Há 40 milhões de anos, a Antártida estava coberta por grandes florestas. Também há 25 mil anos, metade da Europa estava coberta de gelo e a outra parte eram estepes frias. Graças à paleontologia hoje sabemos que a vegetação em todo o mundo foi mudando à medida que iam sucedendo as alterações climáticas. Já o dizia Humboldt, a vegetação e o clima estão ligados.
Agora, com a nossa inação climática, aceitámos que o clima mude, também devemos aceitar que a vegetação o faça. É ilusório querer conservar a vegetação do século XX com o clima do século XXI. Igualmente, a gestão florestal do século XXI não pode ser como a do século XX, quando o clima era menos árido.
Fig. 1 Concentração de CO2 na atmosfera (em ppm) ao largo dos anos 1960-2020. A cores mostra-se o aumento de temperaturas à escala global (climate stripes). Também se indicam as diferentes reuniões internacionais para debater as alterações climáticas. Tadzio Mueller / Wiebke Witt / Marius Hasenheit / Sustentio, CC BY
Os grandes incêndios florestais
Os grandes incêndios não acontecem por uma única causa. São originados pela coincidência de ignições em período de seca e condições meteorológicas adversas (ondas de calor, vento), em zonas com vegetação continua e facilmente inflamável. Estas zonas são muitas vezes constituídas por matos e vegetação em estádios iniciais após o êxodo rural (incluindo florestas jovens) ou plantações densas geridas de forma inadequada.
As mudanças climáticas intervêm na equação porque aumentam a estação propícia a incêndios, agudizam as secas, incrementam a mortalidade das plantas (e a biomassa seca) e fazem também aumentar a frequência de condições meteorológicas favoráveis aos incêndios (por exemplo, ondas de calor).
Mas o grande aumento de incêndios que ocorreu na história recente de Espanha é independente das alterações climáticas, e está associado, principalmente, ao abandono rural. A diminuição da agricultura, do pastoreio e da recolha de madeira, associados à falta de gestão florestal, geram paisagens mais continuas e homogéneas, nas quais o fogo se propaga facilmente. Nestas paisagens, o papel relativo do clima nos incêndios aumenta à medida que deixamos que avancem as alterações climáticas.
A vegetação que aparece depois das secas e incêndios recorrentes será diferente da atual, porque muitas espécies podem não estar adaptadas a esses novos regimes climáticos de incêndio. Presumivelmente, a nova vegetação será menos densa e menos florestal, e com mudanças na composição das espécies.
Podemos deixar que as secas e os incêndios vão adaptando as paisagens ao novo clima. O problema é que esses grandes incêndios podem ter consequências sociais e económicas. Uma alternativa é anteciparmo-nos aos incêndios.
O que podemos fazer?
Para evitar esses grandes incêndios que prejudicam a sociedade, devemos adaptar a nossa paisagem e o nosso comportamento à novas condições ambientais. Isto inclui gerar paisagens que sejam mais resilientes ao regime climático e de incêndios que aí vem. Para isso podemos colocar em marcha estratégias como as seguintes:
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Gerar paisagens heterogéneas:
As descontinuidades na paisagem e nos mosaicos agroflorestais reduzem a propagação de incêndios. Isto é especialmente importante nas zonas próximas das povoações. Existem diversas estratégias para alcançar este objetivo, por exemplo:
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Apoiar (com políticas de apoio) o mundo rural, a agricultura e o pastoreio extensivo, assim como o consumo de proximidade;
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Aumentar as populações de herbívoros naturais nas zonas apropriadas para eles;
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Realizar ações de gestão florestal em zonas críticas, como corta-fogos, prescrição de queimas e pastoreio, e tratamentos silvícolas.
Todas estas ferramentas não são excludentes, podem combinar-se segundo as características socioeconómicas do terreno. Certamente que estimular o mundo rural é fácil de dizer, especialmente de uma perspetiva urbana. Mas em Espanha, por exemplo, não é evidente que exista população suficiente disposta a voltar à vida rural e gerar uma mudança significativa na paisagem. Talvez pudesse ajudar uma política de imigração que ofereceria essa possibilidade a pessoas que chegam em busca de condições melhores do que aquelas que encontram nos seus países de origem.
Fig. 2 - Paisagem na zona de Gátova (Valência) depois de um incêndio no Verão de 2017. Alternar zonas agrícolas em zonas de floresta (mosaicos agroflorestais) ajuda a travar a propagação dos incêndios. Foto de Juli G. Pausas.
