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Deputados e sigilo bancário: “Podem correr contra o tempo, mas o tempo vai apanhá-los”

O fim do sigilo bancário tem estado na agenda do debate parlamentar desde a primeira eleição do Bloco em 1999. As propostas das bancadas da esquerda tiveram sempre o chumbo garantido por parte do PS ou do PSD, consoante estavam no governo ou na oposição. Mas essa insistência acabou por obrigar os governos a promoverem tímidas aberturas à transparência fiscal.
Foto do site da Assembleia da República

Foi com a entrada do Bloco de Esquerda no parlamento, em 1999, que as propostas para acabar com o sigilo bancário ganharam espaço no debate parlamentar. Nos anos seguintes, a bancada bloquista agendaria por várias vezes propostas em nome da transparência fiscal que pusessem Portugal na lista de países onde o fisco tem acesso aos saldos bancários dos contribuintes sem necessidade de passar por tribunais ou recursos suspensivos. Também o PCP apresentou iniciativas no mesmo sentido, em particular nos debates orçamentais.

A resposta das restantes bancadas foi sempre de resistência a essa mudança, resistência expressa de forma mais tímida após a crise financeira e os escândalos da banca portuguesa. À direita, o CDS esteve sempre entrincheirado numa leitura da Constituição que remetia a questão para a salvaguarda do “direito à intimidade”, acusando as propostas de promoverem uma devassa da privacidade dos contribuintes. O PSD foi o partido que mais posições assumiu no debate sobre o fim do sigilo bancário, umas vezes votando contra, outras abstendo-se, outras ainda votando a favor, neste caso quando era oposição. O PS chumbou sempre as propostas da esquerda, tendo viabilizado uma única vez na generalidade as propostas do Bloco e do PCP no fim do primeiro governo de José Sócrates, para as anular em seguida no debate da especialidade.

2000: Quando Rui Rio alertava para o risco de fuga de capitais

As propostas para mudar o regime do sigilo bancário foram uma das bandeiras eleitorais da primeira campanha do Bloco, que elegeu Francisco Louçã e Luís Fazenda em 1999. No ano seguinte, Louçã apresentou os projetos de lei 54/VIII para dar acesso à administração fiscal das informações sobre contas bancárias, pagamentos e transações;  285/VIII para rever o regime de sigilo bancário nos casos de entidades patronais devedoras ao sistema de segurança social; e 287/VIII para o mesmo efeito nos casos de entidades que se candidatam a subsídios públicos. 

O tema do debate era a reforma fiscal, agendado potestivamente pelo PCP na semana anterior à apresentação do Orçamento do Estado para 2001, e que incluía várias propostas dos partidos e do governo liderado por António Guterres. Uma das intervenções do PSD coube ao seu atual líder, Rui Rio, que criticou a proposta sobre sigilo bancário incluída no pacote do governo, que incluía tantas restrições quanto ao acesso que na prática a tornavam pouco operacional. Criticava Rio que ao anunciar a proposta como uma “assinalável quebra de sigilo bancário — facto que, aliás nem sequer corresponde integralmente à verdade —, o governo arrisca-se a contribuir ainda mais para a saída de capitais”. Mais tarde, em resposta a Louçã, Rui Rio aproveitou ainda para  defender o offshore da Madeira com o argumento de de que “a partir do momento em que eles existem, vamos prejudicar um ou dois que existem cá em benefício de quê?”.


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O Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais era o advogado Ricardo Sá Fernandes, que defendeu a proposta do governo como a “mais prudente e mais razoável”, em alternativa à do Bloco, que na sua leitura “entende que deve haver acesso às informações bancárias em qualquer circunstância”. No final do debate, todas as propostas apresentadas por governo e oposição foram aprovadas na generalidade. O texto final da proposta do governo viria a ser aprovado pelas bancadas da esquerda e o voto contra do PSD e CDS e significou uma pequena abertura no regime do sigilo fiscal.

