Cabo Delgado: Indiferença perante escalada de violência e grave crise humanitária

03 de março 2024 - 12:49

Violência voltou a escalar na província moçambicana. Populações são alvo de ataques dos insurgentes, mas também das forças militares no terreno, treinadas pela missão europeia liderada por Portugal. Governo de Nyusi aparenta só ter um interesse: proteger projetos da Exxon Mobil e TotalEnergies.

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Crianças em assentamento para deslocados internos em Cabo Delgado. Foto Unicef/Mauricio Bisol

Desde outubro de 2017, Cabo Delgado é palco de ataques de grupos de machababos (insurgentes). A partir de meados de 2019, a maioria dos ataques são reivindicados pelo Estado Islâmico na África Central.

Certo é que o alto nível de recrutamento entre as populações locais, principalmente entre a juventude local, tem, de acordo com várias organizações não governamentais, ativistas e especialistas, é justificado não apenas por questões religiosas, como também pelo descontentamento face à falta de oportunidades, à falta de investimento na região, às desigualdades geradas pelos projetos de exploração de gás na região.

O Governo moçambicano tem procurado a todo o custo garantir o relançamento ou a continuidade dos projetos estrangeiros de exploração de gás, em detrimento da segurança das populações. E tem-se recusado a atuar sobre as raízes do problema no que respeita à adesão dos jovens moçambicanos a esta onda de violência.


Mais informações sobre a origem da violência em: Cabo Delgado


Nova escalada de violência em Cabo Delgado

Nas últimas semanas, e depois de um ano marcado pelo recrudescimento dos ataques, a província de Cabo Delgado foi alvo de uma escalada massiva da violência insurgente, essencialmente nos distritos de Chiúre, no sul, Macomia, Meluco e Quissanga, no centro da província, e Mocímboa da Praia, no norte.

O bispo de Pemba, D. António Juliasse, em mensagem enviada à Fundação AIS, alertou para o risco do sofrimento do povo desta província ser votado ao esquecimento por parte da comunidade internacional: “O risco maior é serem rostos esquecidos em função de outras guerras no mundo”, frisou.

“A violência perpetrada neste distrito nas duas últimas semanas foi de tal forma que cerca de uma dezena de aldeias, algumas muito populosas, foram visadas, com destruição de habitações e instituições”, detalhou a mais alta figura da Igreja Católica em Cabo Delgado.

Vaga massiva de deslocados abandonados à sua sorte

As populações fogem em desespero dos ataques no Norte de Cabo Delgado. Filimão Suaze, porta-voz do Conselho de Ministros, reconheceu, na terça-feira, que 67.321 novos deslocados vieram somar-se às centenas de milhares que foram obrigados a abandonar as suas casas, refugiando-se noutras áreas de Cabo Delgado e no distrito de Eráti, na província de Nampula.

Em comunicado divulgado quinta-feira, a Unicef refere, por sua vez, que, até ao dia anterior, 33.218 pessoas estavam deslocadas em Nampula, no distrito de Eráti, norte daquela província, e 38.463 em Cabo Delgado, sobretudo no distrito de Chiùre, a sul. A organização avança que 61% (43.725) dos deslocados são crianças e que 129 escolas já foram fechadas, afetando afetando 68.300 alunos. No documento, a Unicef alerta ainda que, pelo menos, 52 crianças chegaram ao seu destino, depois de dias a caminhar, sem os seus cuidadores.

O Instituto Nacional do Apoio aos Refugiados (INAR) em Cabo Delgado alertou que não está a conseguir deslocar-se, por razões de segurança, para distritos como Mueda, Mocímboa da Praia, vendo-se impedido de prestar auxílio às populações.

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) também deixou advertências no que respeita à situação humanitária em várias aldeias da província moçambicana de Cabo Delgado: "É uma grande preocupação, em muitas aldeias a população volta a enfrentar muitas necessidades, falta de comida, falta de proteção, falta de abrigo e necessidade de água e assistência", destacou Francesca Zuccaro, chefe de missão adjunta daquela organização internacional em Moçambique. "Estamos a ver famílias, mulheres, crianças a viverem com medo, tentando procurar refúgio e ajuda noutros locais", continuou.

