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Cultura e marxismo: uma leitura de Raymond Williams no seu centenário

A cultura dominante nunca pode ser completamente dominante. Não pode absorver completamente tudo. Williams está convencido de que é verdadeiramente estúpido compreender mecanicamente a relação entre cultura e produção. Por Alberto Santamaría.
Raymond Williams.
Raymond Williams.

“Aos trabalhadores rurais que foram os meus avós”. Com estas palavras – diretas e emotivas – abria Raymond Williams um dos seus livros mais emblemáticos: O campo e a cidade (1973). Queria pegar nesta dedicatória não como um exercício meramente sentimental ou nostálgico, ou como um facto anedótico. Na verdade, vamos supor que é bastante mais do que isso. Esta dedicatória poder-se-ia então entender como o nervo que atravessa quase toda a sua extensa obra teórica.

Poderíamos assim dizer que existe todo um mundo vital – todo um organismo vivo na forma de passado que habita o presente – que aparece de um modo recorrente nos escritos de Williams. Escritos nos quais a própria vida do autor – um eu que se interroga sobre o seu lugar em cada texto – se oferece como tema de estudo. Quem se aproxime da sua obra – e mais tarde ou mais cedo caímos nela – encontrará uma tensão constante nos textos de Williams entre as suas origens dentro dessa família rural e trabalhadora, o seu destino como estudante em Cambridge e, posteriormente, a sua situação social como reconhecido teórico e criador dos chamados Estudos Culturais. Como seguir a teia desta tensão? Como articular a distância entre uma cultura operária e rural da qual o autor é proveniente e as formas intelectuais supostamente superiores? Que forma tem essa distância cultural? De que forma todo esse universo rural implicava um registo na cultura de igual importância que a mal designada alta cultura? Como se construiu (e se aceitou amplamente) um conceito de cultura como território isolado e baseada numa experiência individual desligada dos processos de produção e da trama material da vida em comum? Raymond Williams dedicou-se a deslindar tudo isto com empenho durante décadas, tendo presente o horizonte do marxismo como referência. Um marxismo excêntrico, sim, e, contudo, altamente nutritivo.

A cultura continua a ser algo vulgar

Tomemos como ponto de partida um texto de 1958. Nesse momento, Williams estava perto dos quarenta anos e tinha conquistado alguma notoriedade como teórico com a publicação de Cultura e Sociedade. Refiro-me ao texto intitulado “A cultura é algo vulgar”, uma confissão detalhada na qual mostra todo o seu poder narrativo – não esqueçamos a sua veia de romancista – com o objetivo de tornar visível o nó cultural que se produz, na sua própria experiência vital, entre três fatores: a) a sua formação no interior de uma família operária e rural – com todo o valor cultural que recolhe daí – ; b) o choque com o mundo académico que começa a descobrir em Cambridge como estudante, e c) o poder que exerce sobre ele a posterior descoberta da obra de F. R. Leavis e da tradição marxista. Evidentemente, para Williams este nó cultural é um problema teórico de radical importância social e política. Em apenas duas dezenas de páginas, Williams descreve o epicentro da sua perspetiva crítica e teórica: a impossibilidade de compreender a cultura como fenómeno isolado, como força meramente individual (algo que o levará a outra referência esquecida do marxismo: Lucien Goldman).

Raymond Williams. Foto da Raymond Williams Society.

Foi alguém próximo dele, E. P. Thompson, que, com propriedade, afirmou que a cultura para Williams “era um modo de luta” (Thompson, 1961). A lição dos seus avós, da sua própria formação no interior de uma cultura de classe operária, em ligação com a sua aprendizagem da teoria literária de Leavis e a sua leitura de Marx, tudo isto em vibrante tensão, serve para descrever o mapa teórico sobre o qual Williams avança. Desta vibração resulta a ideia de que o motor da cultura é o conflito e a luta permanente entre as práticas e as expectativas dominantes e as formas emergentes que podem abrir brechas nessas mesmas práticas e expectativas. A cultura é assim um problema nuclear na medida em que nos descreve as formas através das quais uma sociedade estabelece as suas relações tanto materiais como espirituais, a forma através da qual ordena os seus desejos e constrói as suas instituições.

Neste sentido, cometeríamos um erro grosseiro se, como faz a teoria formalista e outras teorias burguesas conservadoras, colocássemos a cultura num lugar à parte, alheado das derivas económicas e sociais. Para Williams, todo o processo cultural está conectado, ao mesmo tempo, com processos económicos. Contudo, e numa direção oposta, reduzir a cultura a um mero reflexo mecânico da economia é não compreender em nada o seu funcionamento e forma. Daí para questionar a existência desse trompe l'oeil desajeitado chamado superstrutura, como Williams efetivamente fará em textos como Marxismo e Literatura, vai apenas um passo.

