As pessoas falam em Havana. Fala-se sobre tudo. Fala-se muito, por exemplo, do novo surto da covid-19, que nos últimos dois meses atingiu números da ordem do milhar de infeções diárias, quando nos tínhamos habituado a contar menos de cem. Fala-se do anúncio de supostas medidas adicionais de restrição da pandemia, mais encerramentos, mais controles. Fala-se do vizinho que testou positivo e foi internado, o pobre homem. Fala-se, claro que se fala, das várias vacinas cubanas candidatas, aposta-se nelas e espera-se por elas como tábua de salvação.
Também se fala, agora, que o governo cubano, depois de quase seis décadas de proibição, vai autorizar os ganadeiros do país a abater gado para comercializar a carne e lhes dará facilidades para vender leite. E isto não é pouca coisa: em Cuba, por matar uma vaca, podia-se ter uma condenação pior do que na Índia. Podia-se ir para a cadeia durante vinte anos, muito mais tempo do que para alguns homicídios. Claro que poderá vender-se carne e leite, mas ... com controles. Em Cuba tudo é regulado, controlado, embora depois seja re-regulado e descontrolado, como a transmissão da epidemia. O problema é que em Cuba, que chegou a ser um país exportador de carne, não restam muitas vacas.
A decisão de “liberalizar” o gado vem embalada num pacote de sessenta e três medidas das quais, segundo os media oficiais, “trinta são consideradas prioritárias e outras de caráter imediato, para estimular a produção de alimentos na nação”, algo que, como as pessoas falam, é um problema cada vez maior. Entre essas medidas foi incluída também a redução da tarifa de energia elétrica para os produtores de alimentos, após o aumento de preços decidido pelo governo.
Fala-se, e muito, de que o dinheiro não chega. Por fim, realizou-se a tão esperada e mil vezes anunciada unificação monetária, que tirou da circulação os chamados pesos convertíveis (CUC) que tinham alguma equivalência com o dólar (USD), mas que se trocavam a vinte e quatro pesos cubanos (CUP) por CUC ... mas também a doze, ou um a um, dependendo da instância comercial ou administrativa que realizasse a troca, tendo como resultado lógico que nunca se sabia ao certo quanto custava ou valia algo. Assim funcionava (ou pretendia funcionar) a economia nacional.
Agora, fixou-se o câmbio oficial de um dólar por vinte e quatro CUP, para não desvalorizar demasiado a moeda cubana. E os salários e pensões do estado quintuplicaram-se ou mais em CUP, enquanto os preços dos produtos nas lojas do estado septuplicaram ou muito mais. No entanto, como essas lojas do Estado não estão abastecidas e há longas filas diante delas que podem levar o suposto comprador a estar cinco, seis horas, ao sol e à chuva e sem casa de banho onde faça as suas necessidades (também se fala nisso, muitíssimo), o mercado negro do câmbio de divisas deu ao dólar e ao euro valores mais reais: cerca de quarenta e oito pesos por dólar e cinquenta e seis pesos por euro. E em subida.
Fala-se, certamente, de que o presidente Joe Biden nem sequer olhou para nós. Esperavam-se algumas mudanças nas medidas muito restritivas aplicadas pela administração anterior, que endureceu as leis do embargo, proibiu praticamente o envio de remessas dos Estados Unidos para Cuba, fechou o consulado em Havana e complicou a possibilidade de viajar aos cubanos com famílias do outro lado do Estreito da Flórida. Hoje, para aspirar a um visto, o cidadão cubano tem de ir a um terceiro país. Guiana, por exemplo. E quando fala sobre isso, as pessoas perguntam: Biden é mais do mesmo? Até agora, para os cubanos, parece que sim.
Mas fala-se, sobretudo, que a "coisa" está mal. De que a economia está em crise com a paralisia do turismo e a tradicional ineficiência, do aumento da atividade dos dissidentes, de que a vida está cada vez mais cara e as pessoas não sabem como dar um jeito. Até o Presidente da República, Miguel Díaz-Canel, o diz quando exige soluções imediatas, porque há urgência, não há tempo para prazos longos.
