Gaza

Como o imperialismo alemão se apelidou de feminista

28 de dezembro 2024 - 11:59

No ano passado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão definiu diretrizes para uma política externa “feminista”, centrada na defesa das mulheres marginalizadas. Hoje, em Gaza, este mesmo ministério está a armar a mais mortífera guerra contra mulheres e raparigas deste século.

por

Magdalena Berger

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Annalena Baerbock
Annalena Baerbock. Foto de Heinrich-Böll-Stiftung/Flickr

O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha anunciou pela primeira vez que iria implementar uma “política externa feminista” em março de 2023, mas o debate público sobre o significado da mesma nunca esteve tão aceso como no último mês. No dia 21 de outubro, a organização internacional de investigação responsável pelo conceito, o Centro para a Política Externa Feminista (CFFP), juntamente com a ONG de direitos humanos HÁWAR.help, organizou uma conferência de imprensa relativa ao tema “prevenir femicídios, legalizar abortos”. A ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, do partido Os Verdes, foi a protagonista da conferência, juntamente com outras mulheres de renome do mundo da política e da cultura.

Este tipo de reivindicações é o menor denominador comum de todos os movimentos feministas. No entanto, a hostilidade adensava-se dentro e fora do evento, principalmente por causa da presença de Baerbock. Uma pessoa levantou-se em protesto e gritou: “Parem o genocídio das mulheres palestinianas!” e acabou por ser retirado pela segurança. No exterior, as mulheres protestaram com cartazes em que se podia ler, por exemplo, “os direitos das mulheres não devem ser sinónimo de privilégio branco”.

As imagens e os vídeos da conferência e os protestos associados suscitaram fortes reações nas redes sociais: as fundadoras do CFFP foram acusadas de “feminismo branco” e as feministas internacionais de renome demitiram-se do conselho consultivo da organização.

Este debate trouxe à tona uma questão que tem vindo a ser debatida há algum tempo: embora o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha afirme, nas suas diretrizes para uma política externa feminista, que “se foca nos direitos, na representação e nos recursos das mulheres e dos grupos marginalizados”, na prática, mina exatamente esses direitos. A política externa feminista serve apenas para conferir uma aura progressista ao governo alemão. O facto de não haver nada de feminista nas políticas de Baerbock é evidente na sua política em relação a Gaza.

Baerbock não é uma campeã do feminismo

A fundadora do CFFP, Kristina Lunz, tentou justificar a participação da ministra dos Negócios Estrangeiros na conferência de imprensa ao jornal de esquerda liberal Taz, afirmando que Baerbock “é uma das poucas que defende o direito ao aborto”. De facto, é verdade que Baerbock há muito que faz campanha contra a criminalização do aborto. O facto de o aborto continuar a ser um crime na Alemanha é “completamente anacrónico”, disse a líder dos Verdes este verão. É verdade que Baerbock tem um perfil legítimo quanto a esta matéria. Mas ela só pode ser considerada feminista se optarmos por ignorar as suas ações dentro do seu próprio ministério.

Depois dos Estados Unidos, a Alemanha é o fornecedor de armas mais importante de Israel. Entre agosto e outubro de 2024, a Alemanha aprovou o fornecimento de armas a Israel no valor de mais de 94 milhões de euros. O apoio quase incondicional da ministra dos Negócios Estrangeiros a Israel, mesmo quando este ataca escolas e outras infraestruturas civis, ficou claro quando afirmou erradamente no mês passado que “os lugares civis podem perder o seu estatuto de proteção (ao abrigo do direito internacional) se os terroristas abusarem desse estatuto”.

As palavras de Baerbock estão em total desacordo com a realidade em Gaza e no Líbano. Um relatório da ONU publicado há poucas semanas afirma que a reconstrução de Gaza poderá demorar 350 anos se a faixa costeira continuar sob bloqueio. Em Gaza, mais de meio milhão de mulheres são afetadas pela insegurança alimentar e 175 mil estão expostas a riscos de saúde que ameaçam a sua vida. Em nenhum outro conflito das últimas duas décadas foram mortas tantas mulheres e meninas num só ano como em Gaza. Como se estes factos não fossem suficientemente evidentes, até o Centro Europeu para os Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR) começou recentemente a tomar medidas legais contra o fornecimento de armas da Alemanha a Israel.

Em 2023, a coligação governamental de centro-esquerda da Alemanha estabeleceu um recorde de exportações de armas e, este ano, esse recorde poderá ser novamente ultrapassado. Para além de Israel, estas armas estão a ser enviadas para países como a Arábia Saudita, o Qatar e a Turquia, demonstrando que a retórica relativa “à luta contra o islamismo” em nome da proteção dos direitos das mulheres não tem de ser levada a sério quando choca contra os interesses geopolíticos e financeiros da Alemanha. As armas enviadas para a Turquia estão também a ser utilizadas, entre outras coisas, para destruir o movimento de libertação curdo e, consequentemente, a revolução das mulheres no nordeste da Síria. Ironicamente, a política externa alemã talvez nunca tenha sido tão pouco feminista como agora, apesar das suas diretrizes feministas.