Mas vamos por partes

No texto mencionado, “A cultura é algo vulgar”, Williams escreve alguns dos parágrafos centrais para compreender não apenas a sua conceção da cultura como ferramenta transformadora mas também o seu projeto teórico general. Leiamos:

“A cultura é algo vulgar: é por aí que devemos começar. Crescer naquela terra significava ver a forma de uma cultura e os seus modos de mudar. Eu podia subir à montanha e olhar para o norte, para as quintas e a catedral, ou para o sul, para ver o fumo e as labaredas de um forno de explosão que causava um segundo nascer do sol. Crescer naquela família era ver como se moldavam as mentalidades: a aprendizagem de novas destrezas, a transformação das relações, a emergência de uma língua e ideias diferentes. O meu avô, um trabalhador rude e corpulento, chorou na reunião do distrito quando contou com elegância e veemência o seu despedimento da exploração agrária. Pouco tempo antes de morrer, o meu pai lembrava sossegada e alegremente como organizou na aldeia um núcleo do sindicato e uma secção do Partido Trabalhista (…). Eu falo uma língua diferente mas penso também nestas coisas. // A cultura é algo vulgar: este é o primeiro dado. Todas as sociedades possuem a sua própria forma, as suas próprias finalidades, os seus próprios significados. Todas as sociedades os expressam nas instituições, nas artes e no saber” (Williams, 2001a: 38-39).

“Crescer naquela terra”, escreve. No início deste texto Williams detém-se, com modos de romancista, na lenta descrição das paragens onde cresceu. Não o faz com intenção de reduzir a escrita teórica a autobiografia. Muito pelo contrário, utiliza o bisturi da análise crítica para, partindo de uma anedota pessoal, desenhar o modo como funciona a cultura como um magma destinado a estabelecer os limites das práticas e expectativas de um período.

Muito depois, numa entrevista publicada em 1979, insistia no mesmo:

“Venho de Pandy, uma aldeia predominantemente agrícola, de estrutura rural tipicamente galesa; as quintas são pequenas unidades familiares. O meu pai começou a trabalhar, em criança, trabalhador da quinta. Contudo, o vale foi atravessado por um comboio e, aos 15 anos, conseguiu emprego como trabalhador ferroviário, no qual esteve até que entrou para o exército durante a Primeira Guerra Mundial. No seu regreso foi ajudante de sinaleiro e, mais tarde, sinaleiro. De forma que cresci dentro desta particular configuração, uma trama rural de pequenas quintas, entretecida com outro tipo de estrutura social à qual pertenciam os trabalhadores da ferrovia” (Williams, 1979:12).

Situar a cultura no centro do debate não é apenas uma forma de estabelecer uma espécie de regime conceptual tranquilizador (a cultura parece sempre um bálsamo), mas compreender criticamente o seu sentido: por isso os processos culturais partem de uma configuração particular na qual se cruzam aspetos não completamente delimitados. A cultura não é um bloco fechado, mas uma peça móvel que está constantemente vinculada às formas em transformação da comunidade. Por este motivo, para Williams as lutas e as ações não estão previamente fechadas antes do seu início mas formam-se no próprio processo da ação.

O que pulsa sob as palavras de Williams é a complexidade de um pensamento que tem como cerne a ideia de que a cultura não é um acréscimo, mas o meio material que nos relata as práticas e expetativas de uma comunidade. A cultura em comum até revela ou ilumina espaços de conflito que não estavam definidos como espaços de desigualdade ou espaços de repressão. Para Williams (e é algo que de certa forma aparenta a Rosa Luxemburgo), a esquerda não deveria prender-se a uma série de elementos pré-concebidos mas entender que os processos culturais revelam novas possibilidades de luta. É a própria luta e a própria possibilidade de uma cultura comum que gera sonhos de mudança, e não o contrário.

Cultura e desigualdade

Num texto de 1968 intitulado “A ideia de cultura comum” iniciava deste modo a argumentação: “a cultura foi o modo no qual se tornaram patentes o processo de educação, a experiência da literatura e, para quem vem de uma família trabalhadora e acede à educação superior, a desigualdade” (Williams, 2008: 99). A ideia de uma cultura como uma totalidade onde se entrelaça o material com as disposições afetivas e educativas, bem como com o próprio conceito de prática criativa, implica a aceitação de uma definição de cultura que não é terna nem consoladora mas sempre problemática. A Williams interessa esta perspetiva de totalidade da cultura que assume dentro de si uma tensão constante material e espiritual. É isso a cultura em comum.

