O Conselho Europeu, que reúne os líderes de governo dos 27 Estados-Membros da União Europeia, anunciou esta terça-feira a convocatória deuma reunião extraordinária para 17 e 18 de julho. A reunião, a primeira a realizar-se presencialmente desde que a pandemia atingiu o continente, terá como objetivo debater o Fundo de Recuperação europeu e o Orçamento Comunitário para 2021-2027.
O contexto
O anúncio surge menos de uma semana depois da última reunião do Conselho (19 de junho). Na altura, as divergências entre os países impossibilitaram uma decisão. À saída da reunião, o primeiro-ministro português, António Costa, admitiu que ainda não era possível chegar a acordo mas garantiu que os países “foram unânimes na necessidade de um acordo em julho”.
O que está em cima da mesa
A proposta apresentada pela Comissão Europeia, que resulta em parte de um acordo prévio entre a Alemanha e a França para procurar desbloquear o impasse nas negociações, prevê que o Fundo de Recuperação seja composto por 750 mil milhões de euros, dos quais 500 mil milhões seriam destinados a subvenções aos países e 250 mil milhões a empréstimos. No caso de Portugal, os montantes atribuídos seriam de 15,5 mil milhões em subvenções e até 10,8 mil milhões em empréstimos, aproximadamente.
Após a reunião da passada sexta-feira, o presidente do Conselho, Charles Michel, reconheceu que “não subestimamos as dificuldades, e em diferentes temas constatamos que é necessário prosseguir as discussões”. No entanto, deixou uma nota positiva sobre a perspetiva de um consenso entre os países em julho. Numa conferência de imprensa conjunta, Olaf Scholz e Bruno Le Maire, ministros das Finanças alemão e francês (respetivamente), reforçaram a necessidade de se chegar a um acordo em breve. Le Maire afirmou que “é tempo de decidir, temos tudo em cima da mesa para apoiar as nossas economias, e quanto mais rápido melhor”.
Neste momento, a discussão centra-se na proporção de empréstimos e subvenções que serão atribuídos aos Estados-Membros através do Fundo de Recuperação. É aqui que as divergências se acentuam: se, por um lado, países como Itália, Espanha ou Portugal têm defendido que deve ser mantido o desenho inicialmente proposto pela Alemanha e França, os países do Norte têm-se oposto a esta solução. A chave de distribuição dos fundos também tem motivado discordância, a par da forma de financiamento do Fundo. E é aqui que os problemas se acentuam.
O diabo nos detalhes
Apesar do tom elogioso de António Costa, que fez questão de garantir que a resposta europeia à crise “não se trata de uma nova troika”, a verdade é que há vários detalhes que continuam a justificar reservas em relação ao Fundo de Recuperação. E podem ser preocupantes.
Comecemos pela questão do financiamento. A Comissão apresentou inicialmente uma proposta em que se previa a possibilidade de financiar a dívida que irá emitir agora com base num aumento dos “recursos próprios” da União. Para isso, avançava a possibilidade de criar novos impostos europeus, nomeadamente um imposto digital, um sobre o plástico, um sobre o carbono e outro sobre as transações financeiras. Mas nenhum destes é garantido.
O primeiro incidiria sobre multinacionais digitais, no âmbito do que tem sido discutido a nível internacional na OCDE. O problema é que os EUA e a administração de Trump estão a bloquear um acordo e a arrastar as negociações. O segundo é um imposto que recai sobretudo sobre os consumidores, imputando-lhes os custos do uso do plástico em vez de procurar uma solução estrutural para o problema. O eurodeputado bloquista José Gusmão disse que esta “é uma proposta típica de austeridade verde, recairá sobre os consumidores e servirá muito possivelmente para refrear propostas de proibição do plástico descartável que obrigassem as empresas a mudar a sério.” Os restantes são de muito difícil consenso e têm sido considerados menos prováveis.
1. O que temos neste momento com a proposta da Comissão é 100% dívida. Vou repetir: 100% dívida. Os recursos próprios estão fora da proposta. Sem recursos próprios, a dívida agora emitida será paga por orçamentos futuros, ou seja, não há financiamento a fundo perdido nenhum.
— José Gusmão (@joseggusmao) June 19, 2020
A alternativa ao aumento dos recursos próprios é o aumento das contribuições dos Estados-Membros para o orçamento comunitário, algo que os “países frugais” (Holanda, Dinamarca, Suécia e Áustria) têm rejeitado liminarmente desde o início das negociações. Assim, caso ambas as soluções sejam bloqueadas no Conselho, onde os países dispõem de poder de veto, restará à Comissão reduzir os orçamentos futuros para compensar a dívida atual. É por isso que Gusmão lembra que “sem recursos próprios e sem contribuições adicionais, a amortização da dívida será feita por orçamentos futuros, o que significa que os países da coesão recebem mais agora e pagarão mais no futuro.”
Além disso, a condicionalidade no acesso aos fundos continua a ser uma incógnita. Um representante das instituições europeias afirmou ao EURACTIV que os países terão de aplicar reformas estruturais e “ajustamentos orçamentais” para reduzir as elevadas dívidas públicas. Esta posição, que reacende a memória dos programas de ajustamento da troika impostos após a última crise, prejudica os países mais endividados e reforça a tendência de divergência na UE, além de ser contraproducente do ponto de vista da recuperação económica. Marisa Matias considerou o Fundo de Recuperação proposto pela Comissão “subfinanciado e sobrecondicionado”.
É importante notar ainda que, de acordo com um estudo elaborado pela Climate & Company e a Agora Energiewende, o plano fica significativamente aquém do necessário para o cumprimento das metas climáticas definidas pela própria União. O estudo aponta para uma diferença de 1,6 biliões de euros entre o que está em cima da mesa e o investimento que seria necessário, com base nas estimativas da Comissão. É por isso que o acordo que os países podem estar perto de alcançar no Conselho não significa necessariamente boas notícias para a recuperação económica. A chave estará nos detalhes.