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Dezenas de pessoas transformaram o luto em luta e exigiram justiça para Daniel, Danijoy e Miguel

Este sábado, sob forte chuva, dezenas de pessoas concentraram-se em frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa para prestar homenagem a Danijoy Pontes, Daniel Rodrigues e Miguel Cesteiro e exigir justiça. Texto e fotos de Mariana Carneiro.

Danijoy Pontes e Daniel Rodrigues morreram a 15 de setembro de 2021, com apenas minutos de diferença, na mesma ala do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL). Já a 10 de janeiro, surgiu a notícia de outra morte: a de Miguel Cesteiro, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre.

Contrariamente ao que estipula a própria lei, nestes três casos, a Polícia Judiciária (PJ) não foi chamada ao local, com a agravante de todos eles “apresentarem circunstâncias suspeitas”.

As famílias dos três reclusos consideram que os seus casos são ilustrativos da “violência das prisões portuguesas, evidente nas mais de 300 mortes nos últimos cinco anos”, e que as mortes de Daniel, Danijoy e Miguel são ainda exemplo “de como as cadeias servem para punir pessoas ciganas, negras e brancas pobres, fazendo da classe e da raça essenciais à sua existência”.

E foi por isso que se juntaram, este sábado, em protesto: para exigir respostas, para exigir justiça, e para garantir que situações destas não voltam a acontecer.

A chuva intensa não demoveu aqueles e aquelas que se concentraram em frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa. Ao som de palavras de ordem como “Queremos as nossas respostas já”, “Justiça já”, “Do luto à luta”, “Justiça racista não é Justiça”, e empunhando faixas onde se podia ler “A nossa justiça pela liberdade é mais forte que as vossas grades”, “Violência policial mata”, “Ocupar as ruas”, “Contra o racismo e a xenofobia”, ou “Não somos carne para a prisão”, as dezenas de manifestantes começaram a juntar-se por volta das duas da tarde, e só abandonaram o local já perto das 16h.

A iniciativa contou com “microfone livre”, disponível para quem quisesse tomar a palavra.

Uma das intervenções foi a do secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR). Vítor Ilharco apontou que, nos últimos cinco anos, se registaram 303 mortes nas prisões, incluindo 66 suicídios.

O responsável da APAR lembrou que “o Estado garante que uma morte da cadeia tem de ser investigada profundamente, e isso não foi feito” no que concerne às mortes de Daniel, Danijoy e Miguel.

“É contra isso que nos revoltamos. Um recluso está preso nestas cadeias porque não cumpriu a lei, e o Estado não pode deixar de cumprir a lei em relação aos reclusos”, continuou.

Vítor Ilharco defendeu que “estas situações não se podem repetir”, e que “é contra isso que todos temos de lutar”.

“Trezentas e três mortes em cinco anos é um número muito elevado, temos de saber porque é que morreram, em que condições morreram, e o que é que foi feito para investigar essas mortes”, rematou.

“Queremos que isto não volte a acontecer com outras famílias”

Joel Cesteiro, filho de Miguel Cesteiro, pede justiça. Quer saber a verdade, a causa da morte do seu pai.

“Estamos aqui para saber a verdade. Até aqui, apenas me disseram o resultado da autópsia, que não revela lesões traumáticas. Mas não sei mais nada”, explicou Joel em declarações ao Esquerda.net.

“Todos os dias me pergunto por que é que o meu pai morreu. E todos os dias dói mais”, afirmou o familiar do recluso que morreu no Estabelecimento Prisional de Alcoentre.

Joel é perentório: “Se houve Justiça para os condenar, também tem de haver justiça para saber como morreram”.

“Queremos que isto não volte a acontecer com outras famílias”, vincou.

“Vou lutar até ao fim para ter justiça”

Também os familiares de Danijoy Pontes garantem que não vão baixar os braços.

“Eu exijo justiça. Quero saber o que é que matou o meu filho, quero que o culpado apareça. Quero que o Governo, a PJ [Polícia Judiciária], o presidente da República, a ministra da Administração Interna consigam descobrir o que é que está a acontecer dentro desta prisão. Hoje foi o meu filho, amanhã pode ser o filho de outra pessoa”, assinalou Alice Costa, mãe de Danijoy, ao Esquerda.net.

Para Alice, não há dúvida de que a justiça tem dois pesos e duas medidas: “O caso hoje está abafado, porque é um filho de um ‘peixe pequeno’, mas quando for o filho de um ‘peixe grande’, a verdade vai sair cá para fora”.