Se entendemos a cultura a partir desta amplitude, a nossa relação com ela é também um diálogo intenso connosco próprios e com a nossa origem. E é isso que Williams faz. A cultura não é algo alheio à nossa vida, está inserida no núcleo das nossas relações sociais quotidianas, na forma da linguagem que usamos, por exemplo, com o nosso chefe ou com a nossa companheira, mas também na nossa relação com os museus ou com o cinema. Não é separável uma coisa da outra.

A estrutura social e o modo de produção capitalista geram uma distribuição do cultural que parece neutral mas nunca o é, em nenhum caso. Dada a bondade que parece possuir a palavra cultura (como terna ficção consoladora ou como promessa de felicidade) toleramos sob o seu espectro uma enorme quantidade de desigualdades. Ser originário de uma família da classe trabalhadora implica, na altura de aceder ao ensino superior, por exemplo, um forte sentido de desigualdade cultural (assim o designa Williams), uma sensação de falta ou de expulsão de um recinto que não deveríamos estar a ocupar e que, sem dúvida, exploramos com ferramentas diferentes das que possuem aqueles que acedem a ele a partir de cima.

Neste sentido, a precariedade não é apenas uma questão económica, mas também uma produção social na qual quem a sofre tem falta de ferramentas ou código de acesso. Precisamente, o estudo de como os processos culturais são processos de construção de imaginários de classe é algo recorrente nos Estudos Culturais. Sobre isto, Richard Hoggart escreve algumas das melhores apreciações teóricas ao rastrear o conteúdo das revistas destinadas à classe trabalhadora, na maioria das quais “é muito frequente o uso da palavra pecado. A palavra não aparece em publicações mais elevadas (…). Por sua vez, as revistas para a classe trabalhadora não empregam a palavra pecado num sentido metafísico; não fazem alusão à queda do homem no sentido bíblico nem às obrigações para com Deus”. Não, na realidade, a palavra pecado difunde-se como uma espécie de elemento de controlo social e familiar, de ordenamento dos costumes. O pecado pode estar na forma como te relacionas com os teus pais, ou com os teus chefes. Assim, “pecado é qualquer ato contra a ideia de lar e de família”.” (Hoggart, 2013: 61). O pecado como forma de controlo implica uma visão do futuro na qual a resistir-lhe dará os seus frutos àqueles que não pecaram, ou seja, ao bom trabalhador, a quem aceite sem fazer nada o lugar que lhe foi atribuído. Trata-se de congelar o presente em benefício de um futuro que o poder (eles) constroem para nós mas que não chega nunca. É assim que funciona o futuro no capitalismo em crise. Por isso, a cultura é também um território político.

Documentário divulgado na página da Raymond Williams Society.

Usos da cultura

Do ponto de vista crítico, para Williams, isto tem mais um sentido: a crítica é um processo em constante mutação. Apurando os limites desta ideia escreve: “Uma cultura apresenta dois aspetos: os significados e orientações conhecidos, para os quais os seus membros foram treinados, e as novas observações e significados que nos são dadas para ser postas à prova” (Williams, 2008: 39). Quando colocamos, como no parágrafo anterior, a questão da relação entre cultura e política é necessário aceitar a complexidade do nó que formamos e que o ativismo cultural da direita tentou a cada momento evitar e desfazer. Este ativismo reacionário procurou reduzir a palavra cultura a uma prática – como o processo de fazer arte, por exemplo – que se torna visível apenas a partir da extração desta prática do seu horizonte político e social de produção, convertendo-se assim a cultura e as suas práticas numa espécie de boneca de trapos ou, melhor, num ornamento mais ou menos atrativo, vinculado a uma instituição que funciona como um recinto controlado. Quando emagrecemos deste modo a palavra cultura extraímos estas práticas do seu tecido social. Por isso, Williams insiste em reinserir conflitualmente a palavra cultura:

“Empregamos a palavra cultura nestes dois sentidos: para nos referirmos a uma forma de vida no seu conjunto, aos significados comuns, e para nos referirmos às artes e ao conhecimento, aos processos especiais do trabalho criativo e inovador. Alguns autores reservam o termo para um ou outro destes sentidos; eu insisto em ambos e na relevância da sua conjunção. As perguntas que coloco sobre a nossa cultura são perguntas sobre os propósitos comuns e generais, mas também sobre significados pessoais profundos. A cultura é algo vulgar é toda a sociedade e em todas e cada uma das mentalidades” (Williams, 2008: 40).