2003: PSD escolheu o “homem da mala” para argumentar contra o fim do sigilo

Dois anos depois, já com Durão Barroso à frente do governo, o assunto voltou a ser trazido pelo Bloco ao parlamento, desta vez com o projeto de lei 124/IX. O debate ocorreu a 9 de janeiro de 2003, o dia em que se estreou em São Bento o uso dos cartões magnéticos para as votações. Louçã recordou as recentes mensagens de Ano Novo do Presidente Jorge Sampaio e do Cardeal Patriarca José Policarpo, que insistiam na necessidade do combate à fraude e evasão fiscal. E chamou a atenção para o facto de Celeste Cardona, a deputada do CDS que argumentava no debate de 2000 que as propostas de levantamento do sigilo bancário eram inconstitucionais, vir saudar agora essas medidas enquanto ministra da Justiça. 

Mais uma vez foi comparada a situação portuguesa à espanhola, na qual se inspirava a proposta bloquista, onde “duas vezes por ano, toda a informação das contas bancárias de todos os contribuintes sem exceção é entregue à administração fiscal”. Na resposta, Diogo Feio, do CDS, afirmou que a proposta iria criar “um clima de suspeição sobre todos os contribuintes”. 

Pelo PSD começou por intervir Jorge Neto, que anos depois iria estar no centro da polémica sobre incompatibilidades dos deputados, ao representar enquanto advogado os interesses de acionistas da PT contra a OPA lançada pela Sonae de Belmiro de Azevedo. Neto defendeu não ser necessária mais legislação sobre o sigilo, classificando a proposta do Bloco como “um ‘voyeurismo’ e uma ‘bigbrotherização’ da vida privada”, incompatíveis “com o direito à reserva da intimidade da vida privada”. Sobre a comparação com o regime do sigilo de Portugal com o de Espanha e outros países europeus, o deputado do PSD disse que o problema está na “morosa, a ineficaz, a ineficiente, a inepta administração fiscal que temos em Portugal”.

Logo em seguida tomou a palavra outro deputado do PSD, António Preto, que viria a ser arguido num caso de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais e conhecido como “o homem da mala”, por receber malas de dinheiro de construtores civis. O processo de fraude fiscal durou 14 anos e Preto acabou absolvido por insuficiência de provas. No debate parlamentar de 2003, acusou a proposta de levantamento do sigilo bancário de corresponder a “uma conceção verdadeiramente leninista do Estado, com um polícia atrás de cada cidadão”. Na resposta, Louçã invocou “um imenso comité central leninista, que vai de George Bush até Jose Maria Aznar, que tem essas políticas de um Estado de princípios sobre o combate ao sigilo bancário”.  “Os senhores podem votar contra o tempo, podem correr contra o tempo, mas o tempo vai apanhá-los, senhores deputados”, avisou o deputado bloquista.

Também pelo PSD falou a deputada Graça Proença de Carvalho, recentemente ouvida como testemunha no caso Fizz, por ter enquanto administradora do Banco Privado Atlântico aprovado um empréstimo ao procurador Orlando Figueira, acusado de corrupção, no valor de 130 mil euros e sem garantias. Os argumentos sobre a “devassa” da privacidade ou a falta de necessidade de produzir mais leis sobre o assunto foram repetidos pela deputada laranja, filha do advogado Daniel Proença de Carvalho. Minutos depois, diria que a existência de 33 pedidos de levantamento do sigilo bancário ao abrigo da lei existente, com 19 a serem aprovados em tribunal “já demonstra que está a existir alguma eficácia”…

A intervenção do PS coube ao atual ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que chamou a atenção para a maior atenção da comunidade internacional à evasão fiscal e uso de offshores após os atentados de 11 de setembro de 2001. O deputado socialista apoiou o princípio geral da proposta, criticando-a por ser “burocratizadora” ao criar uma comissão para a transparência fiscal.

Pelo PCP, falou Lino de Carvalho, recordando as propostas do seu partido ao longo do tempo sobre a matéria em sede de debate orçamental e as recomendações da “comissão Silva Lopes” de 1996 e lamentando as resistências da direita, do PS, de banqueiros e setores financeiros. Sobre a proposta em concreto, defendeu que o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário seja feita pela administração fiscal e não por uma comissão cuja composição possa estar na “exclusiva dependência da maioria que, conjunturalmente, estiver no governo”. Tal como o PS, o PCP absteve-se na votação do projeto, que foi chumbado com os votos das bancadas da direita.