“Há uma justiça para pobre e uma justiça para rico. Se fosse um rico a morrer, já tinha sido feita justiça, já tinham descoberto quem o matou. Mas como é um pobre, é cão, é para o lixo. Mas esse cão não vai para o lixo. Vou lutar até ao fim para ter justiça”, assegurou.

O irmão de Danijoy também esteve presente na manifestação deste sábado. Visivelmente emocionado, frisou que, para que esta situação “não aconteça com os nossos filhos, temos de exigir justiça até ao fim”.

“Porquê? Onde está a justiça? Eu só quero saber o que aconteceu com o meu irmão”, vincou.

“A revolta é muito grande”

Luísa Correia dos Santos, mãe de Daniel Rodrigues, participou pela primeira vez numa iniciativa em homenagem ao seu filho. Antes não se sentia em condições de o fazer. Seis meses depois, ainda não teve coragem de ir buscar as coisas de Daniel, planeia fazê-lo na terça-feira.

“A morte deles foi inconclusiva. Eles fecharam o inquérito passado um mês, consideraram que foi morte natural”, esclareceu. E reforçou as garantias já dadas pelos outros familiares: “Vamos pedir justiça até ao fim. Não vamos desistir”.

Para Luísa, “a revolta é muito grande”: “Eu só tinha aquele filho, que me deixou uma neta com nove anos e meio”, apontou.

E lembrou que só passados oito dias pôde enterrar o seu filho.

“Injustiça racista e justiça por fazer”

Piménio Ferreira, ativista cigano, quando questionado pelo Esquerda.net sobre se acredita que existe uma justiça para pobres e para ricos, e uma justiça para pessoas racializadas, falou sobre “a injustiça racista e a justiça por fazer”.

Relativamente ao que se passou dentro das quatro paredes do EPL, Piménio realçou que o esclarecimento dos factos “é uma exigência, das vítimas e de quem é, minimamente, um ser humano”.

E teceu críticas a quem permite que situações destas se repitam: “O regime em que vivemos é corresponsável e é o co-autor desta injustiça racista”.

Ana Cruz, do SOS Racismo, considera que “dentro dos muros destas prisões parece não haver justiça, parece ser um mundo à parte, sem regras, sem leis, onde se faz aquilo que se quer sem ter em conta que os presos são pessoas com direito a ter justiça como qualquer outro cidadão”.

“Algo de muito estranho se passa dentro dos muros das prisões para continuarmos a ter tantas mortes sem justificação, sem investigação, e sem qualquer tipo responsabilidade”, referiu a ativista, para quem é fundamental “perceber o que se está a passar para que jovens continuem a morrer sem se perceber qual a causa, o que aconteceu e sem prestar contas a ninguém”.

Ana Cruz assinalou que “não há dúvida de que há uma atuação muito particular por parte das forças policiais” no que respeita a pessoas racializadas. “E, aparentemente, há uma despreocupação da opinião pública” que contribui para perpetuar a impunidade, lamentou.

Bloco quer estudo sobre a população prisional do país

A dirigente bloquista Beatriz Gomes Dias recordou que existiram “várias irregularidades”, os casos não foram apresentados à Polícia Judiciária e “as famílias tiveram muita dificuldade em ter acesso aos corpos, em saber o resultado da autópsia”.

“As condições em que as pessoas são mantidas no Estabelecimento Prisional devem ser corrigidas”, defendeu, fazendo ainda referência ao facto de “as taxas de encarceramento de pessoas negras, de pessoas ciganas e de pessoas pobres” serem “muito maiores face às taxas de encarceramento da restante população”.

“É preciso conhecer estes números e identificar os problemas. Muitos deles são problemas sociais que devem resolvidos a montante para diminuir estas taxas de encarceramento”, frisou.

Beatriz Gomes Dias concorda que “há uma justiça para pobres, uma justiça para ricos, e uma justiça para corpos racializados” e que “os corpos racializados continuam a ser interpretados como corpos perigosos, corpos criminosos que têm de ser contidos e encarcerados”.

“Estes preconceitos sobre pessoas negras e pessoas ciganas faz com que elas tenham penas mais altas para os mesmos crimes, que tenham prisões preventivas muito mais prolongadas do que os restantes reclusos e que tenham uma justiça que é, evidentemente, inequivocamente, diferente para elas”, alertou.

O Bloco fez uma pergunta relativamente à falta de respostas no caso da morte do Danijoy, e vai “continuar a acompanhar estes casos”.

“Queremos um estudo sobre a população prisional do país para poder verificar as diferenças das taxas de encarceramento das pessoas negras, das pessoas ciganas e das pessoas pobres" e "apresentar políticas públicas que corrijam esta desigualdade”, apontou.

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Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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