A cultura como forma de vida em comum, a arte como peça dessa organização e os processos económicos em constante processo de mutação são elementos que Williams assume desde o início como peças ligadas, inseparáveis; formas de energia que se projetam umas nas outras. Mais ainda, qualquer análise que não tenha em conta esta ligação, como peças do mesmo puzzle, será desde logo marcadamente deficitária. Extrair a cultura do nó que forma com as dissonâncias económicas e políticas supõe uma construção rudimentar (e falsificação) que conduz a arte ao universo do mais puro e banal entretenimento. Nisto podemos estar de acordo. E possivelmente qualquer marxista ortodoxo também. Contudo, como indicámos acima, é necessário acrescentar algo a esta conceção reticular e estrutural da cultura tal como a desenha Williams: aceitar este nó formado pela cultura-política-economia não significa, de forma alguma, em qualquer caso, que a arte seja uma mera ação reflexa da economia. E é aí que aparece seu olhar sobre o marxismo ou onde a marca do seu marxismo se fortalece. Por um lado, a cultura burguesa pressiona, apesar das aparências, para a lenta construção de um eixo de desigualdade cultural e material. Para isso, tem do seu lado toda a trama que liga poder e educação a partir de onde é possível jogar com os limites do que é possível e o consentimento dos oprimidos. Neste sentido, a burguesia é capaz de oferecer todo um sistema moral que, embora limitado, é melhor do que a repressão desenfreada do absolutismo. Escreve Williams:

“O tempo de ócio que a burguesia conquistou trouxe-nos muitas coisas de valor cultural. Mas isto não quer dizer que a cultura contemporânea seja uma cultura burguesa: este é um erro que toda a gente parece cometer, desde os conservadores até aos marxistas” (Williams, 2008: 45).

Erro? De que tipo de erro falamos? Já neste texto Williams aponta questões que irão aparecer em textos teóricos posteriores, como os seus trabalhos sobre a base e a superstrutura ou no impressionante Marxismo e literatura. Refiro-me à impossibilidade de ver a cultura como um sistema de blocos fechados, como construtos operativos dirigidos por uma cultura dominante. Ou, dito de outra forma: a cultura dominante nunca é de todo dominante, não o pode ser. Voltaremos a isto. Williams defende que a cultura é um processo que, na sua relação com os processos materiais, não devemos reduzir a uns limites fixos de classe. Isto não significa que não exista um modo de vida da classe trabalhadora claramente diferente do modo de vida da classe burguesa mas que essas formas de vida não são compartimentos estanque. A cultura tem o sentido de um fluxo incansável. Ele próprio o reconhece: “Existe um modo de vida da classe trabalhadora bem diferenciado, que eu, pelo menos, aprecio; não apenas porque fui criado nele, apesar de agora, em certos aspetos, viva de outra maneira” (Williams, 2008: 45).

Estes modos de vida em comum são espaços que se devem estender a outros aspetos da vida, desenhar-se dentro de outros marcos, aprender em com eles. A boa vizinhança, o melhoramento comum, a solidariedade, a defesa do público, a comunidade como aposta de crescimento coletivo etc. Estender os valores culturais da classe operária equivale a deformá-los, nutri-los, variá-los e encontrar nessa mutação a força do comum, descobrir novas reivindicações e descobrir-se em novas lutas. A este respeito Williams enfrenta um certo marxismo. Pensa que, embora as condições sociais da classe trabalhadora devam melhorar, a sua visão cultural é um campo de batalha necessário e em constante processo de mutação. Por isso acrescenta:

“Pelo que quando os marxistas dizem que vivemos numa cultura que agoniza e que as massas são ignorantes, tenho que lhes perguntar, como já lhes perguntava antes, onde diabo é que viveram. O que vi e conheci não é uma cultura que agoniza nem umas massas ignorantes” (Williams, 2008: 46).

 Raymond Williams. Foto de Gwydion Madawc Williams.

A cultura dominante nunca é de todo dominante

Resumindo: a cultura dominante nunca pode ser completamente dominante. Pode ser poderosa, ativa e até destrutiva, mas nunca completamente dominante. Não pode absorver completamente tudo. Williams está convencido de que é verdadeiramente estúpido compreender mecanicamente a relação entre cultura e produção. Não existem as superstruturas como se fossem marionetas de um modo de produção. A este respeito é revelador o fragmento seguinte:

“Assim, o que recebi dos marxistas até agora era uma certa relação entre cultura e produção e a perceção de que a educação estava restringida. Rejeitava tudo o resto, como rejeitei também o seu terceiro ponto: que como cultura e produção estão relacionados, a defesa de um sistema de produção diferente é, de certo modo, uma diretriz cultural que indica não apenas um modo de vida mas um conhecimento e uma arte novos. Escrevi alguma coisa sobre isto quando pertenci ao Partido Comunista durante um período de 18 meses e descobri, de forma superficial, o que outros autores, tanto aqui como no resto da Europa, tinham descoberto com mais rigor: as consequências práticas deste tipo de erro teórico. Neste sentido, presenciei o futuro e vi que não era assim. A interpretação marxista da cultura não pode sei aceite enquanto mantiver este elemento orientador que não se deve manter, esta insistência em que se alguém defende honestamente o socialismo deve escrever, pensar e aprender de determinadas formas prescritas. Uma cultura supõe um conjunto de significados comuns, obra de todo um povo, à que se oferecem significados individuais, fruto de toda a experiência pessoal e social comprometida de um ser humano. É absurdo e arrogante supor que se pode prescrever de algum modo algum destes significados; constroem-se vivendo, fazem-se e refazem-se de formas que não podemos determinar de antemão” (Williams, 2001a: 46).

