Ditadura encerra faculdade de letras. “Gorilas” agridem estudantes

14 de maio 2023 - 11:14

Há 50 anos, em 14 de maio de 1973, o governo de Marcelo Caetano encerrou a Faculdade de Letras de Lisboa, culminando um processo de repressão das manifestações estudantis contra a ditadura. Por Álvaro Arranja.

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Faculdade de Letras de Lisboa na crise académica de 62.
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A presença de um “Corpo de Vigilantes”, no interior das diferentes faculdades, marcou o quotidiano da universidade nos últimos anos da ditadura. Eram conhecidos pelos estudantes como “gorilas”. Atuavam como uma polícia interna de cada faculdade, presente nos corredores e prontos a atuar em reuniões ou qualquer outra manifestação de protesto dos estudantes.

Na Faculdade de Letras de Lisboa, o auge do conflito entre estudantes e “gorilas”, ocorre em 11 de maio de 1973. Segundo o Diário de Lisboai, “o primeiro incidente teve lugar quando, após a interrupção de uma das raras aulas que funcionava, os vigilantes quiseram identificar os presentes”. Continuaram impondo “a dissolução de ajuntamentos de mais de quatro pessoas e recebendo nesta tarefa a colaboração do corpo de vigilantes da vizinha Faculdade de Direito”.

Diário de Lisboa de 12 de maio de 1973

Face aos acontecimentos da manhã, os estudantes marcaram uma reunião para as 14 horas no bar da Faculdade, com autorização do Diretor. Ainda de acordo com mesma edição do Diário de Lisboa, decorria a reunião “quando ao fim de poucos minutos a sua dissolução foi ordenada pelo corpo encarregado de manter a ordem na escola”. Face a mais esta imposição, “os alunos presentes (na maioria do sexo feminino) resistiram com todos os instrumentos que tinham ao alcance, afastando os vigilantes do bar e nele se barricando, com mesas e cadeiras”.

Quinze anos depois, em entrevista ao Jornal de Letrasii, o Professor Lindley Cintra (desde sempre solidário com as lutas estudantis e destacado oposicionista), recordava os acontecimentos daquele dia. Refere que “estava perto do bar da Faculdade quando se deu uma verdadeira batalha campal entre os estudantes e os “gorilas”. Foi então que “a Polícia de Choque invadiu a Faculdade pelas janelas do bar, com cães-polícia, o que nunca tinha acontecido, nem em 1962. Tentei parlamentar com a Polícia, mas não fizeram caso nenhum. Entraram pelos corredores com cães-polícias.” Tal como tinha feito em outros momentos desde 1962, tentou auxiliar os alunos vítimas da ação policial. Recorda que pegou “num estudante que estava a sangrar, para o levar para o hospital, mas tivemos de ir num carro da polícia. Depois fui com outro que tinha sido mordido pelos cães. Fui até à esquadra onde apareceu o capitão Maltês (comandante da Polícia de Choque, conhecido pelos excessos de violência cometidos sob as suas ordens) e acabei por ser identificado pela polícia”.

Professor Lindley Cintra

Às 15h30, o Diretor da Faculdade, abordado por um grupo de estudantes, dirigiu-se ao bar informando que a intervenção dos vigilantes se tinha dado por não os ter podido informar da sua decisão de autorizar a reunião, tendo então os vigilantes abandonado o local.

Alguns dos alunos feridos, depois de tratados no hospital, “foram conduzidos para o Governo Civil e daí entregues à DGS”iii (DGS era a designação da PIDE nos anos de Marcelo Caetano).

Na segunda-feira seguinte, 14 de maio, em comunicado assinado pelo Diretor, foi anunciado o encerramento da Faculdade de Letras. Dizia o comunicado, transcrito pelo Diário de Lisboa de 14 de maio e afixado na porta principal, que:

“O edifício da Faculdade está encerrado até resolução em contrário. Só poderão ter acesso o corpo docente, o pessoal da secretaria, dos institutos, contínuos e serventes. Está prevista uma solução para os alunos que deveriam, e deverão, fazer exames de frequência. As datas das provas serão anunciadas com, pelo menos, 48 de antecedência”.

A mesma edição do Diário de Lisboa informa que, na manhã do dia 14 de maio, “elementos da PSP encontravam-se em frente da Faculdade de Letras, fiscalizando a entrada do pessoal docente, da secretaria, cantina e serventes.”

O firme protesto dos estudantes e o nível de violência contra os estudantes, motivará a suspensão da presença dos “gorilas”, a partir de 16 de maio, na Faculdade de Letras de Lisboa.

Segundo o Avanteiv clandestino, “ a suspensão dos gorilas da Faculdade de Letras de Lisboa, a 16 de maio, é uma significativa vitória dos estudantes portugueses”.

A 24 de maio dá-se a reabertura da Faculdade. O Diário de Lisboav dá a notícia na primeira página, referindo ter sido “o Corpo de Vigilantes suspenso pelo Conselho Escolar após os incidentes que determinaram o encerramento do estabelecimento de ensino”. Mas um comunicado do Diretor informa que estão proibidas as reuniões de estudantes e que continua a identificação dos alunos à entrada, feita pela PSP.

O movimento estudantil entrava no último ano da ditadura com uma contestação generalizada ao regime.

Nas páginas do Avante clandestino de junho de 1973, registam-se muitas ações de contestação dos estudantes universitários. Numerosas reuniões gerais com grande participação, “1500 estudantes no Técnico, 800 em Letras e 700 em Económicas”. Greves “prolongadas ou intermitentes, mas quase sempre seguidas a cem por cento, em Letras, Técnico, Económicas, Medicina e Direito”. Manifestações de rua, “no dia 10, a partir de Sete-Rios, 400 estudantes desfilaram ao longo da Estrada de Benfica até à Segunda Circular gritando «Abaixo o Fascismo», «Fora a PIDE», «Abaixo a guerra colonial», «Fora os gorilas».” No dia 16, “a partir do Largo da Graça e até à Av. Almirante Reis, 500 estudantes desceram em manifestação com muitos cartazes. Um dos quais com quatro metros e transportado por 12 estudantes que dizia, «A juventude está contra a guerra colonial»”.

Nesse mês de maio de 1973, contra uma juventude universitária que avançava para uma contestação global do regime, a ditadura recorreu a toda a sua panóplia repressiva, não conseguindo, mesmo assim, calar a revolta estudantil, mostrando estar a perder o domínio da situação.


i Diário de Lisboa, 12.05.1973

ii Jornal de Letras, 07.06.1988

iii Diário de Lisboa, 14.05.1973

iv Avante, junho de 1973

v Diário de Lisboa, 24.05.1973