E embora se fale também do VIII Congresso do Partido Comunista de Cuba, creio que a ele se dedicam menos palavras, comentários e pensamentos dos que logicamente deveria provocar. Mesmo nos media oficiais, dirigidos pelo Partido, tenho quase a certeza de que se falou muito menos do que outras vezes. Apenas se sabe que se discutirá no Congresso sobre “a atualização da Conceptualização do Modelo Económico Cubano de Desenvolvimento Socialista e da implementação das Linhas de Orientação da Política Económica e Social do Partido e da Revolução”. Ou seja, voltará a falar-se do que já se fala.
Diz-se também que o Congresso trará mudanças. Mas só sabemos com certeza que haverá uma, e já a conhecemos há vários anos: o general Raúl Castro deixará o seu cargo de Secretário-Geral e o entregará ao atual Presidente da República.
O que implicará essa mudança? As pessoas não sabem e apenas especulam sobre o assunto. Já se sabe, porque foi dito, que o Congresso será um exercício de continuidade, de reafirmação da irreversibilidade do socialismo em Cuba, ou seja, que em essência se dirá que se manterão as mesmas formas de governo, política e de organização social existentes neste momento.
Se houvesse mais informações sobre o que poderá trazer a reunião do órgão máximo de decisão do país, talvez as pessoas falassem muito mais
Se houvesse mais informações sobre o que poderá trazer a reunião do órgão máximo de decisão do país, talvez as pessoas falassem muito mais. Mas o secretismo faz parte do sistema político cubano. No entanto, pressupõe-se que a substituição de gerações históricas não implicará uma substituição essencial de práticas políticas, embora já a nível económico, como já referi, se tenham introduzido transformações, pois o país atravessa uma das suas piores crises financeiras, de produção e de abastecimento, não tão profunda como a da década de 1990, mas bastante próxima.
Com menos expectativas no ambiente do que talvez devesse gerar a reunião do partido único e governante em Cuba, seria desejável que o Congresso a decorrer (entre 16 e 19 de abril) desse muito mais temas para falar, especular, resultados que esperar. Que como resultado do conclave, se abanassem mais e melhor as estruturas económicas que demonstraram estar feridas por mecanismos e leis disfuncionais (como as que provocaram o empobrecimento da população pecuária do país) ou a tão demorada unificação monetária, que chegou quando não podia esperar-se mais e foi no pior momento económico da nação (só para citar um par de exemplos, a partir do que antes se mencionou), mudanças que tragam mais esperança a uma população que vive uma etapa de infinitas dificuldades, agravadas pela presença da pandemia que alterou o equilíbrio económico do mundo, não só da ilha.
No plano simbólico, o Congresso marcará uma mudança histórica na ilha, quando, pela primeira vez em seis décadas, já não serão Fidel e Raúl Castro os líderes. Nos últimos anos, e mais ainda nos últimos meses, a presença pública do general Raúl Castro tornou-se muito esporádica, enquanto a do presidente Díaz-Canel alcançou níveis de visibilidade que nem mesmo Fidel teve (segundo recordo). Portanto, será necessário ver se na realidade a transferência de poderes é completa e o que significará diante das novas realidades do país e do mundo. Embora, repito, se fale de continuidade, apenas continuidade.
Uma grande campanha de vacinação contra a covid-19, com vacinas criadas em Cuba, pode ser um grande legado do VIII Congresso do Partido Comunista de Cuba, neste mês de abril de 2021. A saída do cenário político ativo de Raúl Castro, logicamente que envolve uma viragem histórica mais ou menos visível no imediato. Mas as pessoas precisam de mais. Não só para falar, mas para viver melhor. Acho que depois de tantos sacrifícios, nós cubanos o merecemos.
E com urgência, não com soluções de longo prazo que às vezes nem sequer chegaram, perdidas no tempo, no espaço, na ineficiência e no esquecimento.
Artigo do escritor cubano Leonardo Padura, publicado em Correspondencia de Prensa e originalmente em Nueva Sociedad, em abril de 2021. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net