Apesar da sua extensão não resisto em trazer este fragmento para uma leitura dedicada a Raymond Williams. Este texto contém toda a crueza de quem trata de tornar visível tanto a sua desafeição para com uma certa visão economicista da cultura assim como a sua crítica ao monstro do estalinismo. A cultura cria-se vivendo; em nenhum caso é completamente determinada por fatores externos. O processo de conceber a cultura a partir do esquema mecânico de base-superstrutura como dogma de fé conduz irremediavelmente ao erro teórico. As formações culturais, nas quais se vincula a vida em comum e a experiência individual, nunca podem ser atadas previamente, nem predefinidas nem muito menos pré-fixadas pelas regras de um partido. Esse erro teórico da esquerda leva-a a defender a ideia da cultura como um espaço fechado e imóvel, com uma série de consignas que continuam vivas do ponto de vista formal mas que estão mortas socialmente.

Em Williams é central, portanto, a compreensão da arte como um fenómeno – dentro da trama cultural mais ampla – cuja expressão e existência está vinculada essencialmente ao contexto social da sua produção. Neste sentido, Williams observa criticamente (e não sem uma certa ironia) algo que compartilham as posições tanto marxistas como burguesas. Segundo estas posições, aparentemente antagónicas, a cultura é um fenómeno deslindável, segregável e manejável como se queira como se fosse um pedaço de celofane que podemos facilmente arrancar da realidade. Para a burguesia isto é essencial, já que a cultura se deve colocar como algo reduzido a uma prática artística concreta cuja finalidade é o entretenimento ou o desfrute sentimental. Por tanto, é um território congelado, suspenso relativamente ao resto das práticas quotidianas centradas no interesse económico. Acaba por ser curioso que, do lado do marxismo (ou de um certo marxismo ortopédico), se tenha estabelecido uma etiquetagem apelativamente similar, devido talvez à aceitação do modo idealista de entender a arte por parte de Bernstein e Kautsky. O reformismo imposto por ambos ao modelo marxista implicava um processo de emagrecimento do pensamento de Marx. Desta forma a arte ficava, enquanto prática, fora dos limites do pensamento e da ação de um programa marxista. Como bem indicava Adolfo Sánchez Vázquez (1970):

“Para eles [os reformistas] Marx não oferecia nada de importante neste terreno com a exceção de alguns julgamentos dispersos e intrascendentes. Por isto, para tratar de cobrir o deixado pela doutrina marxista neste campo socorriam-se de ideias alheias, principalmente de Kant (a ideia da arte sem conteúdo ideológico e meio de prazer estético que Kautsky fez sua)”.

Nesta perspetiva, a arte transforma-se em prática alheia à própria construção de imaginários coletivos (o que seria próprio de uma estética construída pelo marxismo) e constitui-se como experiência individual e esteta. Assim, a cultura é um aparte, uma espécie de boneco de ventriloquia da economia.

Raymond Williams. Foto de Gwydion Madawc Williams.

Base e superstrutura? A caminho da estrutura do sentimento

Face a estes dois modelos, Raymond Williams propõe uma revisão intensa do modelo marxista. A este propósito, sobre a questão da relação base-superstrutura, há dois textos centrais em Williams que são o caminho a partir do qual é possível desenhar a força do seu pensamento e a edificação do chamado materialismo cultural. O primeiro deles surge na New Left Review em 1973 com o título “Base e superstrutura na teoria cultural marxista” e o segundo, uma revisão posterior deste texto, será incluído em Marxismo e literatura (1977). Em ambos se coloca esta questão de um modo implacável. Escreve em 1973: “Devemos dizer que quando falamos da base estamos a falar de um processo, não de um estado. E não podemos atribuir a este processo certas propriedades fixas para, posteriormente, traduzi-las nos processos variáveis da superstrutura”.

E acrescenta: “Devemos reconsiderar a base: não concebê-la como uma abstração tecnológica ou económica fixa mas sim como um conjunto de atividades específicas de homens em relações reais, tanto económicas como sociais, que encerram em si contradições fundamentais e variações que as situam sempre num estado processo dinâmico”.

