Diogo Ayres de Campos torna-se voz incómoda para direção do SNS e é saneado

29 de junho 2023 - 11:06

Em poucos dias, Diogo Ayres de Campos foi demitido da direção do Departamento de Obstetrícia e perdeu a confiança institucional da Ordem dos Médicos. Mário Macedo e Bruno Maia denunciam “perseguição” e “saneamento” do obstetra, que se tornou “um incómodo para o Governo”.

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Foto publicada na página de Facebook de Diogo Ayres de Campos.

Diogo Ayres de Campos ousou criticar as opções da direção executiva do Serviço Nacional de Saúde e da administração do Hospital Santa Maria no que respeita ao encerramento do bloco de partos desse estabelecimento hospitalar durante o verão, e a concentração de serviços no Hospital São Francisco Xavier. Não satisfeito, veio defender mudanças na prática obstetrícia. E pagou caro pela ousadia. Primeiro, foi demitido da direção do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução (DOGMR). Depois, a Ordem dos Médicos retirou-lhe a confiança. Isto no espaço de poucos dias.

Tal como escreve Mário Macedo, do Movimento Enfermeiros Unidos, na sua conta de Twitter, o seu “currículo invejável” não foi suficiente para que lhe perdoassem o “erro”. Diogo Ayres de Campos “ousou dizer o óbvio: a produção de cuidados de saúde em Portugal é arcaica e demasiado centrada nos médicos”. “O corporativismo faz mal à saúde. Não seremos livres enquanto o direito à opinião e a vontade de melhorar for castigada”, escreve ainda o enfermeiro especialista em saúde infantil e mestre em saúde pública.

O médico neurologista Bruno Maia também se insurge contra aquilo que considera ser uma “perseguição” e o “saneamento” do obstetra que se tornou “um incómodo para o Governo”.

“Começa na direção executiva que impõe a lei da rolha às administrações, segue-se a administração de Santa Maria que o exonera por ter ‘opiniões’. Finaliza com a Ordem, que dá a estocada final. Era um incómodo para o Governo, deixou de o ser!”, destaca o ex-candidato a Bastonário da Ordem dos Médicos.

A exoneração de Diogo Ayres de Campos

No dia 19, uma nota do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), presidido por Ana Paula Martins, vem dar conta da exoneração de Diogo Ayres de Campos. A administração alega que a direção do DOGMR tem vindo assumir posições que, "de forma reiterada, têm colocado em causa o projeto de obra e o processo colaborativo com o Hospital São Francisco Xavier, durante as obras da nova maternidade do Hospital Santa Maria".

Logo no dia seguinte, é divulgada uma carta enviada quatro dias antes à administração do Hospital de Santa Maria (HSM), e assinada por 34 dos 37 médicos do DOGMR desse estabelecimento hospitalar. Na missiva, é criticada a decisão relativa ao encerramento para obras do bloco de partos do Hospital de Santa Maria (HSM) durante os meses de agosto e setembro, com a concentração dos serviços no Hospital São Francisco Xavier (HSFX).

A medida, prevista no plano para a resposta de Obstetrícia e Ginecologia, traçado pela Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), liderada por Fernando Araújo, levanta sérias preocupações aos profissionais de saúde, entre os quais Diogo Ayres de Campos, que surge como primeiro subscritor.

Os 34 médicos alertam que há “apenas 11 salas de partos (2 a menos do que as necessárias) e 38 camas de Puerpério (16 a menos do que as necessárias)” e que “isto deverá resultar num maior número de períodos de sobrelotação das instalações, reduzindo a resposta conjunta na assistência ao parto em cerca de 25%”.

Acrescentam ainda que são expectáveis possíveis dificuldades de acesso das grávidas do Santa Maria ao São Francisco Xavier, face à inexistência de “linha de metropolitano” junto ao hospital e ao tempo necessário para a deslocação.

Os médicos manifestam também o seu “desagrado pela forma como a equipa se sentiu pressionada para assegurar a colaboração com o HSFX, mesmo antes de se conhecerem as instalações disponíveis neste último, antes de estarem acordadas as situações clínicas e os profissionais de saúde que seria necessário deslocar, antes de estarem acordadas as obras previstas para o HSM”.

