Planificação ecológica

Democracia energética significa "o acesso a energia que permita uma vida digna". Entrevista a Miguel Heleno

02 de dezembro 2024 - 10:25

Contra o oligopólio do mercado de energia portuguesa, como é que se pode construir uma planificação que respeite a democracia energética? Em entrevista ao Esquerda, Miguel Heleno fala sobre as escalas de planeamento energético e sobre as relações entre o público e as comunidades.

porDaniel Moura Borges

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Miguel Heleno
Miguel Heleno. Fotografia via Notícias da Universidade do Porto.

A democracia energética é uma parte integral de um projeto de planificação ecológica que consiga dialogar com as populações e pensar o futuro económico, territorial e ambiental do país. Como tomamos decisões sobre a produção de energia e como as implementamos em diálogo com as populações?

Miguel Heleno é investigador no Laboratório Nacional de Berkeley, na Califórnia, onde se debruça sobre planeamento de sistemas energéticos e economia. Em entrevista ao Esquerda, fala sobre as escalas de planeamento energético e a importância dos municípios na implementação de uma nova organização da energia em Portugal.


A indústria energética em Portugal é dominada por uma mão-cheia de empresas e é direcionada pelo mercado. Quer dizer que é comum os interesses económicos se sobreporem aos interesses das populações. Dirias que a indústria é regida de uma forma anti-democrática?

É uma questão complexa em que os rótulos “democrático” ou “anti-democrático” não ajudam muito. A energia em Portugal é um oligopólio de empresas privadas, que herdaram das antigas empresas públicas a função de produzir e distribuir a energia para o país funcionar. Por outro lado, há instrumentos democráticos de supervisão política dessas empresas e uma regulação que faz o que pode. Mas, como vimos na comissão de inquérito às rendas da energia em Portugal, esses instrumentos são fracos e facilmente se coloca o estado ao serviço dessas empresas, em vez do contrário. O ponto principal é que a energia é um setor essencial à vida, que gera centenas de milhões de euros, e que tem por base decisões técnicas complexas. Enquanto for controlado por um pequeno oligopólio, a capacidade de influência democrática será sempre limitada. Mais democracia implica não só o reforço dos mecanismos de regulação, mas o controlo público de algumas destas. 

Com a transição energética que Portugal vai ter de fazer, achas que a planificação da indústria energética pode ser um instrumento importante para que os interesses das comunidades sejam respeitados e que haja uma verdadeira participação nas decisões sobre energia?

A transição energética implica a exploração de novos recursos e uma transformação tecnológica com custos enormes. O oligopólio da energia em Portugal vê nisto uma oportunidade para fazer negócio, acelerar a exploração de recursos, desregular o setor e pôr o estado e os consumidores a pagar os custos da transição energética. Um planeamento democrático e dirigido pelo setor público é a única forma de assegurar o uso racional dos recursos, minimizar os impactos sociais e ambientais e distribuir os custos de forma justa. Esse planeamento não precisa de ser centralizado, deve ter outras escalas de decisão e incluir participação cidadã.

Como é que achas que um novo modelo energético para Portugal se poderá desdobrar de forma centralizada e descentralizada e que tensões é que encontra nessa organização?

Na minha opinião, o modelo deve ocorrer em três escalas. A centralização é importante para a utilização racional dos recursos à escala nacional e garantir a segurança de abastecimento do país. Por exemplo, para assegurar que as centrais hidroelétricas do norte possam complementar as renováveis do resto do país, precisamos dessa escala de decisão centralizada. Depois, é necessário que as cidades e autarquias tenham um papel na organização dos sistemas energéticos locais em função das características e recursos de cada território. É nesta escala que devem estar elementos importantes como a organização de serviços energéticos de proximidade, a mobilidade, os projetos de desenvolvimento local, as decisões sobre o território e a implementação de programas de eficiência energética. Finalmente, temos a escala da participação cidadã, das associações, das cooperativas energéticas e dos pequenos projetos privados, que têm um papel importante na promoção da eficiência energética e do autoconsumo. Haverá tensões quando uma destas escalas perder força relativamente às outras. Por exemplo, atualmente, as autarquias têm um papel quase inexistente na transição energética, o estado central está refém do oligopólio da energia e a participação cidadã precisa de crescer.

No modelo atual, os movimentos locais têm tido um papel preponderante na denúncia da natureza anti-democrática da produção energética. Seja no movimento contra as minas, seja no movimento em defesa do Cercal Alentejano, por exemplo. Achas que são agentes importantes na transição para um novo modelo energético?

Acho que é algo a que vamos assistir mais daqui para a frente. É importante que haja movimentos locais que obriguem o poder político a pensar em alternativas de exploração de recursos e ocupação do território, que não passem por destruir as economias locais e os ecossistemas. A transição energética não deve ser só uma substituição tecnológica, mas sim uma alteração profunda na forma como nos organizamos com a natureza para produzir energia. Isso implica soluções diferentes. E sem a resistência desses movimentos não há soluções diferentes. 

