Duarte Cordeiro e o silêncio que queima

porRicardo Vicente

16 de julho 2022 - 22:31
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Não faltam motivos para tocar todas as sirenes de alarme a respeito da política de prevenção e combate a incêndios em Portugal e no essencial tal não se deve aos incêndios nem à onda de calor que decorrem no momento, mas sim à combinação de três tristes realidades.

Não faltam motivos para tocar todas as sirenes de alarme a respeito da política de prevenção e combate a incêndios em Portugal e no essencial tal não se deve aos incêndios nem à onda de calor que decorrem no momento em que escrevo este texto, mas sim à combinação de três tristes realidades: 1) desvalorização dos impactos das alterações climáticas pelo Governo; 2) continuidade de políticas que contrariam o interesse público e favorecem grandes interesses económicos e fundiários; 3) uma enorme resistência política à concretização de algumas medidas recentemente delineadas e que correm o risco de não passar de ensaios. A situação atual representa uma enorme irresponsabilidade dos sucessivos Governos de António Costa, que nas suas declarações públicas a respeito dos incêndios mais recentes comportou-se sempre como se fosse um ministro acabado de chegar, nunca assumindo a responsabilidade de quem já governava o país aquando dos incêndios de Pedrógão Grande em 2017. De seguida vou descrever algumas das situações que se enquadram nas três realidades acima referidas, sendo certo que não faltam outros exemplos.

1) Desvalorização dos impactos das alterações climáticas

Na sequência dos incêndios e dos eventos extremos de 2017 foram constituídas Comissões Técnicas Independentes e um Observatório Técnico Independente (OTI) que ao longo dos últimos anos elaboraram imensas recomendações que, na sua maioria, foram ignoradas pelo Governo, em especial no que diz respeito à adaptação do território às alterações climáticas, o que obriga a uma enorme e urgente mudança na estrutura florestal assim como no sistema de proteção civil. Criou-se um quase consenso de que o antigo Sistema de Defesa da Floresta Contra Incêndios devia transitar para um Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, acompanhado da criação de uma interagência que fortalecesse a coordenação dos agentes. António Costa e o seu Governo anunciaram esta transformação, mas a montanha pariu um rato. A AGIF não funciona como interagência. Depois de muitos atrasos, de muita ocultação de informação e atropelos à participação pública informada, o Governo deu a conhecer o seu plano de ação e os especialistas do OTI emitiram um relatório sobre o mesmo, em julho de 2021, onde se pode ler: “identificaram-se um conjunto de lacunas das quais se destacam o insuficiente tratamento dado a áreas como as alterações climáticas, ordenamento florestal,”(…) “a falta de reflexão e de propostas de ação associadas às alterações climáticas constitui provavelmente a maior e mais grave omissão neste PNA [Plano Nacional de Ação]”.

Os Planos Regionais de Ordenamento Florestal continuam a considerar os povoamentos puros de eucalipto e pinheiro bravo como prioritários em todo o país

Segundo os autores, “vários estudos existentes estimam que o perigo meteorológico de incêndio e a área ardida aumentem respetivamente entre 2-4% e 5-50% por década no sul da Europa”. Destacam ainda que, para se conseguir prever condições adversas de incêndio e dirigir intervenções de adaptação às alterações climáticas é conveniente ter dados atualizados sobre a floresta, nomeadamente sobre a sua constituição e carga combustível, mas isso não existe em Portugal. Atente-se que o último Inventário Florestal Nacional data de 2015 e refere-se ao ano 2013 e foi precisamente este documento que suportou a revisão dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal em 2019, num Governo de António Costa. Os PROF continuam a considerar os povoamentos puros de eucalipto e pinheiro bravo como prioritários em todo o país e perante a falta de acompanhamento e monitorização, o atual presidente da AGIF, agência com tutela direta do Primeiro Ministro, Tiago Oliveira, sugeriu recentemente que seja transferido para as associações de proprietários florestais a responsabilidade de ajustar e implementar os mesmos, desvalorizando a necessidade dos PROF serem revistos. Percebe-se, António Costa elegeu como homem de confiança para este efeito um ex-funcionário da The Navigator Company e assim a intenção é clara: a indústria da celulose deve continuar intocável e os pequenos proprietários florestais e populações locais, desta forma, a ser vítimas dos seus interesses.