Partindo desta posição, Williams refuta a ideia de determinação e de reflexo enquanto peças mecânicas de uma ficção que não responde aos processos totais a partir dos funciona dinamicamente a realidade. Situar a produção artística no mundo da superstrutura é algo terno e consolador, mas inútil analítica e criticamente. A Williams interessam mais os processos de incorporação da cultura dominante, ou seja, o modo como se geram espaços culturais e materiais de construção da vida em comum. A educação ou a família como processos de incorporação, mas também a complexa rede de instituições que nos rodeiam. É neste contexto que a influência de Gramsci em Williams é notável e no qual analisa o conceito de hegemonia. A presença de Gramsci em Williams supõe a abertura a novas conceções de cultura como forma de luta. Escreve:

“Se a ideologia fosse meramente um conjunto de ideias abstratas e impostas, se as nossas ideias fossem apenas o resultado de uma manipulação específica (…) então a sociedade seria muito fácil de modificar. Na prática não é nem nunca foi assim. Esta ideia segundo a qual a hegemonia satura profundamente a consciência de uma sociedade parece-me fundamental. E a ideia de hegemonia tem a vantagem, face a outras ideias gerais de totalidade, de enfatizar, ao mesmo tempo, o facto da dominação” (Williams, 2012: 58).

Una teoria cultural construída pelo marxismo deveria começar então por descartar a formulação mecânica desta relação de determinação ou reflexo desenvolvida em função destes dois conceitos: base e superstrutura. E, sobre isto, regressa em Marxismo e literatura. Este não é um texto acerca das ideias de Marx sobre a literatura ou um desdobramento histórico da relação designada no título. É o colocar em ação da forma como o marxismo ainda dispõe de ferramentas metodológicas à sua disposição para pensar a cultura. Neste texto aparece uma epígrafe que supõe um avanço em relação ao texto anterior. Esta epígrafe, dentro do tema base-superstrutura, intitula-se “Estrutura do sentimento” e com este termo pretende-se avançar na teoria cultural marxista. Esta expressão é proposta como forma de superar a ideia base-superstrutura assumindo, ao mesmo tempo, o conceito de hegemonia. A Estrutura do sentimento dá a Williams a possibilidade de pensar a totalidade da cultura em conexão Este termo percorre durante décadas a obra de Williams (aparece pela primeira vez em 1954, em Preface to Film) adquirindo diferentes tons e definições. O próprio Williams está consciente de que o “termo acaba por ser difícil” (Williams, 2009: 174). Mas é difícil porque supõe aprofundar a análise das formas afetivas de um período e a sua vinculação com as realidades materiais. Ele está consciente de que poderia ter optado, em vez de sentimentos, por ideologia ou conceção do mundo (Williams, 2009: 175). Contudo, estes termos, tal como hegemonia, não serviriam para o objetivo de compreender as variáveis que aparecem nas formações sociais e culturais de um período. São estruturas na medida em que indicam uma pressão material mas a veia destas mudanças sociais possui um forte sentido afetivo.

Em 1979 afirma: “a noção de estrutura de sentimento foi criada para focar uma modalidade de relações históricas e sociais que era ainda totalmente interior à obra e não deduzível através de um ordenamento ou classificação externos” (Williams, 1979: 164). O estudo das estruturas de sentimento de um período implica tanto o estudo dos elementos materiais como a aproximação às formas afetivas relacionadas com estes que ainda carecem de uma expressão racional estável, formas afetivas emergentes ou pré-emergentes que apontam para novas formações culturais. Williams afina assim a sua definição: “mas penso que as áreas às quais chamaria estrutura de sentimento formam-se inicialmente quase sempre como um certo distúrbio ou mal-estar, um tipo específico de tensão, para o qual, quando nos afastamos ou a recordamos, podemos encontrar um referente” (Williams, 1979: 164).

Neste sentido, pretende-se compreender as estruturas de mudança social e cultural, ao mesmo tempo que se considera que não é preciso “esperar por uma definição, uma classificação ou racionalização antes de exercer pressões palpáveis e de estabelecer limites efetivos sobre a experiência e a ação”. E, deste modo, Williams concebe a estrutura de sentimento como “uma hipótese cultural, realmente derivada das intenções de compreender tais elementos e as suas conexões numa geração ou num período (…). A hipótese tem uma especial relevância no que diz respeito à arte e à literatura” (Williams, 1979: 174-176). E assim é. A proposta de Williams supõe analisar essas práticas artísticas como produtos de uma comunidade (não meramente como criados por uma individualidade única), onde é possível rastrear os processos de mutação sentimental de um período, mas também espaços onde são visíveis as formas de mudança possível e de dominação. Em Cultura e sociedade já o desenhava da forma seguinte:

“A história da ideia da cultura é um registo das nossas reações mentais e sentimentais à mudança de condições da nossa vida em comum. (…) A mudança de qualquer forma da nossa vida em comum gerou, como reação obrigada, uma insistência na necessidade de prestar atenção a essa forma (…). A elaboração da ideia de cultura é um esforço lento para recuperar o controlo.” (Williams, 2001a: 245).