2005: Muda o governo, PS e PSD trocam de posição sobre o sigilo bancário

A proposta voltaria a subir a plenário na legislatura seguinte, em 2005, já com maioria absoluta do PS liderado por José Sócrates. Mas o sentido de voto das várias bancadas mudou em relação ao debate anterior, com o PS a chumbar agora a proposta ao lado do CDS, enquanto o PSD, que tinha votado contra, e o PCP, que se tinha abstido, votaram a favor. No debate, Louçã congratulou-se com o fim do argumento da proteção da intimidade, lembrando que no dia seguinte iria ser discutida a proposta do governo “para o levantamento completo do segredo bancário para acesso a benefícios públicos por parte dos sectores mais pobres da população”. 

Pelo PSD, que dois anos antes acusava a proposta de pôr “um polícia atrás de cada cidadão”, falou o deputado José Manuel Ribeiro para concluir que “no que diz respeito à questão de fundo, estamos completamente de acordo”, mantendo no entanto as reservas sobre a criação de uma comissão para gerir a ação do fisco, dúvidas repetidas também pelo deputado comunista Honório Novo. Mais tarde falaria o deputado do PSD/Madeira Hugo Velosa, retomando a evolução da posição do PSD, agora liderado por Marques Mendes. E pelo CDS, o deputado José Paulo Carvalho, que viria a abandonar o partido em 2008 em rota de colisão com Paulo Portas, mantendo-se como deputado não-inscrito, repetiu os argumentos contrários à proposta que, segundo ele, lançaria “suspeitas a granel sobre as contas de todos os contribuintes”.

Na defesa do governo estreava-se o deputado socialista António Gameiro, recentemente reeleito presidente da Federação do PS de Santarém e condenado em 2016, no âmbito da sua atividade como advogado em 2003, por ter ficado com dinheiro proveniente da venda de um apartamento de uma cliente. O líder do PS/Santarém também foi apanhado numa escuta da Operação Marquês, em conversa com o empresário Carlos Santos Silva sobre um cidadão angolano que serviria de intermediário para a adjudicação de obras do grupo Lena naquele país, a troco de comissões de 5%. Naquela tarde de junho de 2005, o deputado justificou o chumbo do PS ao levantamento do sigilo bancário com a necessidade de proteger “a confiança dos mercados e dos agentes económicos  [que] em geral não é compatível com medidas drásticas e de eficácia duvidosa”. Argumentava Gameiro que se a proposta fosse aprovada, isso “encharcaria a administração fiscal de informação não tratada e poderia pôr em causa o funcionamento de toda a máquina fiscal”. E concluiu que o governo iria apresentar iniciativas sobre a matéria até ao início de 2006.

Numa resposta a Hugo Velosa, o deputado bloquista Luís Fazenda acabou por fazer o melhor resumo deste e dos restantes debates, passados e futuros, sobre o sigilo bancário no Palácio de São Bento: “O azar do Bloco de Esquerda é o azar dos portugueses, pois quando o PS estava na oposição concordou com as propostas do Bloco de Esquerda e o PSD, então no governo, rejeitou-as. Agora que o PSD está na oposição, caminhamos em conjunto, se bem que o Partido Socialista agora no governo, rejeite as nossas propostas. O azar do Bloco de Esquerda é, portanto, o azar das conjunturas, mas será a sorte de quem?”, questionou Fazenda, apontando o dedo a um sistema financeiro “bastante ‘alérgico’ a este tipo de medidas” e à posição assumida por Campos e Cunha, o ministro das Finanças da altura, contra a medida.

2006: CDS sugere ao PSD organizar “marcha pelo sigilo”

Um ano depois, à boleia de uma proposta do governo para permitir o acesso do fisco a elementos protegidos por sigilo bancário na instrução de processos de reclamação graciosa, Bloco e PSD apresentaram dois projetos de lei para a derrogação do sigilo bancário. O deputado do PCP Honório Novo criticou a proposta do governo, acusando-a de ter como objetivo “que as pessoas deixem, pura e simplesmente, de reclamar” nas Finanças. Para Francisco Louçã, ela era uma “mistura de fraude política e de incompetência técnica”. Paulo Rangel, pelo PSD, falava numa “página negra da história do Estado de direito em Portugal”, uma “medida intrinsecamente discriminatória e intimidatória” que comparou à “opressão e repressão fiscal do Parlamento inglês” que levou à independência dos Estados Unidos. 