O ativista da organização não governamental Kuendeleya Milo Mariano deixou relatos da situação no terreno: “os que estão a fugir, a correr de um lado para o outro, fogem à sua sorte. Sobem para camiões que não sabem de quem são, de onde vieram, sem nenhum dinheiro e sem nenhum apoio. Eles simplesmente seguem para onde vai aquele camião. Algumas pessoas até vão a pé”.

Milo Mariano acusou o de nada fazer para ajudar as populações: “O Governo diz que não tem como ajudar. Só se fosse para eleições é que eles teriam mobilizado camiões para salvar pessoas, para levar mais eleitores de um posto para outro. Para isso eles têm dinheiro, mas dinheiro para salvar, para dar assistência nos primeiros dias a quem foge, não”.

Abudo Gafuro, voluntário que apoia as pessoas deslocadas em Pemba, falou numa “situação fora de controlo” e na “necessidade de o Governo ativar um “plano de emergência” que vise assegurar alimentação, apoio psicológico e a necessária integração na sociedade, inclusive no plano económico.

O sociólogo e analista político João Feijó reitera a necessidade de medidas, sobretudo no domínio socioeconómico, que integrem estas pessoas economicamente, ‘’porque não é sustentável estar a alimentar indefinidamente, milhares de pessoas’’.

Também Luís Nhachote, coordenador executivo do Centro de Jornalismo Investigativo de Moçambique, segue esta linha de pensamento, no sentido de que é preciso “encontrar mecanismos urgentes para gerar emprego para aquela juventude”. Os jovens que passam por esse recrutamento – seja ele “compulsivo ou não, arbitrário ou forçado” – também olham para “a força das armas como um caminho de contestação contra o poder instituído, por falta de oportunidades”, afirmou Luís Nhachote em declarações ao Expresso.

Jessemusse Cacinda, investigador do Centro de Estudos Sociais, enfatizou que, com níveis de desigualdade “cada vez mais acentuados” e as “condições precárias” em que muitas pessoas vivem na província e no resto do país, “fica cada vez menos possível imaginar um futuro”. E “a única forma de impedir o recrutamento, no caso dos jovens daquela região, é o Estado criar condições para que eles sintam que vivem uma vida possível, que não os obrigue a ter de ir para o mato fazer a guerra ou envolver-se nesses grupos”, continuou.

Autoridade estrangeiras alertam para perigo

O Foreign Commonwealth & Development Office (FCDO), responsável pela proteção dos interesses e cidadãos britânicos no exterior, desaconselhou "todas as viagens" para o norte da província de Cabo Delgado, incluindo os distritos de Mueda, Nangade, Palma, com exceção da capital Pemba, para viagens essenciais, Mocímboa da Praia, Muidumbe, Meluco, Macomia, Quissanga e Ibo. O FCDO desaconselha também “todas as viagens, exceto as essenciais", para os distritos de Memba e Eráti, em Nampula.

Já a Embaixada de França em Moçambique, exortou os cidadãos franceses a não viajarem para as cidades de Mocímboa da Praia, Pemba e Palma. "Devido à presença de uma ameaça terrorista e de rapto nas cidades de Mocímboa da Praia, Pemba e Palma, é fortemente recomendado não viajar para estas cidades, bem como viajar nas estradas que ligam estas localidades", lê-se numa mensagem aos viajantes publicada em 14 de fevereiro pela Embaixada de França em Maputo.

Governo desvaloriza e quer projetos de gás a todo o vapor

O Governo parece mais interessado em garantir a reativação ou a continuidade dos projetos de exploração de gás natural naquela região, desvalorizando a onda de violência e o desespero das populações. O ministro da Defesa Nacional moçambicano, Cristóvão Chume, disse nesta quinta-feira que se trata apenas de pequenos “grupos pequenos de terroristas”, e que "a situação na província de Cabo Delgado continua estável”.

O presidente da República, Filipe Nyusi, também desdramatiza a situação, e não se coibiu de reunir, na quarta-feira, na Cidade de Pemba, com o diretor geral da petrolífera norte-americana ExxonMobil Moçambique, para obter informações sobre o estágio do Projecto Rovuma LNG, na área quatro, em Afungi, província de Cabo Delgado. Erne Gibbis felicitou as Forças de Defesa e Segurança moçambicanas e suas aliadas pelo seu trabalho no terreno.