2) Continuidade de políticas que contrariam o interesse público

O delineamento do novo Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais foi concretizado sem uma avaliação séria dos fracassos e sucessos do modelo anterior face aos seus objetivos e dessa forma mantiveram-se muitas receitas que até hoje nunca se demonstraram capazes para atingir as metas estabelecidas. O Observatório Técnico Independente deu conta disso mesmo com exemplos concretos quando o Governo tornou público o Plano de Gestão Integrada de Fogos Rurais, mas as suas críticas e recomendações foram ignoradas.

No momento atual, o exemplo mais evidente da continuidade de uma política que contraria o interesse público neste campo, encontra-se na gestão dos cerca de 10 mil milhões de euros da nova Política Agrícola Comum (PAC). Este é o principal envelope financeiro destinado aos territórios rurais nesta decisiva década para que se possa cumprir os acordos internacionais e limitar o aquecimento global a um máximo de 2ºC. Também aqui estão a ser ignoradas as alterações climáticas e por este motivo até a Comissão Europeia acabou por solicitar alterações ao Plano Estratégico apresentado pelo Governo em dezembro de 2021. Seria fundamental que esta política deixasse de excluir praticamente metade dos agricultores e fosse adaptada à realidade territorial e socioeconómica do país que é muito diversa, mas pelos atos e intenções demonstradas até ao momento pelo Governo, deduz-se que continuará a responder apenas aos grandes interesses fundiários e do grande agronegócio. O papel da floresta na regulação do ciclo da água, o papel da agricultura na compartimentação da paisagem, prevenção de incêndios e na preservação de solos e biodiversidade podem continuar a servir apenas de chavões para ministros fazerem notícias, porque o Governo até ao momento não mete o dinheiro onde mete as palavras.

3) Resistência política à concretização de medidas já delineadas

Após os incêndios de 2017, tornou-se mais evidente que os riscos de incêndio de grande dimensão e perigosidade são brutalmente crescentes nas regiões que combinam uma paisagem de combustíveis uniformizados (eucalipto e pinheiro bravo) com elevados níveis de abandono da agricultura. Neste âmbito foram desenvolvidos vários estudos que demonstram que muitos agricultores presentes em territórios vulneráveis estão excluídos dos subsídios da PAC e que entre os abrangidos, o nível de apoio é muito mais baixo do que os níveis praticados noutras regiões, como é exemplo o Alto Alentejo. Demonstrou-se também que as regiões mais vulneráveis são também as menos subsidiadas pela PAC e que garantir um tratamento social e territorialmente equitativo na atribuição destes apoios seria essencial para proteger o território e as populações locais contra incêndios. Foi até desenhada uma ferramenta de política pública que pode dar um forte contributo para corrigir esta situação, as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), mas até hoje ainda não houve um empenho sério por parte do governo para a sua implementação nos muitos territórios que podem beneficiar desta medida. De forma a poder apoiar a sua concretização é essencial que a nova PAC inclua um ecorregime destinado aos agricultores que integrem as AIGP. O anterior ministro do ambiente, Matos Fernandes, chegou mesmo a responder no Parlamento que concorda com a medida e que até deu instruções no seu ministério para que a mesma seja trabalhada. Ora, a medida está ausente do Plano Estratégico e apesar das críticas da Comissão Europeia, dos incêndios que atualmente lavram o país e dos apelos vindos da academia para que esta situação seja corrigida, o atual ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, ainda não abriu a boca sobre o assunto. António Costa também não. Deixar o tempo passar e aguardar que o silêncio instale “inevitáveis” continuidades é uma forte estratégia de compadrio com os interesses instalados e uma tragédia para o país. Duarte Cordeiro e António Costa terão os seus nomes garantidos na história climática do país pelos piores motivos. Neste caso, o silêncio queima.

No que diz respeito à gestão coletiva da floresta (que pode encontrar também um forte impulso nas AIGP), que é tão mais importante quanto mais fragmentada é a propriedade florestal, após a produção legislativa (2017), o Governo não fez qualquer esforço para a criação de Unidades de Gestão Florestal, entidade essencial para possibilitar que os pequenos proprietários beneficiem de uma economia de escala e desta forma consigam assegurar uma melhor gestão e obter rendimentos. Por fim, estamos há anos a aguardar que o Governo aplique a famosa taxa sobre as celuloses...

Ricardo Vicente
Sobre o/a autor(a)

Ricardo Vicente

Engenheiro agrónomo
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