Pelo PS, um dos deputados escolhidos para defender a proposta do governo e atacar as restantes foi Victor Baptista, que repetiu existirem mecanismos suficientes na lei para acesso a dados bancários em caso de suspeita e não ser necessária nova legislação a promover “a devassa pela devassa”. A bancada do CDS foi representada por Diogo Feio, por entre elogios à ação do governo anterior, destacando Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix, e a nomeação de Paulo Macedo para liderar a máquina fiscal. O deputado do CDS criticou a proposta “leviana” dos ex-parceiros de governo para o levantamento do sigilo bancário, sugerindo mesmo que “com esta nova faceta do PSD pelo radicalismo”, o partido laranja organizasse uma “marcha pelo sigilo”, inspirada na “marcha pelo emprego” organizada pelo Bloco no mês anterior. “Podiam começar em Trás-os-Montes, com a marcha silenciosa, e acabar no Algarve, aos berros, e, quem sabe, a mostrar extratos bancários”, desafiou Diogo Feio. Após meses na comissão de especialidade, os projetos do PSD e do Bloco foram chumbados com os votos contra da maioria PS e do CDS.

2009: O ano em que o PS viabilizou e a seguir chumbou as propostas do fim do sigilo

O primeiro governo de José Sócrates não terminaria sem que o assunto regressasse mais duas vezes ao plenário parlamentar, em abril e em junho de 2009, com o rebentar da crise financeira mundial e dos escândalos da banca portuguesa a servirem de pano de fundo. Em abril, o Bloco agendou o debate de um pacote legislativo que incluía também o imposto sobre grandes fortunas, medidas de combate ao crime financeiro, uma taxa sobre os “pára-quedas” dourados dos administradores de empresas, entre outras medidas. O governo respondeu no próprio dia com um Conselho de Ministros que aprovou propostas de combate ao enriquecimento ilícito cujo debate seria agendado para junho.

Na apresentação da proposta, que à semelhança da de 2006 já não incluía uma comissão de transparência fiscal a comandar o processo, cabendo esse papel à administração tributária, Francisco Louçã começou por citar as palavras escritas na conclusão da reunião do G20, realizada duas semanas antes em Londres: “A era do segredo bancário acabou”. E também lembrou que era a primeira vez no mandato de Cavaco Silva que o Presidente disse à Assembleia, “na manhã do dia de uma votação desta importância, que tem toda a atenção ao que aqui vai ser discutido” em nome do combate à evasão fiscal. 

O debate trouxe a lume os casos já conhecidos dos crimes financeiros no BPN, BCP e BPP e o uso dos offshores para ocultar os desvios de dinheiro, com Louçã a falar de um “consenso nacional” para exigir transparência e acabar com a regra do sigilo bancário. No mesmo dia, Ricardo Salgado tinha dado uma entrevista a dizer que os bancos só aceitariam acabar com os offshores se o parlamento lhes desse uma amnistia. “Fica tudo dito! Só pede amnistia quem cometeu ou protegeu crimes!”, sublinhou Louçã, lembrando que a justiça chilena continua sem ter acesso à fortuna escondida pelo ditador Pinochet no Banco Espírito Santo.

Peo PS, Vera Jardim insistiu que o fim dos offshores ou a introdução da taxa Tobin dependia de uma ação concertada a nível internacional, mas disse-se “convencido de que o tempo ainda vai passar até lá chegarmos…”. Quanto ao sigilo bancário, defendeu que os bancos tenham de declarar os saldos de cada contribuinte à administração fiscal no início e no fim de cada ano, a exemplo do sistema espanhol defendido pelo Bloco. A mudança de posição do PS sobre o sigilo bancário foi sublinhada por todas as bancadas, com o deputado laranja Hugo Velosa a questionar se “o PS vai a reboque do Bloco de Esquerda”, uma vez que quando o PSD propôs acabar com o sigilo três anos antes, “o Partido Socialista nunca, sequer, as quis analisar e nunca as viabilizou”. 

Também Honório Novo, do PCP, questionou Vera Jardim sobre a razão do PS prometer agora aprovar a proposta quando a tinha recusado há menos de dois meses, quando o PCP a apresentou no debate do Orçamento Retificativo. “Foi preciso que desmoronasse o capitalismo especulativo para, finalmente o PS se abrir àquilo a que já se tinha aberto há uns anos atrás, em período pré-eleitoral”, recordou por seu lado Luís Fazenda, aludindo aos posteriores vetos ao levantamento do sigilo por parte dos ministros das Finanças Campos e Cunha e Teixeira dos Santos.