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Aprender a conviver com os incêndios
Eliminar os incêndios das nossas paisagens é impossível e contraproducente, especialmente no contexto das alterações climáticas. O objetivo da gestão é criar condições que gerem regimes de incêndios sustentáveis tanto ecológica como socialmente.
Focar as políticas de gestão de incêndios unicamente na sua extinção pode gerar incêndios grandes e intensos. É mais sustentável ter muitos incêndios pequenos e pouco intensos, do que poucos incêndios de grandes dimensões e intensos.
Para alcançar estes objetivos é necessário profissionalizar os atores que intervêm na prevenção e na extinção dos incêndios florestais. São eles quem podem gerar os regimes de incêndios sustentáveis, mas, em muitas ocasiões, trabalham em condições precárias.
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Minimizar e assumir riscos
Devemos evitar construir casas e infraestruturas em zonas com floresta mediterrânica altamente inflamável, e reduzir ao máximo o interface urbano-florestal. Este tipo de ações não só reduz o perigo para as pessoas e infraestruturas, também reduz as ignições. Entre os mecanismos para o conseguir incluem-se a requalificação dos terrenos (para não urbanizáveis) e a implementação de taxas (dissuasoras) para construir em áreas com alto risco de incêndios, entre outras.
Em zonas já construídas, é necessário assegurar que se façam ações de autoproteção, como a implementação de faixas de segurança com pouca vegetação (ou com cultivos) à volta das casas, ou mesmo implementar sistemas de irrigação prescrita. É importante assegurar que as casas tenham seguro contra incêndios florestais, e que não esperem que os bombeiros, necessariamente, as protejam. Há que assumir riscos, responsabilidades e custos se se deseja viver no meio de paisagens altamente inflamáveis ao invés de numa zona urbana.
Durante as ondas de calor, seria conveniente reduzir a mobilidade nas montanhas e em zonas de interface (urbano-florestal e agrícola-florestal) para minimizar o risco de ignições.
Fig. 3 - Exemplo de interface urbano-florestal numa paisagem altamente infalmável na Costa Brava (Platja d’Aro, Barcelona). Casas numa matriz altamente inflamável, como é este caso, mais cedo ou mais tarde se verão afetadas por um incêndio, é uma questão de tempo. Foto Google Maps.
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Conservar as florestas húmidas e os pântanos
Devemos conservar e restaurar as florestas nos micro-habitats húmidos (refúgios), para aumentar a sua resiliência às mudanças climáticas.
Há que potenciar o restauro de pântanos e outros ecossistemas litorais, os quais, além do benefício para a biodiversidade, mantém o ciclo da água e contribuem para a conservação do clima.
A degradação da costa (dessecação das zonas húmidas e a sobre-urbanização) contribui para a redução da precipitação e para o aumento de gases de efeito estufa (vapor de água). Potenciar vegetação em zonas urbanas (jardins, árvores nas ruas) também contribui para a conservação do clima, além de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.
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Restaurar com espécies vegetais mais resistentes
O restauro dos ecossistemas não tem de ter como referência o passado, mas sim o futuro. Em projetos de restauro, e nas plantações, devem utilizar-se espécies (ou populações das mesmas espécies) mais resistentes à seca e aos incêndios, do que as que existiam antes. Por exemplo, espécies e populações que atualmente se encontram em zonas mais secas ou com mais incêndios. Isso seria mais sustentável do que utilizar as estações florestais de alta qualidade, que foram usados no clima do século passado.
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Reduzir o consumo de combustíveis fósseis
Isto é a chave para travar o aumento de gases de efeito estufa, e assim reduzir a velocidade das alterações climáticas e a frequência das ondas de calor.
Este Verão teremos grandes incêndios principalmente no Oeste do Mediterrâneo, assim como no Verão passado os tivemos no Este, de acordo com a distribuição das ondas de calor de cada ano. Não há nenhuma novidade nem nenhuma surpresa nisso. Está tudo dentro do esperado se continuarmos sem adaptar a paisagem e o nosso comportamento às novas condições do século XXI. O fogo e as secas o farão por nós.
Juli G. Pausas é investigador do 'Centro de Investigación sobre Desertificación' (CIDE, Valencia) e membro do Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), em Espanha. A sua investigação centra-se em ecologia e evolução em ecossistemas propensos ao fogo e, especialmente, na compreensão do papel do fogo e de outras perturbações na formação da biodiversidade em diferentes escalas biológicas (populações, espécies, comunidades, paisagens e biomas).
Artigo originalmente publicado no site theconversation.com, aqui
Tradução de Marco Marques para o Esquerda.net.