Por onde devemos começar a abordagem ao conceito de democracia energética?

É importante perceber que democracia energética não é só a participação nas decisões do sistema energético. É também o próprio sistema energético ser capaz de garantir aos cidadãos o acesso a energia que permita uma vida digna. Em Portugal, uma em cada cinco famílias está em situação de pobreza energética, o que significa que é por aí que devemos começar. Uma transição energética democrática tem de ter como objetivo acabar com o flagelo da pobreza energética.

O processo de produção de energia tem várias etapas. Exploração de matérias-primas, transformação, transporte, venda. Que discussões sérias podemos ter em torno da implementação de uma maior democracia energética em cada uma destas fases? Que objetivos são mais realistas?

A exploração de matérias-primas e os grandes projetos de produção, transformação e transporte devem continuar a ser organizados pelo estado central, mas com critérios de decisão sociais ambientais rigorosos tanto na dimensão como na localização. Por exemplo, alguns projetos podem ser substituídos por medidas de eficiência energética ou geração distribuída, outros podem ocorrer em escalas e locais que não são os mais rentáveis, mas são os que melhor protegem as populações e os ecossistemas, ainda que tenham custos adicionais. Precisamos de legislação que force a avaliação de alternativas para estes projetos, que promova a discussão com as populações e que introduza mecanismos redistributivos para assimilar as perdas económicas do sistema resultantes do critério ambiental. Já a distribuição e comercialização de energia são uma oportunidade para darmos às autarquias ferramentas de política local para a transição energética que, através do contacto de proximidade, promovam a eficiência energética e facilitem a criação de comunidades energéticas. 

Achas que os atuais modelos de discussão, por exemplo, dos grandes projetos (sejam as minas ou as centrais fotovoltaicas) são democráticos e funcionam? Quais são as principais falhas?

Há claramente atropelos procedimentais. Quando as populações tomam conhecimento do projeto, já ele está praticamente pronto para arrancar. Não podemos deixar que a urgência das alterações climáticas seja um pretexto para não haver um escrutínio rigoroso e uma discussão séria sobre estes projetos. Claro que há concursos e documentos técnicos que vão a consulta pública, mas o cidadão comum não tem capacidade de acompanhar e responder nesses termos. São precisos mecanismos de informação e discussão mais acessíveis. Isso passa claramente por promover e apoiar as associações ambientais e de desenvolvimento local para que possam ajudar a fazer esse papel.

Parece que os processos políticos de discussão destes projetos acabam sempre por ser secundários aos processos económicos, que acabam por ditar o que realmente acontece. Concordas?

Claro. Como disse, há atropelos procedimentais. Mas muitas vezes a dificuldade em explicar os benefícios destes megaprojetos não é procedimental, é mesmo de conteúdo. Como a decisão que os originou não foi para defender o interesse público, mas apenas para favorecer o negócio, fica difícil aos governos fazerem uma discussão política aberta e séria sobre o tema. 

Falar sobre democracia também significa falar sobre projetos de extração (não necessariamente numa lógica extrativista). Como é que achas que isso se relaciona com as posições NIMBY (Not In My Backyard) e que diálogo pode haver? 

As posições NIMBY refletem formas egoístas de rejeitar projetos de infraestrutura pública, por vezes até privilegiadas e ligadas a interesse de propriedade. Não me parece que seja o caso destes movimentos sociais em Portugal, estamos a falar de populações que têm sido esquecidas pelo Estado e a quem têm sido retirados serviços públicos ao longo de décadas. Subitamente, o Estado aparece-lhes à porta, com um consórcio multinacional pelo braço, para lhes destruir os recursos naturais de que dependem, com um projeto de mineração de interesse público. Fica difícil fazer um diálogo sobre o interesse público quando o Estado retira o centro de saúde, a escola e os correios e no fim aparece para destruir o que falta. Uma exploração racional dos recursos implica uma outra relação do estado com o território e as populações.

Em concreto sobre a produção de energia, achas que a descentralização e a produção comunitária são uma parte importante da democracia energética?

Quando falamos de descentralização estamos a falar basicamente de painéis fotovoltaicos em edifícios. Um grande aumento desta produção descentralizada permitiria por exemplo substituir a necessidade de megaprojetos de solar e evitar todos os problemas ambientais e de impacto nas populações. Do ponto de vista democrático, esta substituição tem também o benefício de diluir o poder de poucos megaprodutores de energia por milhares de cidadãos e empresas proprietários de pequenos painéis solares para autoconsumo. Contudo, investir num painel solar ou comprar uma participação numa comunidade energética requer capacidade financeira e por isso não garante o acesso a toda a gente. Por outro lado, isto só resolve uma parte do problema, porque vamos continuar a precisar de outras fontes de energia não solar. Por isso, diria que as políticas de descentralização solar são importantes, mas tudo depende da quantidade e da forma como são implementadas.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.