Mas a mudança não veio apenas do PS. Também o CDS, que ajudara o governo de Sócrates a chumbar o levantamento do sigilo bancário em votações anteriores, prometeu viabilizar a proposta e apresentar a sua própria iniciativa, que nas palavras de Diogo Feio, permitiria levantar o sigilo “a partir de um certo nível de rendimentos” e com algumas exceções.  Os projetos do Bloco foram todos viabilizados para o debate na especialidade, com um único voto contra no relativo ao sigilo bancário, do deputado socialista Victor Baptista, que quase dez anos depois, já fora do parlamento, veio criticar a lei aprovada pelo atual governo e depois vetada por Marcelo Rebelo de Sousa.

Dois meses depois, já em plena pré-campanha eleitoral, o governo trouxe à Assembleia a sua proposta que visava tributar  em 60% os rendimentos não declarados de valor superior a 100 mil euros, com a administração fiscal a ter acesso às informações bancárias destes contribuintes, mas mantendo a hipótese de recurso judicial por parte dos contribuintes, ao contrário do que acontece, por exemplo, com os idosos beneficiários de prestações sociais. O debate contou com outra proposta do PCP para a derrogação do sigilo a um projeto do Bloco para o combate ao enriquecimento injustificado. Referindo-se apenas à legislatura prestes a terminar, Honório Novo salientou ser “a oitava tentativa do PCP para introduzir novos mecanismos” para eliminar o sigilo bancário, sublinhando que a principal diferença face à proposta do governo era a do levantamento do sigilo ser “não passível de recurso com efeitos suspensivos” , à semelhança do que acontece com quem beneficia de prestações sociais. Quanto à tributação dos rendimentos injustificados, o deputado comunista considerou-a uma “pequena penitência suplementar, correspondente a um acréscimo de 18 pontos percentuais na taxa do seu IRS” que seria, “no fundo, a absolvição de um crime”. 

Também o Bloco, pela voz de Francisco Louçã, se insurgiria contra esta proposta do governo, representado no debate por Augusto Santos Silva, considerando-a uma “amnistia, uma limpeza sobre a não declaração, sobre a declaração falsa, sobre a declaração injustificada de uma fortuna, com o benefício fiscal de uma receitam a troco de ‘fechar os olhos’ sobre essa ilegalidade injustificada”. No que toca às implicações da proposta do governo para o sigilo bancário, Louçã considerou-a “um recuo” por deixar de permitir o acesso às contas bancárias “para comprovar a aplicação de qualquer subsídio público”. E lembrou que no ano anterior houve apenas 63 casos de levantamento do segredo bancário sem autorização dos contribuintes em causa. “Ou seja, a lei não serve para nada” e o governo “ainda a quer diminuir e torná-la mais frágil”, concluiu.

Das bancadas da direita, a oposição à proposta do governo fez-se com acusações de inconstitucionalidade por inverter o ónus da prova na justificação de rendimentos. Diogo Feio, do CDS, chamou-lhe a “proposta das revistas cor-de-rosa” por colocar os inspetores tributários a folhearem as ditas revistas em busca de acréscimos patrimoniais não justificados, como sugerira o próprio ministro das Finanças. Duarte Pacheco, do PSD, afirmou que “ninguém consegue compreender, se for detetado o ilícito, porque é que o Estado deve ficar com 60% desse montante, surgindo como um sócio do prevaricador”.

Aprovada a proposta do governo, o debate e votação na especialidade desta e das propostas do Bloco e PCP sobre o sigilo bancário encarregou-se de anular os conteúdos destas últimas. Por essa razão, o texto resultante foi aprovado apenas com o voto favorável do PS e a oposição dos restantes partidos.