A estrutura de sentimento é, assim, uma hipótese central para qualquer análise cultural que pretenda compreender e situar a arte dentro dos processos sociais sem cair nas formas do mais vulgar e desaconselhável economicismo. Será talvez a melhor forma de compreender uma possível estética com base no marxismo.

De qualquer forma, ao mesmo tempo, as estruturas de sentimento indicam uma forte componente de tensão e de conflito. A estrutura de sentimento dominante nunca é, como dissemos, completamente dominante. Por isso está sempre em luta e necessita de um apoio. A este apoio Williams chama a “ilusão protetora”. Apenas se fala desta “ilusão” quando se estuda as estruturas de sentimento. Ou seja, uma estrutura de sentimento gera mecanismos de correção destinados a proteger o funcionamento ordenado do campo material e afetivo. Em O campo e a cidade lemos: “a ilusão protetora da crise da nossa própria época: a ideia de que o que nos está a prejudicar é, não o capitalismo, mas esse sistema mais identificável, mais evidente, do industrialismo urbano” (Williams, 2001b: 135). A “ilusão protetora” exerceria então uma mediação simbólica de forma a proteger o núcleo da estrutura do sentimento dominante.

O credo marxista de Raymond Williams

Raymond Williams. Foto da Raymond Williams Society.

Caminhamos para o final. Recapitulemos. Devemos aceitar que a cultura não é nunca um elemento pré-fabricado, uma peça que situamos aqui ou ali segundo o nosso gosto mas um conjunto de intensidades sociais e políticas. O erro teórico, de um amplo espectro ideológico, é considerar que existe una cultura pré-fabricada que deve ser vomitada sobre uma massa ignorante. Escreve, não sem uma certa ironia crítica face ao marxismo:

“Não deveríamos tratar de estender uma cultura pré-fabricada a umas massas inundadas de ignorância. Deveríamos aceitar com toda a franqueza que se estendermos a nossa cultura, a transformaremos: parte do que se oferece será recusado, outra parte será criticada radicalmente. E é isso que deveria mesmo acontecer” (Williams, 2001b: 59).

A cultura é luta. Deveríamos entender a cultura, pois, como um processo a partir do qual é factível regenerar tecidos perdidos e assumir novas reivindicações. A cultura nunca é a mesma.

Portanto, se defendemos uma cultura da classe trabalhadora e queremos estendê-la, temos de aceitar que esta deve mudar, deve aceitar novos espaços de reivindicações, que deve cruzar-se com outros espaços e interesses. E sobre esta linha trabalhou Williams durante décadas. E a partir deste horizonte chegou à conceção de uma expressão que resume a sua posição: materialismo cultural. A expressão aparece em diferentes textos dos anos setenta, mas é num texto de 1975 intitulado “Notas sobre o marxismo na Grã-Bretanha desde 1945” onde, possivelmente, o expõe pela primeira vez. Aí escreve:

“Levou-me trinta anos, num processo muito complexo, a deixar para trás esta teoria marxista herdada (que, na sua forma mais geral, comecei por aceitar) para, passando por várias instâncias de transição no que diz respeito à teoria e à investigação, construir a posição que hoje defendo, e que defino como materialismo cultural. O enfatizar da transição (na produção – mais do que na mera reprodução – de significados e valores através das formações sociais específicas, da importância da linguagem e da comunicação enquanto forças sociais formativas e da complexa interação tanto das instituições e formas como das relações sociais e das convenções formais) pode definir-se, se alguém assim o desejar, como culturalismo, e até a crua e velha (positivista) dicotomia idealismo/materialismo pode ser aplicada, se servir a alguém. O que hoje afirmaria é que cheguei, passando necessariamente por este caminho, a uma teoria da cultura como processo produtivo (social e material). É um processo realizado através de práticas específicas, das artes, enquanto usos sociais de meios materiais de produção (desde a linguagem como consciência prática material até às tecnologias específicas da escrita e das formas de escrita, incluindo também os sistemas de comunicação mecânicos e eletrónicos)” (Williams, 2012: 293-294).