Já TotalEnergies prepara o seu regresso a Cabo Delgado, procurando convencer os seus investidores para o efeito. A multinacional francesa tem planeada a construção de uma central nas proximidades de Palma, para produção e exportação de gás natural, avaliada em cerca de 18,6 mil milhões de euros, mas a obra está suspensa desde 2021 devido à instabilidade na região.

Este sábado, Nyusi, voltou a defender, na Cimeira dos Países Exportadores de Gás, a "urgência" em combater a "pobreza energética" em África, que, segundo o mesmo, passa pelos projetos e investimentos estrangeiros no continente.

Exploração de recursos naturais exacerba desigualdades

Há muito que organizações não governamentais locais e nacionais, e altos representantes religiosos, entre outros, alertam para o facto de a pobreza, a falta de oportunidades, o esquecimento a que tem sido votada a província contribuírem para o recrutamento de jovens sem perspetivas de futuro, que veem na violência a única forma de visibilização e protesto.

Não obstante, o Governo e as respetivas autoridades continuam a apostar numa resposta militar à violência e a não combater as suas raízes.

As conclusões do estudo “O Papel do Governo e da Indústria Extrativa no Desenvolvimento de Cabo Delgado”, do Instituto de Desenvolvimento Económico e Social (IDES), reforçam que os projetos de exploração de recursos naturais estão a contribuir para desigualdades sociais e de tratamento entre os membros da comunidade na província de Cabo Delgado nos últimos anos.

O diretor-executivo da organização da sociedade civil, Fidel Tereciano, não tem dúvidas: “Aumentou a bandidagem, aumentou a criminalidade, aumentou a desrespeito na comunidade, aumentou os altos índices de confrontação social”.

Abusos vários por parte das forças de segurança

No início, coube à Polícia da República de Moçambique (PRM) responder ao surto de violência, a que se juntaram posteriormente as Forças de Defesa e Segurança de Moçambique (FDS). Em 2020 e 2021, surgiram no terreno empresas paramilitares privadas como o Dyck Advisory Group (DAG), Paramount e Burnham.

A partir de julho de 2021, a solução militar ganhou ainda mais força, através de um acordo bilateral que permitiu a intervenção pelas Forças de Segurança de Ruanda (RSF), e de um acordo multilateral para a participação da Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM), por forma a libertar distritos junto aos projetos de gás.

À época, a União Europeia oficializou uma missão militar para ajudar as FDS em Cabo Delgado. Portugal assumiu o comando da Missão de Treino da UE em Moçambique (EUTM-MOZ), que teve início em setembro de 2022, com um mandato de dois anos. Atualmente, é a missão constituída por um contingente de 117 pessoas, 65 das quais portuguesas.

Recentemente, o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, anunciou que iria propor em Bruxelas “uma renovação do mandato da formação da UE e uma alteração a esse mandato para ser um pouco mais abrangente”. que a missão seja “mais abrangente”.

Entretanto, os maus tratos a civis agudizam a tensão entre população e militares no distrito de Macomia. A par de sofrerem com a violência dos insurgentes, os civis no distrito de Macomia também se queixaram de abusos por parte das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM). A Carta de Moçambique detalha que os abusos denunciados incluem espancamentos, assédio verbal e prisões arbitrárias.

Uma reportagem do Zitamar News refere, inclusive, que a marinha moçambicana foi acusada de matar ou capturar indiscriminadamente qualquer pessoa encontrada a pescar ao largo da costa no norte da província Cabo Delgado nas últimas semanas. Fontes do distrito de Macomia detalharam como os fuzileiros navais moçambicanos, que poderão ter sido treinados pela missão de treino militar da União Europeia em Moçambique, estão a matar ou a capturar qualquer pessoa encontrada num barco ao largo da costa dos distritos de Macomia, Ibo, Mocímboa da Praia e Palma, por suspeita de pertencerem à insurreição apoiada pelo Estado Islâmico em Cabo Delgado. Como resultado, a atividade pesqueira na região foi completamente interrompida.

Em Mucojo, as restrições impostas pelas FADM, como forma de reduzir a logística dos terroristas, elevaram de forma abrupta o preços de produtos de primeira necessidade.

Entretanto, os jornalistas continuam a ser alvo de grande pressão, com o Governo a tentar assumir o controlo das comunicações. O governador de Cabo Delgado, Valige Tauabo, acusou, inclusive, os jornalistas de estarem a trabalhar para apoiar a insurgência.