Ainda assim, mostram-se disponíveis para uma “eventual colaboração”, caso sejam apresentadas as as plantas de remodelação do internamento do puerpério e do atual Bloco de Partos do HSM, se garanta o envolvimento do DOGMR na otimização das mesmas e se disponibilize informação sobre as datas previstas para o arranque destas obras. Os profissionais querem ver ainda ver garantida a existência de condições para que a atividade clínica no HSFX seja exercida com segurança e dignidade e que seja assegurada a presença de médicos do departamento em todas as futuras reuniões conjuntas com o hospital HSFX. Na missiva é ainda assinalado que não é expectável que a equipa médica do HSM possa assegurar a composição de mais do que três das oito equipas médicas de urgência no HSFX.

Médicos defendem Ayres de Campos e sofrem ameaças

Entretanto, os médicos do DOGMR escreveram uma nova carta, solicitando a revogação da demissão de Diogo Ayres de Campos e da diretora do Serviço de Obstetrícia Luísa Pinto. Todos os médicos do departamento, à exceção dos dois diretores demitidos, do novo responsável e de três médicos que já não fazem urgência, assinaram a missiva, em que manifestam a sua “total confiança” nos profissionais visados e elogiam o seu trabalho ímpar.

No dia 23 de junho, e perante a falta de resposta à sua solicitação, mais de uma dezena de chefes de equipa das urgências de obstetrícia do HSM apresentaram a sua demissão.

Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), revelou que os médicos já tinham atingido o limite de horas extraordinárias previstas para um ano e que “não estão disponíveis para fazer mais trabalho”. A dirigente sindical denunciou ainda as ameaças de que os profissionais foram alvo por parte do Conselho de Administração, apontando que a atitude da direção, a par de ilegal e inadmissível, é também “prepotente e arrogante”.

Ordem dos médicos retira confiança institucional ao obstetra

A polémica a envolver Diogo Ayres de Campos teve mais desenvolvimentos.

De acordo com o jornal Público, a Ordem dos Médicos (OM) retirou a “confiança institucional” a Diogo Ayres de Campos enquanto coordenador da Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e bloco de partos, e pediu o “afastamento” do médico no âmbito deste grupo de trabalho.

Em causa está uma orientação sobre os cuidados de saúde em blocos de partos elaborada em conjunto com a Direção-Geral da Saúde (DGS). A norma, que não é vinculativa, prevê, por exemplo, a assistência dos partos de baixo risco por equipas de enfermeiros especializados, bem como que esses mesmos profissionais podem proceder ao processo de internamento das grávidas.

"Enfermeiros a vigiar partos de baixo risco é uma prática que está generalizada em praticamente todos os hospitais do país e que eu saiba tanto no Garcia de Orta como no Hospital Beatriz Ângelo os enfermeiros já fazem os internamentos", explicou Diogo Ayres de Campos.

Já no que respeita ao processo de internamento das grávidas, o que consta da orientação respeita à possibilidade de o enfermeiro especialista indicar o internamento, “mas depois é o médico que preenche os papéis do internamento, faz a parte administrativa”. Ou seja, clarificou o obstetra, “isto é um pró-forma, porque o internamento pode ser revertido a qualquer momento. O que é complexo é a alta e essa continua reservada aos médicos".

Acresce que o presidente da Sociedade Europeia de Medicina Perinatal garantiu que, na última reunião do grupo que fez a orientação, que teve lugar a 20 de janeiro, "houve consenso". "Esta é a verdade absoluta", disse o médico.

"Têm todo o direito de voltar atrás, mas não é verdade que se diga que não houve consenso", acrescentou.

A versão da Ordem dos Médicos (OM) é outra. A OM alegou que “houve um completo e total desrespeito por parte do senhor coordenador do grupo de trabalho pelos indicados médicos, o que inclusive conduziu a que tivessem solicitado que os seus nomes fossem retirados da orientação, o que, lamentavelmente, ainda não sucedeu”.

Diogo Ayres de Campos lamentou a decisão da OM: "A minha posição foi e é a de apenas encontrar pontos comuns e consensos entre as pessoas. A motivação da Ordem dos Médicos para vir agora colocar tudo em causa só a Ordem dos Médicos pode esclarecer. Se for preciso tirar o meu nome da orientação para que ela seja aprovada sou o primeiro voluntário a retirá-lo, porque o mais importante é que ela se faça, é que isto seja regulamentado e que estejamos em linha com o que se faz noutros tantos países como França, Bélgica, Alemanha, Reino Unido, todos os países nórdicos, Países Baixos, etc.", vincou.