Pouco a acrescentar. Este fragmento indica a sua posição no mapa do marxismo. O materialismo cultural é uma aposta para compreender os processos culturais como processos sociais e materiais, onde não é possível desligar um aspeto do outro. Nesse mesmo ano, 1975, publica o texto “É você marxista, a sério?”, no qual descreve as suas relações com o marxismo, com o estalinismo, ou com o fabianismo, mas também a sua dívida para com Marx e Gramsci. Nesse mesmo texto desenvolve o seu próprio credo socialista que talvez sirva para compreender melhor a sua posição. Comenta:

“Creio na necessária luta económica da classe trabalhadora organizada. Creio que esta é ainda a atividade mais criativa da nossa sociedade, como indiquei há alguns anos ao qualificar as grandes instituições da classe trabalhadora como conquistas culturais (…). Creio que não é necessário abandonar uma perspetiva parlamentar (…), mas na prática estou bastante convencido de que temos de que começar a olhar muito além disso. (…) Creio que nenhuma maioria parlamentar previsível inaugurará o socialismo a menos que haja um tipo de atividade política muito diferente que a apoie (…). Creio que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gerou tem que ser derrotado em geral e com detalhe mediante os tipos de trabalho intelectual e educativo mais sustentados” (Williams, 2008: 125-126).

Estas linhas oferecem o horizonte sobre o qual Williams opera a sua leitura e a sua ação políticas e é reflexo da, por ele chamada, “larga revolução”, um processo de conflito ativo e aberto cuja finalidade é a mudança social e política. Neste sentido, a ação é que produz o próprio sentido da luta. Afirma: “apenas se muda algo tão profundo como uma estrutura de sentimento dominante mediante una experiência ativa” (Williams, 2008: 126).

Portanto, não se trata de subestimar ou deslocalizar a posição da classe trabalhadora. Não se trata de simples metáforas ou elementos decorativos. O modo através do qual a cultura da classe trabalhadora funciona é assumindo o seu sentido de comunidade e, portanto, estabelecendo vínculos com os aspetos que a classe dominante pretende excluir ou tornar marginais. A cultura em comum, entendida como esse fio que oferece resistência ao avanço do capitalismo ao mesmo tempo que se arma com novas reivindicações criativas, é a veia que faz pulsar o próprio modelo da classe trabalhadora. Isto é, não deveríamos reduzir o próprio conceito de classe a uma categoria económica. O conceito de classe na sua relação com a cultura joga com a inclusão de diversas forças que permitem questionar as dinâmicas da desigualdade e repressão. Por isso, tanto o conceito de classe como o de cultura nunca estão acabados nem podem reduzir-se ou emagrecer para assinalar aspetos unicamente económicos.

A cultura da classe trabalhadora forma um enxame comum que nunca é completamente fechado ou pré-definido, nem pode depender de uma vanguarda política, muito menos de um partido político. Qualquer tentativa de uma organização direcionar a cultura da classe trabalhadora redunda necessariamente no ridículo.

Talvez, a forma adequada de encerrar este texto seja deixar o próprio Raymond Williams falar:

“O trabalho de um movimento socialista triunfante será um trabalho nos sentimentos e na imaginação quase em igual medida que nos feitos e na organização. Não na imaginação ou nos sentimentos no seu sentido mais débil (o de imaginar o futuro, que é uma perda de tempo, ou na vertente emocional das coisas). Pelo contrário, temos que aprender e ensinarmos uns aos outros as relações entre uma formação política e económica, uma formação cultural e educativa e, o que talvez seja mais difícil, a formação do sentimento e da capacidade de relação, que constituem os nossos recursos mais imediatos em qualquer luta” (Williams, 2008: 126).


Alberto Santamaría é professor de Teoria da Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Salamanca. É membro do Conselho Assessor do Viento Sur.

Texto publicado originalmente no Viento Sur. Traduzido para o Esquerda.net por Carlos Carujo.


Referências

Hoggart, Richard (2013) La cultura obrera en la sociedad de masas. Buenos Aires: Siglo XXI.

Sánchez Vázquez, Adolfo (1970) “Los problemas de la estética marxista”, en Adolfo Sánchez Vázquez (ed.), Estética y marxismo. México: Era.

Thompson, Edward Palmer (1961) “The Long Revolution”, New Left Review, 9, pp. 24-33.

Williams, Raymond (1979) Politics and Letters. Interviews with the “New Left Review”. Londres: New Left Books.

(2001a) Cultura y sociedad, 1780-1950. De Coleridge a Orwell. Buenos Aires: Nueva Visión.

(2001b) El campo y la ciudad. Buenos Aires: Paidós.

(2008) Historia y cultura común. Catarata: Madrid.

(2009) Marxismo y literatura. Buenos Aires: Las Cuarenta.

(2012) Cultura y materialismo. Buenos Aires: La marca editora.

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