As feministas alemãs devem resistir veementemente às políticas deste governo. Enquanto organização independente, o CFFP tentou, de forma apagada, fazer isto. Desde logo, pronunciou-se a favor de um cessar-fogo em Gaza e disse (provavelmente também em resposta ao protesto na conferência de imprensa) que a Alemanha tem de deixar de exportar armas para Israel. O problema é o seguinte: que credibilidade tem uma organização que continua a proteger a ministra dos Negócios Estrangeiros? Consciente ou inconscientemente, o CFFP pouco mais faz do que garantir que políticos como Baerbock possam continuar a fingir-se de feministas.

Críticas da esquerda

As feministas de esquerda têm vindo a formular críticas à política externa feminista do Governo desde que o conceito entrou no discurso político alemão. A socióloga política Rosa Burç explicou que a política externa feminista corre o risco de “criar um novo espaço para legitimar uma política externa intervencionista”. A escritora feminista Hêlîn Dirik escreveu que “um Estado capitalista e imperialista não desafiará as condições que condicionam as mulheres e as pessoas queer de todo o mundo à pobreza, que as exploram, que as sujeitam à violência e que as marginalizam”. Por isso, é irrelevante a política externa alemã apelidar-se de feminista. Afinal, os interesses da política externa alemã são interesses capitalistas que se baseiam na exploração dos oprimidos, que são frequentemente mulheres e meninas.

Esta auto-imagem torna impossível o Governo ser recetivo às críticas relativas à dimensão colonialista da política externa feminista. Isso significaria ter em conta as mudanças económicas e sociais necessárias para libertar as mulheres. Isto significaria, em princípio, dissolver ou, pelo menos, reestruturar o objetivo do CFFP de forma tão drástica que este deixaria de ser considerado adequado para governar. Estes seriam vistos como adversários políticos de uma visão genuinamente feminista e universal do mundo.

No entanto, as ações contraditórias de organizações como a CFFP tornaram-se tão evidentes que, por vezes, são mesmo expressas por pessoas com ligações institucionais a organizações internacionais ou a partidos políticos tradicionais. Uma dessas vozes críticas é de Kavita Nandini Ramdas, antiga presidente do Fundo Mundial para as Mulheres. Juntamente com Sanam Naraghi- Anderlini, diretora da International Civil Society Action Network (ICAN), Ramdas anunciou publicamente que ia abandonar o conselho consultivo do CFFP, em parte por ter sido silenciada devido às suas posições sobre Gaza. Entretanto, o conselho consultivo foi dissolvido.

No entanto, o foco principal da sua declaração não era a crítica à política externa feminista em si, mas à exclusão de Gaza nessas discussões. Numa declaração (entretanto apagada), o CFFP negou ter restringido os membros do seu conselho consultivo a expressar opiniões sobre Gaza. Alguns dias depois, foi também publicada uma carta aberta de antigos funcionários que, entre outras coisas, acusam a organização de discriminar sistematicamente as funcionárias marginalizadas, especialmente quando defendem os direitos das mulheres palestinianas.

Nos dias que se seguiram ao evento, o CFFP começou por rejeitar as críticas, declarando-as declarações misóginas. Mas não são os únicos que estão errados: sempre que as ações das mulheres desencadeiam um discurso na Internet, é de esperar que desencadeiem respostas genuinamente sexistas e que os argumentos daí resultantes sejam regularmente rejeitados de forma misógina. As queixas interpessoais e sociais entram nas discussões online e as críticas legítimas misturam-se com ataques desproporcionados e, por vezes, com desinformação. Nem sempre é possível separar uma coisa da outra.

No entanto, as tentativas de ignorar o carácter político das críticas fazem parte do clássico baluarte liberal-feminista contra as críticas da esquerda. Em nome da paz e das aparências, as feministas são convidadas a abster-se de se criticarem “umas às outras”. No final de outubro, parecia que o CFFP poderia realmente estar aberto a algumas críticas, declarando que tencionava abordar as críticas legítimas “entre o ódio e as mentiras”, mas o post foi apagado pouco depois e o site do CFFP encontra-se agora em “manutenção”. É pouco provável que venhamos a assistir a um debate político sincero que vá além da abordagem de queixas pessoais e identitárias. Talvez o melhor que possamos esperar é que, da próxima vez que falarmos de “política externa feminista”, uma mulher palestiniana seja autorizada a partilhar o palco com Baerbock.


Magdalena Berger é diretora assistente da Jacobin.de. Publicado originalmente na Jacobin. Traduzido por Nuno Oliveira para o Esquerda.net.