual o balanço das medidas que foram implementadas para mitigar o seu impacto?

No Pinhal de Leiria não houve qualquer intervenção de estabilização de emergência pós-fogo antes do primeiro inverno e ainda hoje se desconhece qualquer estratégia para proteger a biodiversidade local ou para controlar as plantas invasoras. O Governo criou uma Comissão Científica para produzir recomendações para a recuperação das áreas ardidas de todas as matas litorais, mas ignorou a maioria das suas recomendações nos anos seguintes. Limitou-se a anunciar investimentos desprovidos do exercício de planeamento, tendo lançado o Plano de Gestão Florestal apenas em 2022, cinco anos depois dos incêndios. O documento foi produzido à pressa em véspera de eleições e não tem consistência técnica face às necessidades da mata e às recomendações científicas que o próprio Governo encomendou a um conjunto de reconhecidos especialistas.

 

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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