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Ciro e o cemitério (político)

Sem bases organizadas, Ciro Gomes é cada vez mais só um aventureiro, e agora um aventureiro indubitavelmente à direita. Artigo de Felipe Demier.
Ciro Gomes em Brasília. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Ciro Gomes, por vezes, fez certas críticas corretas e à esquerda a Lula (que, de facto, sempre negociou e se curvou à nossa cruenta e ingrata burguesia), e também fez muitas outras injustas e reacionárias. Por oportunismo pessoal e eleitoral, fixou-se ultimamente nessas últimas, e foi aberta e indisfarçavelmente à direita, apelando para um moralismo udenista e preconceituoso. Tornou-se, assim, um cavaleiro tardio do lavajatismo post mortem, e diretamente responsável por um aumento na intenção de votos em Bolsonaro.

Ademais, as eleições este ano não são sobre Lula, e sim sobre Bolsonaro. Não entender isso, não entender que este último deve ser derrotado o quanto antes, é não entender nada do que houve no país de 2016 pra cá. Ciro sempre foi um general com ímpeto, e talvez, para alguns, o tenha sido até um general mais resoluto que Lula. Mas a luta política não é, nos seus fundamentos centrais, uma luta de personalidades. A noção de que a solução nacional estaria na escolha de indivíduos competentes que, uma vez à frente do Estado, concebido como um árbitro neutro, implementariam suas geniais ideias não é muito mais do que uma ideologia cultivada por estratos pequeno-burgueses, em boa parte esclarecidos e competentes em suas vidas profissionais. Nesta perspectiva, as massas populares aparecem apenas como um ente vulgar e preso ao “sistema de carências”, uma espécie de esteio, de base passiva a partir do qual os verdadeiros espíritos almejam efetivar bons planos, de modo que a história possa caminhar racionalmente.

Chefes de suas Sagradas Famílias e bem sucedidos no reino do mercado ou da máquina pública gestada com sensaboria, nossos progressistas da “antipolarizacão” cirista não crêem em qualquer progresso que não seja aquele realizado por seus congêneres na esfera política. Uma vez tendo em mãos o leme estatal, políticos “éticos e preparados”, lançando mão de manuais pós-keynesisnos, resolveriam as tarefas que os sujeitos coletivos seriam incapazes de levar a cabo, tal qual, para os velhos materialistas franceses iluministas, a reprodução do resistente e obsoleto “ancien régime” só poderia ser quebrada pela ação “externa” dos déspotas esclarecidos ousados e bem assessorados.

Diferentemente de Lula, Ciro Gomes sempre foi um general sem exército, um líder sem massas, um dirigente sem povo. Não há movimentos sociais e experiência história coletiva por detrás dele. Seu respaldo é ele mesmo, ele e sua “consciência esclarecida”. Um self made man politico de laivos bonapartistas, Ciro Gomes é cada vez mais só ele mesmo, ele e seu tal programa político que, heteróclito, coaduna crescimento económico com austeridade.

A esquerda socialista, por óbvio, deve apoiar e simultaneamente criticar Lula por seus compromissos, pois é este quem pode de facto derrotar Bolsonaro nas urnas, e é este quem, depois, no governo, poderá ser cobrado por suas bases de massas (em especial pelos setores mais organizados) para que não incida nos mesmos erros e alianças que levaram à onda conservadora, ao golpe e à vitória do bolsonarismo. Ciro Gomes, sem bases organizadas, é cada vez mais só um aventureiro, e agora um aventureiro indubitavelmente à direita. Não há por que ser apoiado. Sequer o contestável argumento de 2018, de que só ele derrotaria Bolsonaro num segundo turno, faz mais sentido.

A ousadia deu lugar ao arrivismo, e a moral, à covardia. Se desta vez novamente se declarar neutro em um segundo turno entre a moderada social-democracia e o neofascismo genocida, Paris seria, uma vez mais, um destino adequado, mas não pelo escapismo “antipolarização” dos cafés e da Sorbonne, e sim pelo, desta vez incontornável, Pere Lachaise.


Felipe Demier é Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017). Artigo publicado em Esquerda Online.

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