Ontem à noite, meia hora antes da reunião do grupo parlamentar do PS, a agência Lusa divulgou notícia de um anónimo dirigente da bancada indicando o voto contrário a todas as propostas que o Bloco de Esquerda traz ao parlamento para o combate à corrupção. Segundo se percebe pela imprensa, o governo manda votar contra por duas únicas razões.
A primeira é que o PS não terá sido consultado com a reverência que o protocolo exige. Considerando que o assunto foi longamente discutido com o primeiro-ministro, por iniciativa do Bloco de Esquerda, na reunião realizada entre as duas partes em 15 de Outubro, e que o Bloco se manifestou disponível para aprovar hoje todas as propostas de todos os partidos que convirjam nas soluções, a alegação carece de sentido e estou certo que morre aqui.
A segunda razão para o voto do PS é a mais esclarecedora: é que está de acordo com as propostas essenciais do Bloco de Esquerda, por isso vota contra, excepto sobre o enriquecimento ilícito, em que vota contra porque está mesmo contra. Mas é preciso ouvir os especialistas, dizem agora.
Já é um progresso. Até hoje, dizia o partido do governo que tudo estava perfeito na lei e que o combate à corrupção não tinha obstáculos. Agora aceita que serão necessários uma lei forte, meios para a investigação e uma nova determinação. Ouçamos então os especialistas e sigamos os seus conselhos.
Os especialistas e os mais responsáveis dizem que a corrupção é "o escarnecimento da República", como afirmava, no discurso de 5 de Outubro de 2005, o então presidente Jorge Sampaio. No ano seguinte, também a 5 de Outubro, o presidente Cavaco Silva, insistia: "é necessário que o combate à corrupção seja assumido como um esforço a que todos são chamados, nomeadamente pelo sistema de justiça". Os especialistas dizem que é a República que exige o combate à corrupção que nos está a faltar.
Há investigação? Há: só na região de Lisboa, é aberto um inquérito por dia contra a corrupção. Mas os últimos quatrocentos casos investigados pelo Ministério Público deram origem a três condenações. Os números dizem tudo: não há lei, não há meios, e onde há vontade não há capacidade. Portugal é por isso descrito pelos especialistas internacionais, como os da Transparency International, como uma das economias mais perigosamente venais da OCDE, que continua "a perpetuar práticas pouco transparentes que incentivam o crime económico", e que cai todos os anos no índice da corrupção.
É por isso que os especialistas manifestam um consenso tão eloquente: a permissão das luvas, a cultura do laxismo, os obstáculos à investigação, o favorecimento e tráfico de influências, a especulação imobiliária a financiar decisões convenientes, o dinheiro escondido em offshores, essa corrupção é o pântano da nossa economia.
Ouçamos então os especialistas e vejamos as soluções.
Em primeiro lugar, quanto à questão mais essencial: a do levantamento do segredo bancário para o combate à evasão fiscal e à corrupção.
Diz Vera Jardim, aqui neste plenário, e é certamente um especialista: "Queremos ir claramente no sentido do sistema espanhol. Qual é o sistema? Ele existe em vários países, incluindo França, e pensamos que deve ser introduzido em Portugal um sistema que imponha às instituições de crédito e entidades equiparadas, que recebam depósitos ou aplicações financeiras, a comunicação à Administração Fiscal. É uma acção do próprio sistema financeiro de informação sobre a existência de contas bancárias e respectivos saldos de cada contribuinte, no início e no fim de cada ano."
Essa é exactamente a proposta do Bloco. É a dos especialistas.
O levantamento do segredo bancário merece mesmo um amplo consenso internacional. É, como diz Vera Jardim, o que fazem quase todos os países europeus, excepto os paraísos fiscais com a Áustria e o Luxemburgo, que já estiveram por isso colocados na lista negra da OCDE. É o que recomenda o G20. É o que aconselha a jurisprudência da União Europeia. Foi mesmo esse consenso que levou o Presidente da República, numa atitude sem precedentes, a saudar o parlamento porque nesse preciso dia se discutia um projecto do Bloco para o levantamento do sigilo bancário.
De facto, o actual regime português é uma teia absurda. Aos pobres do RSI e do CSI exige-se toda a informação bancária para controlar os seus requerimentos, mas o mesmo não se pede a nenhum outro beneficiário de dinheiros públicos, só aos pobres. Os bancos têm o dever de informar o fisco espanhol (ou outros na Europa) das contas de cidadãos espanhóis em Portugal, mas não têm que informar o fisco português das contas de portugueses em Portugal. As autoridades norte-americanas recebem, desde esta 2ªf, toda a informação de todas as transferências internacionais de todas as contas registadas em Portugal, mas o fisco português não pode receber a informação de nenhuma.
O que vamos então decidir com estes projectos de lei é se mantemos a protecção da evasão fiscal, da corrupção e do crime económico que o segredo bancário garante, ou se começa agora uma nova era para um fisco justo e exigente e para uma economia transparente que persegue a corrupção.
