“Cláusula sete”: como um manifestante francês foi preso em Londres por terrorismo

23 de abril 2023 - 21:20

As disposições britânicas sobre terrorismo colocam nas mãos da polícia um enorme poder discricionário. Se a polícia passar a incluir a prisão de manifestantes franceses que se manifestam em França isto é extremamente preocupante. Por Alan Greene.

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Polícia britânica. Foto de Chris JL/Flickr.
Polícia britânica. Foto de Chris JL/Flickr.

A prisão e acusação de um editor francês à sua chegada a Londres levantou sérias questões sobre o uso e o abuso de poder no Reino Unido. Ernest Moret foi detido e interrogado pela polícia na estação de St Pancras ao abrigo da legislação anti-terrorista, alegadamente devido ao seu envolvimento nos protestos anti-governo que varreram França nas semanas recentes.

Moret foi abordado ao abrigo da cláusula sete da Lei do Terrorismo de 2000, um dos mais controversos poderes anti-terroristaa do Reino Unido.

O que é a cláusula sete?

A cláusula sete dá à polícia poder de identificar e deter qualquer pessoa num aeroporto ou porto (ou neste caso numa estação internacional de comboios) por um período de até seis horas, mesmo que não haja suspeita razoável de que tenham feito alguma coisa errada. Pelo contrário, os poderes normais de prisão e de parar e revistar exigem que a polícia tenha uma suspeita razoável antes de os exercer.

Quem for parado ao abrigo da cláusula sete deve obedecer a ser revistado, o que inclui a entrega de documentos e outra informação requerida. Não o fazer é um crime, e foi aparentemente por isso que Moret foi preso: de acordo como uma declaração da sua editora, recusou revelar as palavras-passe do seu telefone e computador.

Apesar da cláusula sete poder ser aplicada sem suspeita razoável, o poder só deve ser usado para o propósito específico de avaliar se uma pessoa “está ou esteve implicada na realização, preparação ou instigação de atos de terrorismo”. Não seria legal usá-la para parar alguém por causa de um outro tipo de crime, digamos, posse de drogas ou invasão de propriedade.

Portanto, se, como é alegado, Moret foi abordado porque a polícia disse que “tinha o direito de lhe fazer perguntas sobre as manifestações em França” isto levanta a questão de saber se o poder foi exercido com o propósito correto – avaliar se ele era uma pessoa implicada na realização, preparação ou instigação de atos de terrorismo.

O que é o terrorismo?

Em última análise tudo isto depende do significado de “atos de terrorismo” e a definição do Reino Unido de terrorismo contida na lei britânica é muito ampla. Essencialmente, o Reino Unido define terrorismo como um ato (ou ameaça de ato) concebido para influenciar o governo ou uma organização internacional ou para intimidar a população ou um segmento da população com o propósito de fazer avançar uma causa política, religiosa, racial ou ideológica.

Nem todas as ações, contudo, são incluídas. A lei define ações que envolvam violência grave contra pessoas, graves estragos à propriedade, colocar em perigo a vida de pessoas, criar um perigo grave à saúde ou segurança da população ou concebido para interferir gravemente com ou perturbar um sistema eletrónico.

Aparentemente, esta definição parece razoável. Todos imaginamos ataques terroristas a ferir ou matar pessoas. Talvez também os imaginemos a danificar seriamente propriedade. Seria perverso dizer que a bomba que matou pessoas foi um ataque terrorista mas a que apenas danificou um edifício não o foi.

Contudo, nem todos os exemplos são assim tão evidentes. Qual deve ser o nível de estragos à propriedade? A definição de terrorismo é omissa acerca de como estes estragos podem ocorrer. Por outras palavras, os estragos não têm de ser causados por bombas ou armas de fogo para serem considerados terrorismo.

Os manifestantes que lançam sangue falso contra um edifício poderão ser acusados de causar “estragos graves à propriedade”? E cortar a cabeça de uma estátua em protesto contra o falhanço das instituições públicas em lidarem com o legado do tráfico de escravos? Controverso, talvez, mas terrorismo? E perturbar um evento desportivo e causar um estrago enquanto se faz isto?

A maior parte das pessoas pensaria provavelmente que sabemos o que é terrorismo quando o vemos mas tentar defini-lo legalmente é notoriamente difícil. Por esta razão, o Reino Unido define o terrorismo em traços largos e depois deposita enorme confiança nos decisores, como a polícia, para que estes não apliquem a definição de forma perversa.

Isto significa que não é a letra da lei que impede que os poderes da lei anti-terrorista seja aplicada aos exemplos acima mencionados de protesto político. É, ao invés, como estão a ser interpretados e como a lei está a ser aplicada.

Liberdade de expressão

Esta delegação de poderes aos agentes da autoridade e aos procuradores no terreno é o que torna a detenção do editor francês tão preocupante. A cláusula sete tem uma história problemática e controversa a este propósito.

Em 2013 David Miranda, marido do jornalista Glenn Greenwald, foi detido no aeroporto de Heathrow com ficheiros relacionados com a informação obtida pelo lançador de alerta norte-americano Edward Snowden. Apesar do Tribunal de Recurso ter decidido que foi detido legalmente, também descobriu que a cláusula sete falhou em proteger adequadamente o direito do jornalista à liberdade de expressão de acordo com a Convenção Europeia sobre o Direitos Humanos.

Em vez de emendar a lei no que diz respeito à cláusula sete para retificar isto, o Reino Unido assumiu uma abordagem muito mais limitada e emendou o código de prática que os agentes devem seguir quando estão a exercer estes poderes de forma a providenciarem salvaguardas adicionais aos jornalistas. Contudo, isto parece não ter sido suficiente para proteger Moret de ser detido e depois preso por incumprimento da cláusula sete.

Apesar de alguns elementos nos protestos em França se terem tornado violentos, o protesto é, contudo, fundamental numa democracia. E até há deputados franceses que participam neles.

Assim, se agora a polícia estiver a interpretar como a definição do Reino Unido de terrorismo prender franceses que se manifestam em França isto é extremamente preocupante. Esta definição também não está limitada a ações que ocorreram dentro do Reino Unido pelo que uma pessoa envolvida neste tipo de condutas no estrangeiro pode ainda assim ser sujeita aos poderes anti-terrorismo britânicos assim que entre no Reino Unido.

Isto pode ter sentido em relação a pessoas que voltaram ao Reino Unido depois de terem viajado para a Síria ou para o Iraque para se juntarem ao “Estado Islâmico” mas serão os protestos franceses num país democrático verdadeiramente algo do mesmo tipo? E se protestos semelhantes contra um regime anti-democrático ou autoritário se tornarem violentos? Também aqui potencialmente estariam incluídos numa definição de terrorismo que não faz distinções entre se o governo contra o qual a atividade é dirigida é democrático ou não.

No cômputo geral, o Reino Unido decidiu-se por uma definição muito alargada de terrorismo de forma a apanhar o menor denominador comum. Qualquer tentativa de emendar esta definição ou de substituí-la por uma diferente com poderes e crimes diferentes iria requerer tempo substancial e um esforço político que é improvável que seja gasto nos próximos tempos.

Até à altura em que haja vontade política de mudar a lei, os interfaces britânicos de transportes continuarão a ser lugares precários por causa da cláusula sete e o poder discricionário que coloca nas mãos dos agentes policiais.


Alan Greene é leitor de Lei Constitucional e Direitos Humanos da Universidade de Birmingham. Texto publicado originalmente no The Conversation. Traduzido para o Esquerda.net por Carlos Carujo.