2009: Sócrates perde maioria, PS chumba pacotes anti-corrupção

Os trabalhos parlamentares encerrariam em seguida e as eleições de outubro retiraram a maioria absoluta a Sócrates. Nessa altura foi revelada a investigação a figuras no PS envolvidas em casos de corrupção nas sucatas, conhecida por “Face Oculta”, com suspeitas sobre o ex-ministro e atual banqueiro Armando Vara. Logo no início da nova legislatura, Luís Fazenda apontava a ausência de combate à corrupção como o “buraco negro” do debate do programa de governo. E a bancada do Bloco voltou à carga com nova proposta para acabar com o sigilo bancário que foi a debate no início de dezembro de 2009 com outras propostas de prevenção da corrupção e de criação do crime de enriquecimento ilícito sem inversão do ónus da prova, a par de um projeto semelhante do PCP. 

Desta vez, uma fonte do PS anunciara na véspera na imprensa que o partido iria votar contra todas as propostas e o deputado Francisco Assis justificaria o voto por discordar com “os termos e o campo desta discussão”, em que “de um lado estão os anjos vingadores e purificadores e do outro lado está gente disponível para aceitar a corrupção e o crime”. E concluiu com o conselho aos proponentes a fazerem baixar as suas iniciativas à comissão sem votação. Na resposta, Louçã lembrou que as propostas do Bloco tinham sido debatidas durante meses com o PS e o primeiro-ministro e até já tinham sido viabilizadas pelo PS na generalidade durante a legislatura anterior. “O PS não deve faltar à chamada, muito menos por sectarismo político”, desafiou. Na votação, o PSD votou desta vez ao lado do PS e do CDS para chumbar o fim do sigilo bancário. E pela primeira vez na legislatura, um deputado do PS — Vera Jardim — rompeu a disciplina de voto para votar favoravelmente a proposta do Bloco.

Logo na semana seguinte, o plenário parlamentar voltou a debruçar-se sobre o combate à corrupção, num debate agendado pelo PSD que também incluiu uma proposta do PCP pelo fim do sigilo bancário. O tema forte do debate acabou por ser a proposta de criminalização do enriquecimento ilícito, repetindo-se a resistência do PS, nas intervenções do deputado Ricardo Rodrigues, face ao que entendia ser a inconstitucionalidade das propostas já apresentadas. Mas a proposta do PSD sobre criminalização do enriquecimento ilícito no exercício de funções públicas acabou mesmo por ser aprovada na generalidade, apenas com os votos contra do PS. As do PCP e Bloco foram logo rejeitadas com os votos contra do PS e CDS. Contudo, sete meses após a votação em plenário, o CDS juntou-se ao PS para chumbar a iniciativa laranja na comissão de especialidade.

Dos escândalos dos offshores ao veto de Marcelo

O tema do levantamento do sigilo bancário regressou em força nos últimos anos, com a revelação de sucessivos escândalos como os Panama Papers, SwissLeaks, OffshoreLeaks, LuxLeaks e outros. A par disso, a União Europeia aprovou uma diretiva em 2014 — DAC2 — introduzindo um mecanismo de troca automática e recíproca de informações financeiras, no que diz respeito a residentes noutros Estados-Membros. Na transposição dessa diretiva, feita em outubro de 2016, o governo quis incluir não apenas os cidadãos estrangeiros mas também os nacionais, dando à autoridade tributária acesso aos valores dos saldos bancários acima dos 50 mil euros dos depositantes nacionais. Esta medida acabaria com a desigualdade vigente, em que um cidadão português com conta bancária noutro país da UE tem a informação sobre o seu saldo disponível para o fisco português, mas caso aquele tenha outra conta em Portugal, o fisco não tem acesso ao saldo desta conta.  

A intenção do governo foi no entanto travada pelo Presidente da República, com um veto justificado por se encontrar “ainda em curso uma muito sensível consolidação do nosso sistema bancário”, e que foi na altura alvo de críticas pelo Bloco. No entanto, ao contrário do que Marcelo afirmou no seu esclarecimento após o debate entre Catarina Martins e António Costa no início deste mês, não foi apenas esta a razão que determinou o seu veto em 2016. O Presidente dizia ainda que o decreto “vai mais longe” do que as regras europeias exigem, ao abranger contas de portugueses em Portugal, acrescentando que já há situações em que o fisco pode ter acesso a informação sob sigilo bancário. No entanto, o recente esclarecimento presidencial, ao invocar apenas a razão da estabilidade do sistema financeiro, indica que essas razões já não serão suficientes para evitar um avanço definitivo da transparência fiscal em Portugal.

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