E é porque essa é a decisão em causa que bem se percebem as reacções de cólera e pânico contra este pacote anti-corrupção. Quem se habitou a mover dinheiro para offshores para não pagar imposto, não aceita a transparência bancária. Quem se habituou a contratos públicos pagos de olhos fechados, não aceita o controlo exigente. Quem se habituou a comprar favores, não aceita que o rasto do dinheiro seja verificado. Quem lava o dinheiro do crime, não aceita que o refúgio bancário seja investigado.
A economia da corrupção levanta-se a uma só voz contra uma lei transparente. Uma lei como em todos os outros países europeus? Jamais. Uma responsabilidade que abranja todos? Era o que faltava. Enfrentar e vencer esta voz da corrupção é o dever de todos os deputados.
O regime que impede que o fisco verifique a verdade das declarações do IRS pelo levantamento do segredo bancário é ainda prejudicial por outro motivo. Escarnece da sociedade, despreza os deveres que nos tornariam iguais, mas ainda acrescenta outro dano, que é a perda fiscal gigantesca.
E é fácil medi-la: nos primeiros meses deste ano foram transferidos para offshores 7 mil milhões de euros, um recorde histórico. Esta é a dimensão gigantesca das perdas fiscais: é mais do que o buraco orçamental total neste ano de crise emergência, é mais do que o total do IRS pago por cinco milhões de contribuintes, e a perda de impostos que provoca pagaria 10 hospitais. Com o levantamento do segredo bancário, cada cêntimo desse mar de dinheiro teria pago o seu imposto.
Na questão da transparência bancária, estamos hoje a escolher se estamos do lado do silêncio cúmplice perante a corrupção e o roubo ou se agimos em nome da República.
Existe ainda uma outra matéria muito polémica neste parlamento: deve o enriquecimento ilícito ser criminalizado?
Aqui, as opiniões dos especialistas dividem-se. Foi o Presidente Jorge Sampaio, a 5 de Outubro 2005, quem apresentou a proposta de inversão do ónus da prova: "Quem enriquece sem se ver de onde lhe vem tanta riqueza, terá de fazer prova da proveniência lícita dos seus bens. Esta inversão do ónus da prova em nada colide com o direito de defesa e muito menos o esvazia".
Esta proposta foi apoiada por muitos especialistas. Freitas do Amaral defendeu este fim de semana a "criminalização do enriquecimento ilícito, que me parece fundamental e não é de todo inconstitucional", o mesmo disseram Marcelo Rebelo de Sousa, João Cravinho, António Reis, Ana Gomes, Vital Moreira, Cândida Almeida, Maria José Morgado, todos defendendo a punição criminal do enriquecimento ilícito de titular de cargo público.
Outros defendem a criminalização do enriquecimento ilícito mas recusam o procedimento da inversão do ónus da prova. O jurista Magalhães e Silva apresentou mesmo uma alternativa que se compagina com a proposta do Bloco de Esquerda: o crime de enriquecimento ilícito corresponde especificamente ao incumprimento do dever especial de transparência de titulares de cargos públicos, dando consequência à obrigatoriedade declarativa de variações de rendimentos e punindo a desconformidade manifesta entre os rendimentos declarados e a aquisição injustificada de bens.
Bem percebemos que o parlamento recuse que os deputados acumulem milhas nas suas viagens em representação parlamentar, mas dificilmente se compreenderia que não se perguntasse a um titular de poder de Estado porque não justificou o enriquecimento ilícito de algum milhão.
O enriquecimento ilícito deve ser criminalizado sem inversão do ónus da prova, e é nesse sentido que aprovaremos na generalidade as propostas do PSD e do PCP.
Finalmente, tratamos ainda de dois outros projectos. Um, não menos importante, pretende prevenir a corrupção onde este fenómeno é particularmente forte, na especulação imobiliária. A especulação imobiliária conduz o país numa corrida desenfreada que inflaciona o preço dos solos e das casas, e fazemos-lhe frente com a cativação das mais valias resultantes da alteração administrativa do registo de um terreno, como propõem muitos autarcas, a Ordem dos Arquitectos e também um ex-presidente do PSD.
O segundo anula a permissividade perante a chamada "corrupção para acto lícito", que funciona como um álibi jurídico para as luvas e a compra de favores. Deixando ao tribunal a decisão sobre a pena consoante a gravidade do acto e do valor em causa, reforça-se a acção da lei contra todas as formas de corrupção.
Chegamos à hora de escolher. E é evidente que a votação se vai decidir por meia dúzia de votos do PS. Ora, sabemos que, se em quase todas as bancadas temos encontrado vontade de leis rigorosas contra a corrupção, entre os deputados e deputadas do PS não se ouve só a voz de Vera Jardim a favor de uma lei sensata de combate à corrupção e de levantamento do segredo bancário para a verdade fiscal. Há uma maioria neste parlamento para leis competentes contra a corrupção. O que vamos saber é se essas opiniões se vergam para deixar ganhar a opacidade, a fraude fiscal e o segredo do dinheiro sujo.
O que o país sabe é que conta com o Bloco de Esquerda para dar todos os passos no sentido da justiça.
